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sábado, 27 de abril de 2013

BETÃO IN CONCERT


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- Quero 32 toalhas brancas e bem felpudas no camarim. Uma para cada sonata que compus. Pode me chamar de supersticioso, mas é isso. O Mozart pede mulheres e caixas de absinto, antes e depois dos concertos, e ninguém fala nada. Eu até que exijo muito pouco, só as toalhas e uma travessa de arenque com batatas. Nenhuma excentricidade.
- E o bis? Já escolheu o que vai ser?
- Vai depender de como eu estiver na hora, não vou resolver isso agora, de jeito nenhum.
- Mas Beethoven, a orquestra precisa saber para ensaiar. Como é que...
- Eles que se virem. Todo mundo não me chama de louco? Deixa eu fazer jus à fama. Pode ser a Pastoral, mas não dou certeza.
- Espera aí, uma sinfonia inteira como bis? O público vai cansar, são cinco movimentos.
- Quem quer bis de dois minutos que vá assistir à Madonna. Chega de bisar com a "Pour Elise" e fazer merchandising gratuito pra Ultragas. Aliás, maldita a hora em que vendi os direitos dessa peça. Nem eu aguento mais aquele caminhão.
- Tá, tudo bem. E quem abre o show?
- Liga pro celular do Schubert e vê se ele está disponível, se bem que até anteontem ele estava em estúdio mixando uma trilha de novela. Mas fala pra ele pegar leve, alguma coisinha pouco barulhenta. O concerto é meu, não dele. Nada de roubar a cena e me entregar o público destroçado.
- E a coletiva de logo mais, posso confirmar?
- Contanto que os benditos repórteres falem bem perto do microfone, pode. Tô de novo com aquele zumbido estranho no ouvido, preciso marcar um horário no otorrino pra ver o que é isso.
- Bom, mudando de assunto, estou aqui com o layout que a agência de promoções enviou, divulgando o concerto em Praga, no dia 12.
- Olha, que não me venham com aqueles trocadilhos infames que andaram criando ultimamente... "Beetho ven aí" ninguém merece!! Não sei onde estava com a cabeça quando aprovei aquela merda.
- É, mas veio gente pra caramba.
- Daqui pra frente quero espaços menores, shows mais intimistas, tipo banquinho e violoncelo. No máximo um conjunto de câmara, uma coisa mais unplugged, sabe como é?
- Mas não podemos mudar isso agora, no meio da turnê. Só na orquestra temos mais de 150 músicos, todos com contrato assinado até setembro do ano que vem.
- Antes que me esqueça, aqueles backing vocals na nona estavam muito esganiçados. Pode pôr na rua todas as sopranos e me traga gente nova, que não assassine meus hits. Respeito à partitura é bom e eu gosto. Tem outra: a tietagem na fila do gargarejo fica puxando fumo demais. Até eu fico maconhado por tabela e acabo errando a regência. Reforço de segurança neles. E, pelo amor de Deus, não me deixa ninguém subir ao palco pra rasgar minha roupa.
- É o preço da fama, Betão.
- Não me chama assim, ou então vai pra rua também. E aí, meu filho, o que vai te sobrar é um ou outro freela com o Haydn. Tá a fim?

  
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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 20 de abril de 2013

SOBRE NOMES







Não é propriamente novidade dizer que sobrenome é indicativo de classe social. Uns poucos exemplos práticos mostram o quanto esta teoria é verdadeira.

Veja o caso de algumas famílias tradicionais paulistanas, que remontam às oligarquias cafeeiras e ao mecenato no século 19 e início do 20: Almeida Prado, Cordeiro de Paiva, Paes de Barros, Freitas Valle, Alcântara. Desafio alguém que me apresente um entregador de pizza com um desses sobrenomes. Sem chance de encontrar um descendente dessa linhagem fazendo compra de mês, tomando ônibus ou engolindo fogo no semáforo.

Tente imaginar um Whitaker favelado. Um Woodward feirante. Um Amstalden sem telefone, sem carro e que não more num sobradão de pelo menos 6 suítes. Aponte um Charboneau sem emprego, que não tenha herdado ou não esteja esperando a homologação da partilha pra veranear em Capri. Matarazzo ou Bulhões prestando concurso para lixeiro, conhece algum?

Desse eu gosto: Johansen. Coisa mais pomposa essa pronúncia: “Iorranssen”. Alguns falam “Iórranssen”. Tanto faz - um cara com esse nome não pode ser pobre, nem remediado. Tem uma altivez que vem de berço e o acompanha até o túmulo. Integra o seleto rol dos sobrenomes “pés-de-cabra”, que vão abrindo portas por onde quer que sejam pronunciados. Mesmo na improvável hipótese de ser um rastaquera, é tratado como dono de capitania hereditária.

