.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

COLECIONÁVEIS




ELA JUNTAVA PARA TIRAR

Ela era obcecada por batons, desde a precoce menarca, aos 11. Tinha de todos os tons, texturas, sabores e procedências possíveis. De Givenchy aos de rodoviária. Guardava-os alinhados, em filas intermináveis pela casa, a uma distância de 3cm entre um e outro. Como aqueles quilométricos caminhos de dominó do Guiness Book. Dispunha o acervo por cores, das mais claras para as mais escuras, numa escala que lembrava os leques de tonalidades das lojas de tinta. Era celibatária por opção. Aqueles batons aos milhares talvez servissem para lembrá-la de que não seria aconselhável usá-los. De fato, nenhum deles nunca chegara nem próximo da sua boca. Fálicos, pecaminosos, dão ideias indecentes. Deus castiga. Precisava muito proteger o mundo dessas armas ameaçadoras. Essas ogivas escarlates, de alto poder de destruição. Por isso ia recolhendo todos os que via e os que pudesse comprar, um serviço que fazia à moral e aos bons costumes. Também aceitava doações. Somava-os, a contragosto, para subtraí-los da santa obra do Senhor.



ELE TIRAVA PARA JUNTAR

Ele era o que se poderia chamar de um colecionador ao contrário. Colecionava as mulheres que não teve. Às escondidas, tirava fotos de todas elas para depois fazer montagens com ele ao lado. Quanto mais indecente o flagrante, quanto menos roupa na hora do clique sem permissão, maior o gosto da conquista. Muito mais satisfatória a recompensa pela captura do impróprio, daquilo que nunca poderia ser dele. No porão da casa, ia crescendo a cada dia a sua montanha de caixas de sapato, com as fotos adulteradas e organizadas por critérios doentios, que só a ele faziam sentido.



E aconteceu que, num belo dia - e um belo dia sempre chega para todos, mesmo para os mais arredios colecionadores - ele, pela primeira vez, não teve que fazer montagem. E ela inaugurou aquele que, dos batons, lhe pareceu o menos vulgar. Rouge 301 Delight, de Helena Rubinstein. Juntaram-se, e de todo o resto se livraram sem remorso.



© Direitos Reservados

sábado, 20 de fevereiro de 2016

ANTES TARDE DO QUE NÃO COMPROVADO



Foram longos e exaustivos anos de pesquisa, mas a ciência finalmente comprovou a relação entre a utilização diária do fio dental e a diminuição do efeito "tchauzinho" nos músculos tríceps, especialmente os femininos. 


Conheça um pouco mais sobre o chamado "Efeito Tchauzinho" ou "Teste do Tchauzinho"

Temido pelas mulheres a partir da quarta década de idade, o efeito caracteriza-se pelo excesso de flacidez nos braços, que faz a pelanca balançar em movimento de pêndulo, notadamente quando se faz o gesto de "tchau" a outra pessoa - daí o bem humorado nome. Objeto de investigação por diversos ramos da medicina, pela indústria cosmética, academias de ginástica e clínicas de fisioterapia, o estudo divulgado há cerca de duas semanas pela Universidade de Michigan aponta que o efeito tende a diminuir quanto maior e mais frequente for a limpeza com fio dental na higiene odontológica.

A descoberta, que até o momento não passava de conjectura teórica, agora está documentada laboratorialmente por uma série de ensaios conduzidos por equipes multidisciplinares da referida Universidade. Comprovou-se, com todo o rigor que a moderna metodologia científica exige, que os movimentos de vai-e-vem do fio nos espaços interdentais, por período ininterrupto de 43 ou mais minutos, tem a propriedade de fortalecer os tríceps braquiais e aumentar a massa muscular na região à razão de 0,06% ao dia. Se maior a pressão do fio contra as paredes dentais no processo de limpeza, observa-se um consequente incremento da musculatura desenvolvida, chegando a índices de 0,08% diários, número até o momento inimaginável para os especialistas da área.

