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sexta-feira, 31 de outubro de 2014

VIDA DE SANTO




Engana-se quem pensa que vida de santo é um infinito dolce far niente. Nem ao mais preguiçoso deles é dada a graça de ficar chupando chicabon eternidade afora. E aquele estereótipo de se recostar em nuvens, entre cânticos e cítaras, é mais coisa de anjo que de santo - e anjo de quadro barroco, idealizado e fora de contexto histórico.

Santo passa maus bocados, verdade seja dita. E nem por isso os devotos lhes tratam com o devido respeito, o respeito que o santo, justamente por ser santo, exige.

Por exemplo, esse estranho hábito terráqueo de entornar no mínimo 10% da cachaça no chão da venda, dizendo que é pro santo. Posso dizer com certeza que todos eles abrem mão da homenagem e passam muito bem sem ela. Se gostasse mesmo de água que passarinho não bebe, santo não seria santo. Muito pelo contrário.

Depois, tem outra: manda a Justiça Divina que, toda vez que se oferece algo pro santo, e não se especifica pra qual santo é o presente, a oferenda seja repartida por todos indistintamente. Vai daí que cada gole oferecido é dividido, em partes iguais, para a santosfera inteira. Sabendo-se que os santos são atualmente milhares, a cada um cabe geralmente uma gotinha de nada - e não é isso que vai desviar a santaiada do bom caminho. Até aí, nada de mais. Mas acontece que se a gente levar em conta que cada pinguço manda pra goela pelo menos uns três copos da marvada, e que só no Brasil temos milhões de alcoólatras, o estrago divino é grande, provocando em vários deles internações frequentes - quando não diárias. E as mais prejudicadas são as santas, que com um tiquinho de martini já estão trançando as pernas.

Outro problema sério são as imagens dos santos - tanto as pintadas quanto as esculpidas. Tem santo lá em cima que excomunga sem dó alguns dos displicentes artistas terrenos, pela falta de semelhança deles com as imagens que os representam. Esse tipo de episódio produz verdadeiras catástrofes estéticas. Outro dia mesmo toda a corte celeste saiu em passeata, com cartazes, faixas e gritos de guerra, protestando contra um lote de 250 estátuas de Santa Edwiges que saiu de fábrica com cara de Rita Cadilac. Um repulsivo sacrilégio, que merece punição exemplar. Para evitar novos contratempos, São Tomé propôs em assembleia a instituição do selo "Ver para Crer", que certifica a imagem beatificamente reconhecida, ou seja, aquela que tem a benção do respectivo santo e que guarda nítida semelhança com a sua figura dos tempos de carne e osso.

Além desse tipo de desrespeito, há também injustiças que agridem e irritam a turma de auréola. A maldosa e irônica expressão “Na descida todo santo ajuda” vem merecendo, de uns tempos para cá, um revide da parte dos ofendidos. Julgam eles que a frase denota uma certa acomodação, dando a entender que os santos têm braço curto e que não se empenham nas tarefas mais difíceis, onde só um milagre pode resolver a parada. “Não vamos ajudar mais na descida, ainda que o carro do sujeito esteja sem freio. Pois que se espafitem, aprendam a lição e vão para o inferno” desabafa um conhecido santo, que não quis se identificar.


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sábado, 25 de outubro de 2014

FALCON NO CANTAREIRA

Fonte: falcondaestrela.blogspot.com



- É ele, eu tenho certeza. Tem aqui as iniciais do meu nome, que o saudoso Tio Zezo marcou a ponta de faca nas costas do boneco. Ter um Falcon, naquele tempo, era o sonho de consumo da molecada. Com essa marquinha aqui, se me roubassem na escola eu poderia provar que era meu. Velho Tio Zezo, era uma criança junto com a gente.

- Tá me zoando, meu. Não pode ser o mesmo boneco.

- Te juro. Olha, tá me vindo a cena toda na cabeça. Eu estava ali, perto daquele pneu de trator. O Rodriguinho, pentelho como sempre, me deu um empurrão, querendo me jogar pra dentro d'água. Eu consegui segurar o tranco, mas o Falcon acabou caindo e submergiu pra nunca mais. Quer dizer, até hoje, né. Eu tinha ganho de presente no Dia das Crianças, e o mergulho fatídico foi uns dois meses depois, num domingo quente perto do Natal. Meu pai estava pescando com o Motorádio do carro ligado, e me lembro daquele jingle tocando: "Quero ver você não chorar, não olhar pra trás..."

- Por essa época vocês tinham um Corcel II branco, né?

- Isso, e no painel tinha um imã, escrito "Papai não corra, não morra". Era começo dos 80, mas o imãzinho era dos 70, quando os carros eram inteiros de ferro. Se fosse nos carros de hoje, o imã não ia parar no painel. Acho que seria mais fácil eu ganhar 100 vezes na Megasena do que reencontrar meu amiguinho barbudo.