Pegue agora um José da Silva. Você já ouviu falar de um José da Silva milionário? O dono da “Casa José Silva” é um que se deu bem, sou obrigado a reconhecer (nem sei se existe essa grife ainda). Mas é exceção entre milhões de homônimos, os daqui e os de terras lusitanas. O mesmo vale pra João de Souza, Maria das Neves, Sebastião Lopes. Donos desses nomes são geralmente fadados aos escalões subalternos, uma espécie de baixo clero com ascensão quase impossível. Um Souza anônimo e pobre está cumprindo a sua sina. É igual a tantos outros Souza espalhados por aí. Ser pobre é o que se espera dele, qualquer desvio de rota é acidente de percurso.

É interessante observar, por outro lado, a existência de uma certa “classe média” entre os sobrenomes. São aqueles nem muito comuns e nem muito aristocráticos, que ficam na zona intermediária da pirâmide onomástica. Nesse sortido balaio cabem os Melo, os Leite, os Albuquerque, os Peres, os Marques, os Gomes, os Barbosa – só pra ficar entre os portugueses. Um universo onde temos, em 90% dos casos, aquela família típica moradora de casa ou apartamento com sala em L, três quartos, um carro na garagem. Essa família frequenta clube, vai à igreja e tem alguma coisa na poupança. Aí se encontram também, grosso modo, aqueles que têm sobrenome de árvore – Pereira, Oliveira, Nogueira, Carvalho, Pinheiro. Além dos Ramos e os Matos, que não chegam a ser árvores mas pertencem ao reino vegetal. Como os Campos. Fico imaginando a chegada de um Machado, o estrago que não faria a essa turma.

Seguindo a lógica de que a terminação "eira" (com ou sem beira) geralmente designa uma árvore, Silveira seria uma árvore de Silvas? Escarafunchando, a gente descobre que Silva também é verbo. Eu silvo, tu silvas, ele silva. Mas também quer dizer “selva”, e por aí vai...

Do reino animal, temos uma variada fauna representada em território tupiniquim pelos Raposo, os Lobo, os Coelho, os Pinto, os Carneiro, os Leão, os Bezerra e outros mamíferos e ovíparos. Já os Magalhães e os Guimarães, embora relativamente comuns, transmitem uma dignidade muito peculiar. Não chegam a ser Johansen, mas certamente passam longe dos Silva, dos Souza e dos Santos. Talvez pelo “ães” no final, não sei. O fato é que a mim, pelo menos, parecem imponentes.

Aí caímos em sobrenomes do tipo Salgado e Penteado. Seriam atributos do patriarca? Um sujeito penteado ainda vá lá. Mas salgado???

Finalizando, temos os deliberadamente bizarros, independente de extrato social. Como o Inocêncio Coitadinho Sossegado de Oliveira, o José Casou de Calças Curtas, o Oceano Atlântico Linhares, o Sete Rolos de Arame Farpado e a folclórica Naida Navinda Navolta Pereira. Esses sim, devem ao nome a glória de jamais serem esquecidos. Ainda que essa notoriedade não reflita, necessariamente, na conta bancária.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 13 de abril de 2013

XEQUE



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Numa partida de xadrez, qualquer deslize pode ser fatal. E os possíveis deslizes, no caso, estão diretamente relacionados à qualidade do feltro colado sob cada uma das peças do jogo. É sobre essa questão de complexidade extrema que o autor resenhado debruçou-se ao longo de dois anos, numa defesa de tese que chega agora em forma de livro ao mercado editorial brasileiro.

Os primeiros capítulos são dedicados ao enunciado teórico no qual o autor sustenta o fato de que, a partir da rugosidade da superfície do tabuleiro, podemos estabelecer a espessura ideal para o feltro das peças, a fim de que se evite o indesejado deslizamento. A equação, exaustivamente exposta em todas as suas variáveis, põe por terra os fundamentos até então cientificamente aceitos de que a relação feltro/tabuleiro era meramente de ordem estético-funcional, não interferindo de maneira determinante no resultado do jogo.

Ora, sendo as pelejas enxadristas marcadas pela habilidade dos jogadores em manejar raciocínio e estratégia, tornam-se inócuos estes esforços se os lances meticulosamente estudados não encontrarem amparo suficiente para que se mantenham firmes sobre o campo de ação onde interagem os agentes, ou seja, o tabuleiro.

Outros fatores interferentes, segundo o autor, podem ainda comprometer o já naturalmente instável embate das forças que se rivalizam. Dentre elas, destaca-se a influência do vento sobre o posicionamento correto das peças nas partidas ao ar livre - especialmente os peões, quase sempre de menor peso em função de suas dimensões reduzidas, e portanto mais vulneráveis. Há ainda outras constatadas, mesmo que não preponderantes para efeito estatístico de suas ocorrências: movimentações de terra causadas por terremotos, trepidação pela passagem de comboios nas proximidades, esbarrões de cotovelos durante o processo de abanamento de moscas e até mesmo espirros dos players, quando em velocidade superior a 55 km/h.

