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sexta-feira, 27 de outubro de 2017

TERCEIRIZANDO A TERCEIRIZAÇÃO




A terceirização chegou para ficar. E, com ela, surgem algumas questões práticas bastante curiosas. Por exemplo, se uma empresa tem o direito de contratar meus serviços como terceirizado, eu também tenho o direito de terceirizar o que iria fazer, pois a lei vale para todos.

Vamos ilustrar com uma situação hipotética. Imagine que eu ganhe quatro mil dinheiros, mas prefira contratar um desempregado por dois mil dinheiros para fazer o serviço no meu lugar, ficando portanto com os outros dois mil dinheiros para mim. Pode ser que, com essa grana, eu viva muito bem, sem precisar trabalhar. 

Digamos que isso seja uma "reterceirização", ou algo parecido. Eu agencio e supervisiono um burro de carga para "limpar a caixa de gordura", enquanto fico estirado em minha rede comendo pamonhas de Piracicaba o dia todo. 

É claro que eu teria que responder pela qualidade do serviço. Se o "quarteirizado" por mim não estiver entregando o que eu entregaria, substituo por outro, depois por outro e por quantos sejam necessários, até conseguir alguém que produza o exigido no prazo desejado. Afinal de contas, a empresa que me contratou só o fez porque conhece o meu trabalho ou teve referências dele. 

Por sua vez, é justo que esse "quarteirizado", se quiser, subcontrate um "quinterizado" ainda mais ferrado que ele no mercado de trabalho, pagando - por exemplo - mil dinheiros. E que este, igualmente por uma questão de justiça, também tenha a opção de arrumar um "sexterizado" que o substitua, e que fique feliz da vida com quinhentão por mês. Sim, quinhentos dinheiros, menos que um salário mínimo. À parte toda a questão legal - ou ilegal - envolvida, a tramoia é perfeitamente plausível. Ainda mais hoje, com profissionais de TI pós-doutorados prestando concurso para ascensorista. 

Amparada por lei, a terceirização vem ganhando terreno e tende a se disseminar por setores inimagináveis. Como escrevinhadores de diletantismo e congêneres. Este texto, aliás, é lavra de um terceirizado. Caso não tenha correspondido às suas expectativas, entre em contato com o responsável por este espaço, que tomará as devidas providências. 


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sábado, 21 de outubro de 2017

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO




- Essa sua matemática é muito esquisita. Muito, muito estranha.
- Esquisita nada. Pensa comigo: quando começa o horário de verão, você é surrupiado em uma hora, e ela não vai voltar nunca mais.
- Mas quando o horário acaba, a hora retorna pra você, pois os relógios são atrasados em uma hora e tudo volta a ser como antes. 
- É isso o que você não está entendendo! Como é que eu vou explicar?... Quando adiantaram o relógio, no começo dessa porcaria que não economiza energia elétrica nenhuma, somos tungados em uma hora. Até aí tudo bem?
- Sim, lógico. 
- Então, e lá em fevereiro, quando essa hora é devolvida, não é que você "ganha" uma hora. As coisas simplesmente retornam aos eixos. O certo, para que houvesse justiça, seria atrasar duas horas. Uma para tudo voltar ao normal - e até aí, zero a zero - e outra pela hora que te roubaram em outubro, meu velho!!! Será que é tão difícil assim perceber a diferença? A cada ano, te subtraem uma hora de vida, que vai ficar eternamente na saudade. Simples e aritmético. Conta de mais e de menos. 
- Certo, e aonde você tá querendo chegar?
- Ao Governo Federal, com uma ação na justiça. Só minha ou coletiva, depende de quantos entenderem o raciocínio e comprarem a ideia. 
- Ah, vai ser difícil você explicar esse negócio aí...
- Olha, nem eu sei direito quantos horários de verão já foram enfiados goela abaixo da população. Vamos supor que tenham sido 20 até hoje. Então haveria um banco de horas. Para cada horário de verão que entrar em vigor, o cidadão teria direito a uma hora de crédito. Livre, sem trabalhar, pra ele usufruir como quiser. E que ele pode gozar a cada ano ou ir acumulando para tirar um monte delas de uma vez só. Compreendeu? Sempre deixando claro que essa hora adicional é além daquela oficial, que já retorna de qualquer jeito quando acaba a brincadeira.
- Espera aí, espera aí... para, para tudo, tá dando um nó na cabeça.
- Não tem nó nenhum, é simplesmente óbvio, as pessoas é que ainda não perceberam!
- Tá errado, cara. Quando começa, você fica com um dia de 23 horas. Mas quando acaba, você tem direito a um de 25. Justiça total, tudo certo.
- Ledo engano! Quando acaba, você só volta a ter um de 24, que é o que cabe a todos nós desde que o mundo é mundo. Aqueles 60 minutos que sequestraram não serão resgatados.
- Jesus amado, eu não vou ficar discutindo com você. Daqui a pouco é uma hora perdida - e, nesse caso, perdida mesmo - com uma discussão que não leva a nada. Precisa estar bem desocupado pra ficar pensando nessas coisas...
- Errou de novo, queridão. Sou ocupado até demais. Pode reparar, todo mundo reclama da falta de tempo. Aí chega um cidadão e decreta que, de outubro a fevereiro, você tem menos tempo ainda. É arbitrário e injusto.
- Então não acerta o seu relógio. Pronto, encerra o assunto. 
- Mas aí serei só eu o errado. Fico descompassado do rebanhão. Agora, se todo mundo desacatar, vamos ganhar essa parada. Podemos tomar de novo o poder do tempo! Ou, pelo menos, exigir a implantação do BHV - Banco de Horas de Verão... Se bem que, neste ano, não adianta mais. E, para entrar em vigor no ano que vem, a proposta do banco tem que ser votada até o fim de novembro.
- É, mas estamos no horário de verão. Brasília esvazia mais cedo, os deputados não são de ferro e também querem curtir sua praia e sua piscina. E olha, se for correr abaixo-assinado na rua, não esquece do protetor solar. Fator 50, no mínimo.



