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domingo, 29 de dezembro de 2019

NÃO SOBROU BYTE SOBRE BYTE




No dia 1 de janeiro de 2020, lembro bem, a internet explodiu. Mandou tudo e todos para uma imensa lixeira sem backup. Deixou o mundo na mão. Não se tem ainda um balanço de quantas vidas se perderam, mas cálculos aproximados indicam que todas, à exceção de um ou outro aborígene. Só sobrou mesmo corpo e alma do que se convencionou chamar de "pessoas", que como se sabe não possuem serventia virtual alguma. 

Sempre que se falava em "explosão da internet" se entendia o sentido figurado, de sucesso estrondoso, nunca a explosão em si. "A internet vai explodir - disse há algum tempo, o noticiário pode confirmar. Deram risada de mim", afirmou uma famosa vidente, reivindicando a autoria da previsão. Mas o noticiário não pode confirmar, já que todos os registros desapareceram para sempre.

Se alguém encontrar esta mensagem, passe adiante de alguma forma. É verdade este bilete.


PS: vendo 2 carretéis de fita de máquina de escrever. Interessados, batam palmas em frente de casa. Valor a combinar. Só venda, não aceito troca. 




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Esta é uma obra de ficção. 
Imagem: http://mundoantigoecia.blogspot.com/

domingo, 22 de dezembro de 2019

MIOJO VENCIDO




Legisladores imbecis, sem pauta, sem escrúpulos e sem ter o que fazer em Brasília, resolveram perseguir a nós, valorosos Lamens.

Um dos projetos a serem apreciados no Congresso determina que Lamens fora do prazo de validade teriam de ir para ONGs de animais abandonados, o que para nós - com todo respeito aos cães e gatos de rua - é um desprestígio e uma afronta. Fomos concebidos para o consumo humano!

Sairemos às ruas e entoaremos o nipo-espaguético canto de guerra, que orgulha a categoria miójica e que tantas conquistas inspirou ao longo de nossa história: Miojos vencidos também serão cozidos! Miojos vencidos também serão cozidos! Miojos vencidos também serão cozidos!

Nossa união começa dentro da embalagem. Só conseguem nos separar às custas de muita martelada ou com água fervendo, e ainda assim após 3 minutos em fogo alto. Depois continuamos juntos na gororoba formada no prato, prosseguimos unidos no estômago do esfomeado e agarrados uns aos outros nos manteremos até a conclusão do trato digestivo, que todos sabem muito bem qual é. Melhor não entrar em detalhes. 

Nos últimos anos, temos sido classificados pelas agências reguladoras como "alimento processado". O que causa indignação é que estamos sendo alvos de ação na justiça sem que tenhamos acesso ao conteúdo do processo ou mesmo à notificação da denúncia, para que possamos elaborar a nossa defesa.

Não nos conformaremos, de maneira alguma, com esta perseguição orquestrada. Nossa ascendência oriental nos dá a dignidade e a honra de verdadeiros samurais, não aceitaremos cair por terra sem antes lutarmos até exaurirmos nossas forças. E se enxergarmos o fim próximo, preferiremos mil vezes o harakiri do que a lata do ixo. 

E não é só isso. Organizações antirracismo também se manifestam caluniosamente contra os Lamens de forma geral. Alegam que o formato do produto faz apologia do cabelo claro e cacheado – características do macarrão caucasiano, do qual o exemplo mais conhecido é o chamado “cabelinho de anjo”. Não existe uma versão negra, com massa à base de feijão, berinjela ou azeitona preta, simulando os cabelos crespos dos afrodescendentes. Desejamos que os fabricantes atentem a esta necessidade, oferecendo mais opções de cores e sabores e conferindo aos macarrões de preparo rápido uma pluralidade que reflita a miscigenação da nossa sociedade.

