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domingo, 29 de setembro de 2019




Paçoca é um negócio viciante. Heroína é fichinha, é só o feminino de "herói" perto do poder de dependência do singelo docinho de amendoim, tão inocente na aparência. O paçocainômano perde o humor, a diplomacia, a razão, a estribeira e até os valores básicos da educação de berço se faltar a Santa Helena nossa de cada dia. 

Agora, aparece no mercado a paçoca-moeda - a versão diet da paçoca-rolha. Não é difícil imaginar o porquê do nome "paçoca-moeda", bem como seu formato e especialmente sua espessura. Concebida para o dependente em fase de semi-abstinência, algumas versões chegam a ser mais finas que uma hóstia. 

A exemplo das paçocas-rolha, a embalagem contém também 50 unidades. A grande diferença em relação ao modelo rolha está na altura do produto, que de aproximadamente 4 centímetros encolheu para 3 milímetros. Já o preço, duplicou. Ou quadruplicou, a depender da região, da lei da oferta de da procura e da quantidade de obesos mórbidos por quilômetro quadrado. 

E aí caímos no inexplicável paradoxo de quase todos os produtos apregoados como diet, light, sugar free, leve, baixos teores e congêneres. Se a formulação tem menos açúcar, menos gordura e menos tudo quanto seja ingrediente engordativo, é natural que o preço também seja magrinho. Afinal, é uma versão econômica e não "anabolizada", se comparada ao original. Entretanto, observa-se o contrário. A impressão que se tem é que o fato de deixar de  acrescentar glicídeos, lipídeos e carboidratos custa mais caro que incluí-los na porcaria. Alguém consegue entender este perverso e invertido raciocínio? Em peso líquido, diminuição de 500g para 75g. No preço, aumento de R$8,75 para R$14,20. O consumidor diz “amém”, leva de bom grado e consciência tão leve quanto a fórmula do rótulo. 

O duro mesmo é quando, nas clínicas de recuperação, depara-se com um paçocainômano que, além do vício, apresenta também obesidade. Aí o rehab é tenso. Fora a questão da dependência física e psicológica, há que se lidar com a necessária perda de peso e o drible na sensação de saciedade provocada pela ingestão de amendoim. Daí o surgimento de um bem articulado esquema de tráfico de paçocas-rolha, comandado por gente infiltrada nas próprias clínicas. Um círculo vicioso que perpetua o consumo da droga e mantém o usuário refém de uma quadrilha criminosa - que começa no plantador de amendoim e termina nos enfermeiros dos hospitais de desintoxicação. E para desmontar esta cadeia, será preciso muita moeda. De metal, não de paçoca.





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sábado, 21 de setembro de 2019

A REVOLTA DE PHEBO E DE MINERVA




Para os humanos, tempo é o recurso mais precioso. Para nós, deuses, este mesmo e valorizado tempo não quer dizer nada. Pairamos além dele e de seus efeitos. 

Se há milênios nos tornamos mitos, certamente não foi por acaso. Temos autoridade e poderes que justificam a idolatria. Somos deuses e merecemos respeito. Independente de acreditarem em nós ou não, de nos renderem adoração ou não, o fato é que estamos muito acima de vocês, mortais. 

Na Antiguidade dos terráqueos estivemos muito ativos, em Atenas e em Roma. Demos um cochilo para descansar e acordamos agora, naquilo que vocês chamam de século vinte e um, com tudo virado pelo avesso. 

Os deuses Minerva e Phebo estão especialmente revoltados, e não é para menos. Minerva, a deusa romana da sabedoria, da guerra, das ciências e das artes, por ter se transformado, inadvertidamente, em detergente. Vendido a 1,49 em qualquer venda dos rincões tupiniquins.

Phebo, irmão gêmeo de Diana, o deus do sol e da luz, sem autorização foi rebaixado à condição de sabonete. Um bom sabonete, é preciso reconhecer, mas lançado no mercado sem que ao dono do nome se desse ciência, o que constitui crime. 

Em resumo: vocês, humanos, estão fazendo dinheiro grosso utilizando nossa boa imagem. Ou, como vocês denominam atualmente, estamos - sem autorização nossa - atuando como influenciadores, ao emprestar involuntariamente nosso bom e honrado nome a produtos dos quais não conhecemos a fama e muito menos a qualidade. 

Pode até ser que sejam bons, mas não fomos consultados e viramos, à revelia, avalizadores de farinhas de mandioca, automóveis e até preservativos - camisa de Vênus, lembram-se? Com que direito se apoderaram do nome de uma de nossas deusas mais conhecidas para batizar um produto tão chulo e de duvidosa eficácia?