Temos aí um círculo virtuoso, com ganhos concomitantes para a saúde, a estética e a autoestima da pessoa, que transforma o que seria uma tarefa mecanicamente enfadonha em espetacular recompensa psicológica, eliminando traumáticos constrangimentos e até fobias sociais. Há registros de casos mais agudos onde o paciente evita qualquer forma de contato ou vínculo pessoal, por antever a eventual necessidade de um "tchauzinho" protocolar, o que poderia arrastá-lo a um quadro depressivo de consequências imprevisíveis. Resultado: fuga sistemática de toda e qualquer ocasião de despedida, ainda que seja remota a possibilidade de acenos.

Outro curioso comportamento detectado pelo estudo é que muitos "sabotam" o teste para enganar a si mesmos, rotacionando apenas as mãos e policiando o natural chacoalhar do braço, para não encarar a sua dura realidade fisiológica. Tamanha é a paranoia de fixar a atenção no braço, para que ele não se mexa, que a pessoa despede-se olhando para os próprios tríceps, e não para quem está indo embora.

Dois professores ligados ao MIT - Massachusetts Institute of Technology, criticaram duramente a utilidade da pesquisa e os milhões de dólares gastos na sua subvenção, argumentando que a simples escovação de dentes traria benefícios idênticos, e que a humanidade pouco tem a ganhar com a descoberta. Esta tese é contestada pela Ordem dos Cirurgiões Dentistas de Cascais, que vê na escovação uma eficácia discutível e não padronizada para o enrijecimento do músculo do braço, pela variação da consistência das cerdas.

© Direitos Reservados

sábado, 13 de fevereiro de 2016

CINCO ESTRELAS DA QUARTA IDADE




Meu caro Ludovico, seu doidivanas incorrigível

Esse mundo dá mesmo muitas voltas. Nem bem abandonei o ramo de cosméticos à base de algas marinhas e eis-me frente a frente com um novo desafio profissional: organizar as atividades da equipe de recreação de um hotel voltado à chamada “Quarta Idade”, ou seja, aquele pessoal com mais de 95. Talvez o termo soe estranho aos seus ouvidos, mas a mídia em breve irá massificá-lo, com direito até a merchandising na novela das oito.

Na verdade, preferia encarar uma turminha mais nova. Mas o mercado da tão falada “melhor idade”, dos 65 aos 94, já está mais que saturado. Os rapazes e moças dessa faixa etária já têm muito o que fazer, há pacotes aos borbotões para todos os gostos e bolsos.

Sendo o meu produto inédito, o dilema no momento é formatar os eventos para o grupo de monitores. E o amigo há de convir que meu leque de opções é um tanto quanto escasso, tendo em conta o público-alvo e suas naturais limitações. Todavia, seguem algumas idéias que me vieram à mente, para as quais peço sua ponderada e sempre bem-vinda avaliação.

Aula de esteira, de crochê ou de tricô, confeccionada em linha de algodão cru. Uma forma interessante de manter as velhinhas entretidas por até 3 semanas, dependendo do tamanho da esteira, do ponto a ser utilizado e da desenvoltura da aluna no manejo das agulhas.

“Mergulho nas Cataratas”, um workshop onde especialistas irão expor aos anciãos as mais recentes novidades no tratamento e controle desta insidiosa enfermidade.

Trilhas radicais: vinte tabuleiros de trilha, dispostos simetricamente no saguão das piscinas térmicas, promoverão a integração dos hóspedes e farão a alegria da velharada.

Pensei também na “Hora H gá”. O nome infame ainda é provisório, mas foi o que deu pra arrumar por enquanto. Trata-se de um jogo de charadas, do tipo “O que é, o que é”. Exemplo: começa na cervical, irradia para a região lombar, desce o nervo ciático até a batata da perna e só cessa com uma dose cavalar de Cataflam. Qual o nome da doença?

Tem ainda aquela brincadeira da estátua, onde ninguém pode se mexer, mas a galera das bengalas, andadores e afins ficaria em evidente desvantagem... a recomendação da diretoria é não deixar ninguém constrangido, entende?

Meia Maratona: ganha quem conseguir dobrar o maior número de pares de meia em um minuto. Provas nas modalidades meia três quartos, meia-calça, meia de lã e meia de nylon.

Estou prevendo a realização de baladas, com início às dez da manhã e término às quatro da tarde. A dupla de DJs Janota e Mariquinhas entreterá os requebrantes com uma sensacional seleção de valsas, dobrados e maxixes.

