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sábado, 30 de novembro de 2013

NECRÓPOLE NEWS




VENDO JAZIGO LINDO DE MORRER
Vista privilegiada. De frente para o mausoléu dos três anjinhos barrocos (família Ponce de Lutierre), sol da manhã, bela área de jazer para descanso eterno. Capelinha com varanda e gavetas com capacidade para 16 defuntos em decomposição simultânea. Financiamento CEF - Caixão Econômico Federal, em 30 anos, com recursos do Programa "Minha cova, minha vida".

GALINHA MORTA NO CEMITÉRIO DE ANIMAIS. SÓ HOJE!
Na quadra dos tamanduás. Lugar tranquilo, floricultura a 50 metros. Morra perto de tudo o que você precisa. Visite decorado, confira as facilidades e feche negócio antes que seja tarde demais.

ALÇAS DE CAIXÃO SOBRESSALENTES
Para aqueles entes queridos mais queridos que a média. Não deixe faltar alguns pares a mais, especialmente para os advogados que chegam ao velório doidos para pegar, além da alça, o inventário do finado. Disponíveis em bronze e prata maciça.

e-PÊSAMES
Com o corre-corre do dia-a-dia, é impossível estar em vários enterros ao mesmo tempo. Envie coroas de web-flores e acenda velas virtuais por intenção do falecido, do seu tablet ou celular. As mensagens são transmitidas real time e assistidas pela família em telão, no recinto do velório.

CELULAR COM BATERIA PERPÉTUA
O smartphone fica com a tela acesa o tempo todo, bem próximo aos olhos do defunto, sendo o dispositivo acionado alguns minutos antes do sepultamento. Caso venha a ressuscitar debaixo da terra, o decujo terá a chance de chamar alguém em seu socorro. O fabricante não se responsabiliza se a pessoa do outro lado da linha vier a morrer de susto.

CARRO FUNERÁRIO
Veraneio preta, ano 71. Único dono, nunca bateu. Jamais pegou estrada de terra e só anda em ponto morto. IPVA pago e licenciado 2013. Faço desconto por só ter o banco do motorista. Seguro muito barato – pouco visado pelos ladrões.

MÉDICO LEGISTA – ATENDE A TODOS OS CONVÊNIOS
Necrópsias e laudos periciais em geral. Forneço atestado de óbito para justificar faltas no trabalho.

AQUI JAZZ
O seu barzinho mal assombrado, ao lado do crematório. Música ao morto de segunda a sábado.

EXCURSÃO - FERIADÃO DE FINADOS
Três dias e duas noites com café da manhã e traslados para os cemitérios inclusos nos pacotes.
Confira os roteiros:
Cadáveres Espetaculares. Tour paulistano pelos cemitérios da Consolação, do Araçá, de Itaquera, da Penha, da Saudade e do Gethsêmani.
Macabros Inesquecíveis. Tour carioca pelos cemitérios do Caju, de São João Batista, de Jacarepaguá, do Realengo e de Irajá.

SENSOR DE PRESENÇA DE ENCARNADOS
Invenção com patente requerida, este maravilhoso produto possui tecnologia baseada nos populares sensores "fiu-fiu" vendidos pelos camelôs - aqueles que assobiam quando alguém passa na frente. Instalado no túmulo, o sensor identifica o ser vivente que chegue para uma prece. A diferença é que, ao invés do "fiu-fiu", o sujeito escuta uma saudação de boas- vindas gravada pelo morto, que cumprimenta o visitante e agradece a reza.


© Direitos Reservados
Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sexta-feira, 22 de novembro de 2013

ALEXANDERPLATZ






I

Me diz: quando é que eu ia imaginar topar contigo em Berlim, se na 
minha cabeça aquele você de ontem, com gosto  amanhecido de cerveja e 
de preguiça, ainda estava lá onde havia te deixado, montando cavalo 
de carrossel e de aparelho nos dentes? Como é que pode me aparecer 
assim, sem me dar chance de aparar a barba, re-nata de sítio extinto?


II

Meio fêmea-fúria, meio mulher-nirvana, contigo no carro roubado. A 
cada troca de marcha a minha mão roçando o vestido, do joelho para a 
coxa. Sentia que te levava às nuvens que inexistiam no céu daquele 
dia, doida varrida envolta em pouca vergonha. À falta de boas moitas, 
ia no acostamento mesmo, o sol sem pena fervendo a lata. A carne 
exposta. O almíscar vencido.