- Concordo. Inacreditável, e olha que o pescador nem era você. Olhando toda essa terra rachada, a impressão que dá é que abriram o ralo da represa. Achar carro, barco, sofá submerso, vá lá... Mas um bonequinho desse tamanho é demais. O que te fez pensar que ele estaria aqui, no mesmo lugar?

- Meu sexto sentido arqueológico, talvez. Além disso, estamos falando de um tanque, onde as coisas jogadas nele não podem ir pra outro lugar.

- O triste é ter que tirar a poeira dele, quando o mais lógico seria colocá-lo pra secar... Falcon da Estrela: o resgate. Que saga, heim?

- Nossa, olha lá. Um Aquaplay.

- Onde?

- Melhor dizendo, acho que tá mais pra Terraplay...





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sábado, 18 de outubro de 2014

A MANCHA NO SOFÁ DE ABREU


Há várias hipóteses, pouquíssimas delas plausíveis, para a mancha no sofá de Abreu. Passados 49 anos ela continua lá, com a mesma cor e contornos, perene como o morro do Pão de Açúcar e cada vez mais disposta a desafiar a ciência. Sim, porque tudo indica que não há força cósmica nem reza brava que pareçam capazes de acabar com ela.

Surgida sem causa aparente nem testemunhas que atestassem o momento exato do seu aparecimento, o achado tem peculiaridades físico-químicas ainda não suficientemente compreendidas, com arranjos moleculares nunca antes observados em quaisquer matérias do planeta.

Essa intrigante incógnita desafia a comunidade científica e mobiliza pesquisadores de toda parte a buscar uma explicação satisfatória para o caso. Recentemente, teve lugar na sede de campo da Associação Comercial de Monjolos das Missões um debate aberto ao público, no qual especialistas de diferentes vertentes tentaram elucidar, à luz da numismática moderna, o intrigante fenômeno - só comparável, em termos de repercussão midiática, ao velório da viúva de Floriano Peixoto.

Como se sabe, Abreu é ávido consumidor de aipim, granola com raspas de coco e Gatorade sem gelo, itens que ingere separadamente às terças, quintas e sábados, e batidos no liquidificador às segundas, quartas e domingos. Indagado sobre o motivo de nunca fazê- lo às sextas, Abreu mostrou-se evasivo e pouco convincente, chegando a alegar razões de natureza religiosa para abster-se do consumo da ração habitual naquele dia da semana. Parece desprezível esse pormenor, mas foi a partir dele que os estudiosos do caso estabeleceram uma relação entre o aparecimento da mancha e a rotina alimentar da vítima. Deduziu- se que a mancha, por estar no sofá, tem 93,7% de chance de ter sido causada por guloseima entornada e que, assim sendo, poderíamos ter como afastada a hipótese dela ter aparecido numa sexta, dia que Abreu dedica ao jejum, conforme explicado acima.

Reconhecida pelo Guiness World Records como a mancha mais extensamente estudada na história da humanidade, a busca por “Abreu's Stain” é hoje uma das vinte mais solicitadas no Google mundial, e cogita-se recolher uma amostra da mesma para incluir na próxima cápsula do tempo a ser lançada ao espaço pela NASA.

Há cerca de três meses, sem causa aparente, a mancha de Abreu começou a demonstrar comportamento atípico. O mais atípico possível, em se tratando de uma mancha de sofá: tornou-se intermitente, ou seja, era visível num dia e invisível no outro. Munidos de câmeras ultramodernas, cinegrafistas mantêm-se a postos com suas lentes e luzes apontadas para a nódoa mais célebre do universo, esperando captar o momento de mudança do visível para o invisível, ou vice-versa. Espera-se para as próximas horas a divulgação de boletim com notícias atualizadas sobre o caso.



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sábado, 11 de outubro de 2014

ANA LÓGICA



Logicamente, Ana levanta-se naquele dia do mesmo jeito que nos outros todos, maldizendo o cuco de madeira capenga que lá da sala diz que é tempo, que a vida urge e exige Ana de pé e de prontidão, a postos para matar o leão da vez.

De frente pra urna eletrônica, saca do sutiã a colinha que trouxe de casa com os nomes dos cabras menos ruins. Acha que aquilo é voto, tenta encontrar uma fenda na geringonça para enfiar o papel.

- Como é que é isso, seu mesário?

Feito o dever cívico, passa pela padaria em frente à igreja, com suas duas televisões de cachorro e dezenas de frangos girando. Lembra do dezembro à porta e seus piscas nos pinheiros, Ana dos gorros tricotados de Noel, logo só se vê e só se fala nessas festas de exageros, nesses tempos de advento onde o que menos importa é o menino redentor desse mundo de pecados.