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sábado, 14 de outubro de 2017

CAÇAMBA!



Estou com uma caçamba de 5 metros cúbicos estacionada na frente da minha casa. Coisa mais linda, um verdadeiro mimo, com entulho até a boca. 

Resolvi derrubar uma parede para ampliar a sala. Empreitada teoricamente simples, rápida e barata, mas que demandou a locação do compartimento por uma semana. 

Tudo o que você for erguer ou botar abaixo, por mais trivial que seja, abarrota uma caçamba em meia hora. Às vezes em menos tempo. É quando você se dá conta de que a locação de uma semana, o período mínimo exigido pelas locadoras, foi consumida em quinze minutinhos. Só que não interessa, você vai morrer com a locação de uma semana: 250 reais. Com o agravante de que é preciso não perder tempo para tirar a montanha de lixo da sua porta, ligando de novo para o disk-caçamba e implorando por todos os santos que levem embora o quanto antes a geringonça cheia e tragam outra vazia, pois o entulho é maior que o previsto e precisa ser removido para não atrasar a obra e não empacar o pedreiro. 

Há motivos para supor que a locação de caçambas de entulho seja o melhor negócio de que se tem notícia, desde o advento do big bang.

A caçamba é indestrutível. Se a ogiva de um míssil nuclear explodir em cima de uma delas, o míssil vai levar a pior. Não faz muito tempo, aqui perto de casa mesmo, um motorista morreu ao colidir com uma caçamba estacionada.

A conservação tem custo mínimo (resume-se à limpeza interna e à substituição periódica dos adesivos de sinalização refletivos). Sinalização que, aliás, acaba virando outra fonte de renda - funciona como mídia de divulgação do próprio serviço de caçambas e também produtos de terceiros. Elas ficam o tempo todo nas ruas e são móveis, não havendo legislação específica que regulamente a veiculação de propaganda nesse tipo de suporte. 

Mesmo com a imensa volatilidade da economia, o negócio da caçamba vai de vento em popa. Aconteça o que acontecer. Se a construção civil aquece, não há caçamba que chegue para atender a demanda. Se a temporada é de vacas magras, o jeito é reformar ou improvisar um puxadinho. E mais uma vez lá estará ela, impávida, verdadeiro monolito à frente de mansões ou de casebres.

Em todo o nem sempre rentável ciclo da obra, haverá um dono de caçamba com o bolso cheio e o sorriso largo. Imagine só uma empresa locadora que tenha uns quarenta anos de mercado. Essa mesma empresa poderá locar suas caçambas para construir uma casa, para reformá-la e também para remover os escombros de sua demolição. Isso sem falar da receita adicional com a venda do entulho para empresas de reciclagem. Não tem como não dar certo um negócio assim. 

Tudo passa, tudo é destruído, tudo vira lixo. E sempre haverá alguém desesperado, com um telefone na mão, atrás de uma caçamba para tirá-lo do meio. 