III

Brincou comigo, te encontrar tão fora de contexto. Alta, linda, 
senhora da vida. Sem lembrança nenhuma da mão boba do câmbio e dos 
cavalos do parque. Agora, os dois defronte, querendo se livrar da 
falta do que dizer. E o teu quase sorriso, de esquálido protocolo, 
feria o meu desajeito. Estátuas em Alexanderplatz.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O NÃO SER






Eu sei que foi mais ou menos desse jeito, querendo jogar uma água sanitária no mofo acumulado, que saí pra rua sem rumo nenhum. Pensando em não pensar em nada, só ouvindo um ou outro estalinho de graveto no caminho e deduzindo: isso é um estalinho de graveto no caminho.

Eu sei que a intenção era boa e honestamente me empenhei, mas ao primeiro graveto estalado me chega sorrateiro o chato interrogativo e suas vãs divagações. E me fala do abismo entre a finitude do ser e a infinitude do tempo/espaço, diz que é da natureza humana colocar termo, ordem e dimensão a tudo. Argumenta sobre o cabimento, pois tudo há de “caber” em ensaios demonstráveis.

Eu sei do inapelável desalento desse ponto de vista. Considerando-se que a vida seja mesmo uma só, ela é um ridículo intervalo entre a eternidade que passamos não sendo e a eternidade vindoura onde continuaremos a não ser. Ao invés de seres, na verdade somos “não seres”, a não ser por algumas décadas. E tem gente que não aproveita essa rara exceção que o caos nos abre. Pior: há os que se matam, voltando prematuramente ao nada. É muito desapego, é quase fazer troça com o acaso ou com o Todo Poderoso.
Eu sei o quanto é difícil imaginar o que quer que seja sem um começo. Você saber que o tempo vai prosseguir indefinidamente a partir de agora, ainda vá lá. Mas você aceitar o infinito de tempo que houve antes de agora, fica bem mais complicado. Algo sem fim é algo mais fácil de conceber que algo sem começo. Uma coisa é começar do zero, como todas as coisas aparentemente começam. Outra é não ter zero. Como é que pode?

Não é razoável supor que a nossa cachola abrigue, em tão reduzido espaço, a explicação do universo. Ainda assim, astrônomos se debatem e agendam simpósios internacionais para deliberarem, soberanamente, se Plutão continua planeta ou se é rebaixado a aspirante. Como se isso diminuísse o peso das interrogações que há milênios levamos às costas.

Eu sei que entrei na primeira igreja que me apareceu na frente. Um grupo de oração seguia desfiando seu rosário. Beatas de véu, homens de terno, como que prontos para uma Festa do Divino. Rezei uma Ave-Maria e um Pai-Nosso, rogando a todos os santos que me tirassem da aflição inútil. Com o perdão dos céticos, que às vezes perdem a razão pelo excesso dela, eu quero é nuvenzinhas, tronos celestiais, trombetas de serafins, mantos diáfanos. E faço questão que a autenticidade do Santo Sudário seja confirmada pela ciência. Que divina delícia esse conforto das abóbadas repletas de anjos gordinhos com cabelos encaracolados, os ecos de uns poucos sapatos na catedral vazia, às duas da tarde de uma segunda-feira. Ou os ofícios dos domingos, os estandartes, cálices bentos e andores das procissões, os tapetes de serragem e palha de arroz tingidos de anilina para o Corpus Christi. O céu e o inferno, Adão e Eva, o bem e o mal. Quero o padre de aldeia, que vem dar comunhão em casa e acaba ficando para o frango com polenta.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sexta-feira, 8 de novembro de 2013

O LIVRO DOS SEGREDOS DO TACO





O título da obra, ao contrário do que o senso comum poderia supor, não é uma compilação de receitas baseadas na iguaria mexicana. Muito menos trata-se de um manual de regras e jogadas ensaiadas daquele jogo de rua, tão comum nos anos 60 e 70. Temos aqui uma publicação única e de valor incalculável, através da qual a humanidade finalmente tem acesso a um dos mais impenetráveis mistérios de todos os tempos: a 12ª profecia de Mazzaropi, tida como perdida há muitas décadas, a despeito das inúmeras expedições empreendidas por arqueólogos do mundo inteiro a Taubaté, onde o genial caipira passou boa parte da vida.

Deu-se a descoberta por acaso, com um golpe de picareta no chão da casa em que vivia o ilustre cômico. A residência passava por uma reforma geral, e a equipe que removia os tacos do living para trocá-los por carpete de madeira descobriu, cuidadosamente acondicionado abaixo de um deles, o precioso documento dobrado em oito, assinado e autenticado por Mazzaropi no ano de 1967. Isolada a área por forte aparato policial e impedido o trânsito num perímetro de doze quarteirões adjacentes ao precioso achado, os peritos atestaram a autenticidade da relíquia mas se abstiveram de qualquer comentário quanto ao seu conteúdo.