Sim, humanos, vocês devem inúmeras respostas às nossas perguntas. Um pouquinho mais de sono e teríamos acordado no século vinte e dois, e as respostas teriam que ser dadas por seus netos, não por vocês. Façam alguma coisa. Deuses nervosos são um perigo.




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domingo, 15 de setembro de 2019

PORÃO AO MOLHO MOFADO




Naquela quarta, se bem me lembro, desci os degraus de quatro em quatro e me enovelei ao porão mofado. 

Ursos sem as tripas, de olhos de vidro e pelúcias puídas, me olhavam medrosos em sua ciranda, palitando os dentes com agulhas de vitrola. 

O tufão das sombras velhas abria as tampas dos baús, violentando o sono eterno das ausências. E todo o tempo sem volta bailava ali sua valsa e me tirava pra dançar, reduzindo a obra de Deus a três compassos de Tchaikovsky.

Boiando para adiar a morte, via a ponta do meu nariz quase encostando no que ao mesmo tempo era o teto daquele antro de cupins e o assoalho da casa. 

Era questão de tempo. Eu viraria o porão de mim. 



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domingo, 1 de setembro de 2019

TRATAR COM O PROPRIETÁRIO




O encrenqueiro mora de graça, em uma das doze kitnets. Por contrato firmado com o proprietário, tem a obrigação de renovar o plantel de moradores trouxas no máximo a cada dois meses. 
Armas e estratagemas não faltam.
. Som alto 24h, com o devido cuidado na escolha "a dedo" de finíssimo repertório.
. Despejo "involuntário" de detritos de lixo nas áreas comuns, entornados no trajeto do apartamento do encrenqueiro até a lixeira coletiva.
. Gatos e cachorros soltos, distribuindo poças e montes de número 1 e número 2 nas portas de todas as unidades, indistintamente. 
. Nuvens de maconha.
. Simulação de ato sexual ao longo das madrugadas.
. Com tantos e tão insuportáveis incômodos, em questão de dias a situação não se sustenta mais. O contrato de locação, no entanto, é bem claro: seu rompimento resulta em multa no valor de 4 aluguéis, a ser paga pela parte infratora. Como existe certa "gordura" para negociação, o proprietário reduz a multa a dois aluguéis e meio, depois de muito rogo do locatário. O valor pode ainda cair para apenas dois aluguéis, caso o inquilino desocupe o imóvel mas já deixe a indicação de outro ocupante. Para conseguir um incauto que o substitua, o morador terá que apregoar o conjunto de apartamentos como o melhor lugar do mundo. Ou seja, a vítima da vez acaba por fazer a prospecção da vítima futura. 
. Contas de água e luz de todos os apartamentos estarão sempre em dia, já que é obrigação contratual do inquilino transferir a titularidade das contas para o seu nome. O proprietário mantém sua indústria de brigas sem a mínima despesa. E com os apartamentos invariavelmente em ordem, pois cada desocupação implica em nova pintura.
. Como o trabalho do encrenqueiro resume-se a tramar novos e sucessivos atritos entre moradores, ele se aproveita do horário comercial, em que todos habitualmente estão fora de suas casas, para espalhar discórdia. Um dos golpes, que costuma resultar em BO, tem o seguinte modus operandi:
1) Remoção do miolo da fechadura de um dos apartamentos. O miolo irá voltar para a fechadura supostamente arrombada, pois o inquilino golpista possui chave de todas as portas de entrada. A ideia é apenas simular uma violação.
2) Foto da porta semiaberta.
3) Roubo pelo golpista de eletrônicos ou outros bens de valor.
4) Ao chegar do trabalho, a vítima do apartamento 3 é comunicada pelo encrenqueiro que o morador do 5 invadiu seus domínios, fugiu carregando coisas mas não foi fotografado pois escapuliu enquanto o encrenqueiro buscava seu celular. Assim, só a porta aberta foi fotografada.
5) O grande diferencial deste estratagema é garantir duas mudanças de uma só vez, duas quebras de contrato e duas multas a serem cobradas.
6) Para facilitar as coisas, encrenqueiro e proprietário se unem para a segunda parte da mutreta: a indicação de um sujeito que trabalha com carreto, e que cobra a metade do preço de mercado para fazer a mudança.
7) No "trajeto", o caminhão é "assaltado". É claro que os móveis do inquilino são solidariamente repartidos entre os autores da trama. Lembrando que são dois carretos, que significam dois roubos.
8) Na prática, cada kitnet do conjunto é alugado em média por 2 mil reais/mês, se computados multa e venda dos móveis quando do "roubo" da mudança. 
Tudo muito simples, rápido e rentável. 



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