Encerrando, o “Vovoyeur”. A proposta consiste em várias câmeras escondidas, que flagarão toda a pouca vergonha que vier a ocorrer nos cantinhos e biombos, na calada da noite, entre os senis convivas.

Bem, vou ficando por aqui, no aguardo de seus comentários críticos e, se possível, de sugestões para o meu projeto. Meu amigo, estou num mato sem cachorro e não posso perder esse emprego. Ponha-se no meu lugar, ou melhor, ponha-se no lugar de um desses centenários hóspedes e diga sinceramente se as idéias lhe atraem.

Do amigo de sempre,

Capistrano

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

OBRAS QUASE PRIMAS



JESUS, ALEGRIA DOS HOMENS

Sr. Johann,
Eu tentei falar ontem, antes de ir embora pra casa, mas quando eu terminei meu serviço o senhor já tinha saído pra tocar órgão na missa das cinco. É que pela manhã, arrumando sua mesa, esbarrei no tinteiro aberto, que estava em cima da partitura que o senhor vinha escrevendo. Desculpa, mas não sobrou uma semicolcheia pra contar a história. Sei que o transtorno não vai ser grande, pois o senhor compõe muito o dia todo e é capaz de ainda estar com a melodia na cabeça. Agora, se me permite o palpite, eu penso que Jesus não é a alegria dos homens coisa nenhuma. Achei esse título muito desrespeitoso, com todo respeito. Jesus é a salvação, o redentor, o refúgio, o escudo, a fortaleza. Mas alegria soa estranho, parece meio caricato, não acha? Sacrilégio. Mas também é só um palpite, o compositor é o senhor, longe de mim me meter onde não sou chamada...
Desculpa qualquer coisa.
Ingrid




DOM QUIXOTE

Foi um vento noroeste que chegou de repente, muito forte, abrindo com violência a porta da oficina onde o livro iria começar a ser impresso. Voaram todas as folhas manuscritas do original, sobraram só duas que se enroscaram na roda de uma carroça. Era como se os moinhos de vento do livro se pusessem todos a ventar ao mesmo tempo. E com aquelas milhares de folhas perdidas lá se foram também Sancho Pança, Dulcineia del Toboso e tantos outros personagens que, junto com o próprio Dom Quixote, provavelmente fariam do livro um fracasso retumbante, que a muito custo chegaria a 100 exemplares vendidos. E para os parentes do Cervantes, com toda certeza. Novelas de cavalaria não despertam interesse, é um gênero a que ninguém mais pode acrescentar algo de original.




MONA LISA 

- Vicenzo, pra quando que é pra fazer a moldura desse aqui?
- Joguei pra terça à tarde, tem mais uns doze quadros na frente. Semana tá puxada.
- De quem que é?
- Um barbudão que mora aqui perto. Tal de Da Vinci. Você já deve ter visto, vive trazendo quadros pra gente emoldurar.
- Humm, sabe que essa mulher aqui do quadro não me é estranha... não lembra a esposa do mercador?
- Mas será? Enquanto o marido tá mercadando por aí, ela ataca de modelo pro barbudo? Esquisito, heim.
- Não sei, pode ser que eu esteja enganado, mas eu acho que é ela, sim.
- Pintura esquisita, o sujeito quis dar um efeito esfumado nos olhos e na boca, só que acabou virando defeito. Não está nem séria, nem sorrindo. Ficou no meio do caminho, né? Coisa de mirim, essa pintura deve ser de algum aluno do velho.
- Então, e encomendaram a moldura mais cara. Desperdício. 
- Ai, olha aí o que aconteceu... A gente se distrai na conversa, ô meu Deus do céu...
- O que é que foi?
- Derrubei café aqui, bem no nariz da mulher. E a tinta ainda estava fresca, vê só o borrão que ficou!
- Perdeu grande coisa, não. Quando o cliente vier aí você explica a história, pede desculpa e dá duas telas novas pra ele, como forma de ressarcimento. Fazer o quê, acontece. E como deve ser mesmo trabalho de aprendiz, o barbudo vai ficar no lucro. A primeira tela vai servir para esse aluno ruinzinho ter a chance de fazer algo melhor. A segunda, ele usa pra treinar outro molecote.
- Boa. Acho que ele vai entender. 


© Direitos Reservados