Das 16 profecias deixadas pelo artista, 15 já eram de conhecimento público. A mais amplamente divulgada, catalogada como a de número 3, versava sobre o acidente de helicóptero sofrido por Ulisses Guimarães e dona Mora, fatidicamente previsto por Mazza 22 anos antes de acontecer. Outras bastante conhecidas tratam da extinção do Tigre de Java, em meados da década de 80, e do fim do longevo programa televisivo "Almoço com as Estrelas" apresentado por Ayrton e Lolita Rodrigues na TV Tupi, emissora tão finada quanto o citado Tigre de Java.

Todas, sem exceção, foram confirmadas nas datas previstas.  Nenhuma delas, porém, causou tanta controvérsia quanto a nona. Nela, o lampejo profético do nosso Jeca cinematográfico predizia o extravio perpétuo da Profecia 12 - justamente a que estava sumida. Até aí, Mazzaropi continuava acertando em cheio; mas o fato de ter sido encontrada agora, de certa forma contradiz o enunciado da Profecia 9, colocando em sérias dúvidas a reputação de Mazza como profeta. Resta saber do que fala a Profecia 12, o assunto do livro em questão. Talvez seja, justamente, a resposta para este flagrante paradoxo. Comprem o livro, leiam e saibam.





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sábado, 2 de novembro de 2013

COMPANHEIRA SOLITÁRIA





Cumprida a pena de 35 anos na solitária, pelo assassinato coletivo de 48 velhotas cambojanas, Emiliano Skud, também conhecido como O Perverso do Marrocos, surpreendeu a mídia mundial com a insólita decisão de não abandonar seu cubículo escuro.

“Por estranho que possa parecer, a solidão me proporcionou encontros memoráveis”, disse ele, comunicando-se de dentro da cela para uma multidão de repórteres com os ouvidos grudados à porta. “Fui finalmente apresentado a mim mesmo, e não estou disposto a abrir mão do autoconhecimento que ganhei nesses anos todos. Nos primeiros tempos, cada risquinho que fazia mentalmente nas paredes do meu cérebro eram os dias já vencidos cumprindo pena. Depois, esses mesmos risquinhos ganharam outro significado. Passaram a ser os dias ganhos nos meus mergulhos interiores de regeneração. Foram momentos de proveitoso tédio, que jamais serão esquecidos. A vida devassa que levei e os crimes que pratiquei nada mais eram que tentativas de fugir da minha verdade e ouvir tudo o que o silêncio e a escuridão precisavam me dizer”.

No decorrer dessas três décadas e meia, Emiliano teria sido por quatro vezes beneficiado com o regime de prisão semiaberto, por comportamento exemplar. Nunca se ouviu uma tosse, um pigarro, um bocejo que fosse vindo do seu compartimento. Declinava  de todas as oportunidades de banho de sol no pátio do presídio e agradecia polidamente os incontáveis indultos de Natal, recusando-se a usufruir do benefício.

Ao que se sabe, uma única vez o ilustre detento rompeu a sua habitual e absoluta discrição. Há aproximadamente sete anos, Skud acionou a campainha chamando o carcereiro, para avisá-lo de que a goteira, instrumento de tortura psicológica, não estava mais pingando. Solicitava providências para que se procedesse ao reparo o quanto antes, pois sem ela não conseguia mais se concentrar em seus processos meditativos. Argumentava ser a goteira um direito seu, previsto na condenação assinada pelo juiz.

Sua conduta irrepreensível muitas vezes colocava em situação embaraçosa os delegados e juízes diretamente ligados ao seu caso. Certa ocasião, ao saber que seria levado à força para fora da colônia penal, Emiliano Skud anunciou, via bilhete passado por debaixo da porta da solitária, que praticaria um harakiri em frente às câmeras, no momento em que cruzasse os limites da prisão. Contradição das contradições: a faca conseguida por Emiliano, que todos os outros presos utilizariam para se libertar da cadeia, seria uma arma para mantê-lo lá.  

Sem outra alternativa, a direção do presídio voltou atrás e decidiu mantê-lo em sua amada solitária. Foi por essa época que ocorreu a Skud a ideia de usar sua faca para assassinar alguns de seus colegas. O estratagema parecia perfeito: aceitaria finalmente sair para um banho de sol matinal e consumaria a chacina, o que o manteria por mais umas boas décadas em seu dolce far niente sombrio e gotejante. Porém, caiu em si e lembrou-se a tempo do novo homem em que havia se transformado. Deu um longo suspiro e mergulhou em sono profundo.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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