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Imagem: www.alugueldecacambasbelempa


sábado, 7 de outubro de 2017



"Um índio descerá de uma estrela colorida, brilhante
De uma estrela que virá numa velocidade estonteante
E pousará no coração do hemisfério sul
Na América, num claro instante
Depois de exterminada a última nação indígena
E o espírito dos pássaros das fontes de água límpida
Mais avançado que a mais avançada das mais avançadas das tecnologias
Virá que eu vi"
(Caetano Veloso)


O OVNI de aproximadamente 10 hectares de diâmetro foi descendo lentamente sobre Porto Seguro, no mesmíssimo lugar onde atracou a esquadra de Cabral. Embasbacando os turistas dos resorts. Atrapalhando orgias e ménages à trois. Fazendo despencar das prateleiras vodkas russas e uísques 12 anos. Interrompendo transações espúrias com dinheiro público à beira de piscinas. 

E disse o neo-pajé, de sua nave-oca:

O valoroso povo indígena já ocupou este seu mundo centenas de vezes. A última delas foi quando vocês chegaram, em 1500. Depois passamos a reencarnar em planetas mais evoluídos, como recompensa ao sofrimento suportado na tentativa de nos escravizar. Pelo respeito da nossa raça ao equilíbrio da natureza e ao convívio pacífico, evoluímos muito mais rápido do que vocês. Obedecendo à inescapável lei da ação e reação, da causa e do efeito, viemos retomar a posse do que sempre foi nosso, resgatando assim a dívida que vocês contraíram com nossos antepassados. Rendam-se, entreguem-se sem resistência. Será menos doloroso e mais inteligente de sua parte. 

Vocês encantaram nossos antepassados com espelhinhos, pentes e apitos, passando uma rasteira histórica em quem, na sua pureza, não tinha como se defender. Chegou a nossa vez de deixá-los abobalhados com as nossas bugigangas - uma ou outra maquininha barata de teletransporte intergalático, ou coisa ainda mais rasteira, pois vocês são muito primitivos e se contentam com qualquer idiotice.  

Enquanto ficam feito palermas teletransportando-se de um lado a outro, rindo-se de se matar com essa reles porcaria, nós seduziremos suas mulheres e traçaremos uma Tordesilha básica e provisória, só para fincar nossa bandeira enquanto milhões de nossa raça não chegam para colonizá-los e abduzi-los para o buraco negro mais próximo. Essa nova versão do Tratado de Tordesilhas dividirá seu território em duas partes, uma nossa e a outra também. 

Como já disse, o buraco negro será o merecido destino de vocês. Não seremos hipócritas, com a falsa bondadezinha de demarcar reservas para preservar da extinção seu povo degenerado. Gente da sua raça não vale o ar que respira. Agora, conservem-se em fila para serem marcados holograficamente e aguardarem em silêncio a hora da abdução. 



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domingo, 1 de outubro de 2017

MARMICHEF





Fazer alta culinária na baixa gastronomia. E teria outra saída? Com o preço estratosférico das trufas negras de Périgord e o poder aquisitivo do brasileiro mais ralo que caldinho de feijão em Belford Roxo, a alternativa mostrou-se tão revolucionária quanto salvadora. O que acabou inspirando pratos como Dobradin (leia-se "Dobrrrradan"), Beef au Rolex, Moela au vin e Gateau Miaux - o manjado churrasquinho de gato mal passado. Todos com a inconfundível marca da nouvelle cuisine, a partir de uma formidável e inusitada harmonização de carnes pré-podres de abatedouros clandestinos.

Estroigros, o mito, emprestou generosamente seu talento, sempre remunerado a peso de ouro, em troca de um salário de zinco. Resolveu encarar a empreitada como um esforço de guerra e um desafio descomunal à sua notória habilidade com as caçarolas. 

O custo final agradou em cheio o populacho. Como na culinária francesa a quantidade de comida é inversamente proporcional à complexidade do prato, as quentinhas eram do tamanho de uma forma de empada, permitindo jogar o preço lá embaixo. O grande problema é que um estivador do porto sai para o almoço verde de fome, disposto a engolir talheres, guardanapo, mesa e cadeira junto com a comida. E quando lhe entregavam o marmitex de grife que mais parecia uma latinha de Pastilhas Valda, irava-se com o motoqueiro e recusava-se a passar o seu cartão Sodex na maquininha, dizendo-se lesado e prometendo relatar o imbroglio todo no "Reclame Aqui". 

Para cada marmitex entregue, correspondiam quatro ou cinco posts destruidores nas redes sociais. A estratégia, a princípio tão original e promissora, ia de mal a muitíssimo pior.

E assim a coisa foi degringolando. Para entregar comida em quantidade industrial, o "grude" teria que ser de péssima qualidade - o que faria de Estroigros um ingrediente dispensável, mandando "a la merde" o único diferencial do negócio. Se continuasse primando pela excelência, seria forçado a abandonar o segmento de quentinhas e voltar ao velho QG, na esperança da crise ir embora e o cliente voltar. Estroigros não sabe o que fazer. E faltam dez para o meio dia. 



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