As cartas atrasadas a remeter, as tampas de margarina a envelopar e enviar ao sorteio com a pergunta respondida, as agulhas de costura agora quase tão raras quanto as de vitrola, os lençóis no quarador, o necessário acato aos filhos que Deus manda (todos com a mecha de cabelinho guardada na gaveta da penteadeira). Ana e a lógica das palavras cruzadas na sala de espera e no aguardo do tempo de tintura no cabelo. Vai treinando, Ana, a sua menina mais velha nas prendas do lar, leva ela com você ao açougue e revela passo a passo o segredo do sucesso do seu lendário picadinho, o melhor do quarteirão - a começar pela alcatra moída duas vezes, sem um tiquinho de gordura, à moda da velha vó.

Acontecesse o que fosse, ela continuaria desse jeito – Ana de células, fluidos, anáguas, aquário de peixes na sala e fichas de orelhão no porta-níqueis. Tão analógica quanto o moinho do homem da garapa, a agenda da Tilibra e a fita cassete. Aquela que ainda pensa e vai morrer cismando que boleto sem autenticação mecânica não é boleto pago. Que pendura chumaço de bombril na antena da TV de tubo catódico um pouco antes da novela das seis, enquanto mexe o doce da vida amarga.


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sexta-feira, 3 de outubro de 2014

JUNTE-SE A NÓS!




Chega de candidatos de ocasião, que dão as caras agora e que, findo o pleito, escafedem-se como ninjas em filmes de kung fu. Basta de aproveitadores com sua verborragia inflamada e estéril. Cheios de programas vazios, esses embusteiros se apresentam no vídeo com a mão espalmada, apregoando as cinco manjadas prioridades de governo: saúde, habitação, emprego, transporte e segurança. Quero fazer frente a esse engodo que caçoa da boa-fé do eleitor, e para tanto apresento propostas concretas.

Darei combate sem trégua àqueles que são contrários ao nepotismo saudável e desinteresseiro, ao cartorialismo firme e atuante, à legítima barganha de cargos públicos em todos os escalões, ao voto de cabresto a peso de mortadela e ao assistencialismo de fachada.

Atendendo a uma antiga reivindicação da sociedade organizada, azeitarei a máquina administrativa para que funcione a contento. Confiante em minha vitória nas eleições que se avizinham, já deliberei à minha futura equipe de assessores uma tomada de preços para importação do óleo de oliva da marca Gallo (com o perdão do cacófato), extra virgem, em caixas contendo 120 latas de 500 ml. Havendo excedente, o azeite será utilizado para regar as pizzas de minha legislatura, que sem dúvida serão muitas e de sortidos recheios.



O eleitorado da terceira idade terá acesso a um novo modelo de prótese, composto por arcadas lisas e inteiriças, ou seja, sem as repartições a que chamamos “dentes”. Uma peça é afixada no maxilar superior e outra no maxilar inferior. O efeito estético é avassalador, assemelhando-se ao que se vê na maioria dos personagens de desenhos animados. Além de facilitar a higiene bucal do idoso, essa revolução protética dispensa o uso de fio dental, desonerando assim os cofres públicos da compra deste item para os asilos. A fôrma do novo artefato já está pronta e o produto chegará aos postos de saúde em 3 tamanhos.

Implantação do “Halloween Tupiniquim” no calendário de festividades, com o objetivo de manter vivas nossas mais ricas tradições folclóricas. Com ele, diremos não ao imperialismo americano e suas bruxinhas babacas, marshmellows de variadas cores e cabeças de abóbora iluminadas. Os monstros ianques darão lugar ao Boi da Cara Preta, ao Saci, à Cuca, ao Boitatá e ao Chupa-Cabra. A gurizada, por sua vez, passará pelas casas à cata de doces típicos da nossa culinária, como o quebra-queixo, a pamonha e o pé-de-moleque.

Incentivos fiscais para pequenos produtores de mandruvá em cativeiro, projeto que acalento desde os tempos de vereança. Devo lembrar aos eleitores que a indolente lagarta, abundante em nossa região, tem eficácia comprovada na erradicação do escorbuto e de outras hipovitaminoses que assolam as populações desassistidas, especialmente as comunidades ribeirinhas.

Programa “Espana, Brasil!”, que prevê a produção de espanadores com pena de codorninha do mato. Toda a produção será escoada para acabar com o pó de países vizinhos, como a Bolívia e a Colômbia.

Se suas aspirações encontram eco em nossa plataforma de governo, junte-se a nós. Empunhe nossa bandeira, leve no peito nosso botom, convença seu vizinho ou colega de trabalho de que a nossa causa é a causa de todos. À vitória, companheiros!



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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