Dentre as diversas soluções levantadas de prevenção aos deslizes, algumas destacam-se pela originalidade de abordagem. Como esta, exposta no capitulo 8:  “Em toda e qualquer jogada, deve-se preferencialmente remover a peça de sua posição original, saltar sobre as demais e reposicioná-la sobre a nova casa, impedindo assim a fricção do feltro sobre o tabuleiro, o desgaste prematuro de ambas as superfícies e suas desastrosas consequências.”

Inúmeras partidas, algumas delas valendo título mundial, já foram brutalmente interrompidas pela repentino desmonte do jogo, após horas de certame. O autor recorda, inclusive, o emblemático episódio envolvendo os russos Sharopov e Strochnikov, quando este último, ao ajeitar-se em sua cadeira, deu com o joelho direito na quina da mesa e não deixou pedra sobre pedra, invalidando a disputa.

Avesso ao excesso de academicismos, o que seria justificável pela aridez teórica do assunto, o autor consegue a proeza de conduzir o leigo em sua argumentação de forma lúdica e prazerosa, fazendo com que as 573 páginas mais pareçam um romance que um tratado científico.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 6 de abril de 2013

DUBLÊ DE SÓSIA


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Encontra-se oficialmente aberto o inquérito para apuração de crime de falsidade ideológica contra Joseph Klariston Jr., o lendário tintureiro de Baltimore e uma das glórias do Estado de Maryland.

O escândalo veio à tona no auge da popularidade de Klariston, com sua imagem ostensivamente estampada em capas de revista, comerciais de sabão em pó e colunas de fofocas de celebridades. As suspeitas de falsidade ideológica ganharam força com a constatação de aparições simultâneas de Joseph em eventos e países diferentes, o que levou evidentemente à hipótese de que o tintureiro, além de hábil em multiplicar sua fortuna, seria também perito em multiplicar a si mesmo. As investigações se aprofundaram a ponto de Klariston não conseguir mais negar as evidências, declarando-se réu confesso em entrevistas recentes.

Entenda melhor o caso
O estrondoso sucesso mundial de suas singulares técnicas de lavar, passar, tirar manchas de WD40 e restaurar botões de madrepérola fora de linha de produção renderam a Klariston uma notoriedade acima da sua capacidade de comparecimento a coletivas de imprensa, palestras e talk-shows. Daí para o delito foi um passo. Ele conta: "Comecei com os sósias, que nos primeiros anos eram só uns quatro ou cinco. O assédio da mídia e os convites não paravam de aumentar, e fui forjando mais e mais sósias. Cheguei a abrir uma fábrica de sósias própria, em um alojamento subterrâneo no deserto do Atacama, a meu ver o lugar mais insuspeito para algo do tipo. Assumi um layout de rosto e de vestimentas bastante básico e fácil de reproduzir, para ajudar na falsificação. O trabalho maior era treinar os sósias na impostação correta de voz e nas respostas que deveriam dar aos repórteres. Mas caí em desgraça quando propaguei, por meio de minha assessoria, a técnica de criar ombreiras em blazers com ar comprimido, no lugar da tradicional espuma comumente empregada. Ao divulgar essa novidade, meu sucesso se multiplicou e vi que os sósias, somando então 494 nos cinco continentes, continuavam sendo insuficientes. O tempo de criar mais algumas centenas me era escasso, e decidi pela produção em massa de dublês dos sósias. Os dublês eram uma espécie mais tosca de imitadores, sem a desenvoltura dos sósias mas suficientemente adestrados para acenarem ao público sem levantarem suspeitas. Só que acabaram levantando, infelizmente. Não obstante toda essa loucura em que me vi envolvido, jamais descuidei da segurança de minhas cópias. Cheguei ao ponto de encomendar um Klariston-móvel, para que os dublês de sósia pudessem se locomover pelas multidões ensandecidas sem o risco de atentados, já que a fama do nome Joseph Klariston Jr. ganhou uma dimensão assustadora e completamente fora do meu controle."

Indagado a respeito de uma mesa redonda realizada quando de sua visita ao Brasil, na qual dividiu a participação com outros famosos - entre eles Tom Zé e Silas Malafaia, o indiciado afirmou que, na ocasião, ele era ele mesmo. Segundo Klariston, o evento teve transmissão ao vivo para vários países, e o deslize de um sósia poderia ser fatal para a sua até então imaculada reputação de tintureiro.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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