O momento é de inclusão. Somos instantâneos e, por isso mesmo, cada vez mais aptos ao estilo de vida dos novos tempos, onde um almoço ou uma janta que dure mais de 10 minutos pode ser motivo de demissão por justa causa. Porém, por mais instantâneos que sejamos, temos uma longa história a preservar, uma tradição secular que precisamos levar adiante junto às novas gerações. 

O desprezo na prateleira, servindo de banquete para os carunchos, é a maior de todas as vergonhas para um Lamen legítimo, de alta estirpe. Não faz sentido, para um alimento, apodrecer sem serventia. LAMENtável!




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domingo, 1 de dezembro de 2019

LA MIJONA




- Fica firme, não se mexe de jeito nenhum. Não pisca, olha fixo pra mim.
- Se demorar mais um pouco, de Monalisa eu vou virar Mona Enrugada. Ninguém aguenta isso, Leonardão...
- Segura um tiquinho mais aí. Misericórdia, segura mais um pouquinho só. Manda aquele sorriso enigmático que só você sabe fazer... Isso... faz e segura. Pensa que o seu marido, aquele mercador que não dá valor ao que tem em casa, está viajando para as Índias e você está livre para fazer tudo o que tem vontade... Tudo, tudo, tudo mesmo. 
- Assim?
- Quase. Levanta um pouco mais a cabeça e para de pensar nessa sacanagem que você imaginou aí. Preciso de um meio-termo, compreende? Uma expressão que faça as pessoas refletirem, ficarem intrigadas. Não vamos entregar o sentido, assim tá vulgar. Está libidinoso demais. Sei que você pensou em mim e fico lisonjeado com isso, mas menos. Bem menos, Mona.
- Bom, então eu vou fazendo caras e bocas até você achar que está bom. Quando chegar no que você quer, me avisa que eu congelo.
- Estufa bem o peito, vamos deixar este decote mais insinuante. É, quase isso, mantenha bem reta a coluna.
- Perfeito, só que desmanchou o sorriso, Mona.
- Ô, Dio mio! Ou eu presto atenção no sorriso ou nessas instruções de postura, não consigo controlar tudo ao mesmo tempo.
- Agora é dar uma esfumada aqui nos cantos dos lábios.
- Fumar? Posso dar um intervalo pra fumar? 
- Não, não... esquece o que eu falei, fica firme aí. 
- Viu, será que rola um limoncello daqui a pouco? Pra relaxar, sabe. Já tem umas três horas que estou aqui.
- Minha querida, entenda que estamos vivendo um momento histórico. Pode ter certeza de que daqui a 500 anos ainda estarão falando da gente. Posso até imaginar o quadro pronto e exposto, protegido pela polícia e por cordão de isolamento, num museu imenso. Milhares de pessoas por dia pagando uma senhora grana para ver - e de longe - o que vai sair desse pincel daqui a pouco. 
- Se acha, né? Vai inventar helicóptero que dá mais certo, cáspita.
- Imagina só, gente do outro lado do mundo, cruzando mares só pra te ver. Chineses vindo em arrastão ao museu onde o seu retrato vai ficar, tendo que dar uma olhadinha rápida e sair logo, pra entrada de outra leva de chineses, e assim ininterruptamente, sete dias por semana. Em lugar de navegadores italianos arriscando a vida para conquistar territórios no Novo Mundo, a América desembarcando em massa para se extasiar com seu rosto misterioso, minha musa florentina.
- Aham... aí você acordou?
- Falo sério, querida. A pintura está prontinha aqui na minha cabeça, mas você precisa colaborar um pouco. Por que tá encolhendo a barriga?

- Tô é segurando a bexiga... me libera pra um xixizinho básico, Leo!!!

- Se o problema era esse, já devia ter falado. Pega isso aqui, ó. Coloca debaixo da saia e fica à vontade, não precisa ir até o banheiro. Se preferir, eu viro as costas pra você não ficar com vergonha.

- Que estranho esse negócio. Eu seguro aqui na alça?

- Isso.

- Só você mesmo, Leo...

- Minha última invenção. Chama-se penico. 



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