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sábado, 29 de novembro de 2008

CABINES DE NATAL


Naudisléia, cobradora de cabine de pedágio. Vandercleyson, porteiro de prédio. Namorados, falam pelo celular na noite de 24 de dezembro.

- Né mole não, amor. Todo mundo enchendo a cara, se entupindo de uva passa e eu aqui, plantado nessa cadeira com meu radinho. Luzinha de Natal pra mim é esse painel piscando com os número dos apartamento, compreende? E ainda tem que prestar atenção em tudo pra nada estragar a festa dos bacana.

- E eu não sei, Vandercleyson? Cê ainda tem o rádio pra escutar, aqui nem isso eles deixa. Nós rala e o povo se mandando pra praia, com os porta-mala cheio de malancia e peru.

- Daqui a pouco, que nem igualzinho todo ano, um ou outro desce com um panetone na mão, aquele seco e sem gosto que ninguém quis, que sobrou da cesta da firma, pra me entregar com um vinho bem sem-vergonha. A Dona Letícia do 67 até uns ano pra trás mandava um pratinho com umas fatia de tender, coberto com papel toalha. Das vez vinha também pudim de noz, empada de massa podre. Mas agora faleceu-se, a coitada. Nesses dia aqui no prédio fica tudo eles bonzinho, rindo e desejando boas festa. Daqui um tempo começa a chegar os carnê do IPTU e vira tudo bicho de novo. Ninguém olha mais na cara, até vim o Natal outra vez.

- Ah meu nego, liga não. Mudando de assunto, eu acho memo é que a gente anda muito precisado de um diazinho de xamego e vadiação. Só nós dois, pensou? Aí depois eu ainda fazia um macarrão caprichento... Seu recibo, moço. Boa viagem.

- Sabe, amor, aqui tá tocando aquela música que fala “Pobrezinho, nasceu em Belém”, ói só que mundo pequeno, Naudisléia, o Menino Jesus também é lá de Belém do Pará... vai ver a minha mãe até conhece a família.

- Peraí que eu não tô te escutando, caminhão barulhento demais, sô. Fala mais alto, mor... É sete e quarenta, moço... tem quarenta centavos, pra facilitar o troco?

- O quê?

- Não, tô falando com o motorista pra vê se tem moeda. Pronto, continua, bem.

- Tava falando do Cristo, conterrâneo nosso...

- Não tô entendendo patavina.

- Quer que fala mais alto, é?

- Não, essa história de conterrâneo eu não entendi nadica.

- Deixa pra lá. Até que hora vai o serviço aí no pedágio?

- O ônibus vem pegar nóis às duas e meia da manhã, aí já vem a moça do outro turno. Daí só pego de novo dia 26 às dezoito e trinta.

- Naudisléia, espera um pouco, güenta aí que eu tô falando com o doutor do 43 aqui no interfone. Então, doutor, tem um pacote embrulhado pra presente que deixaram aqui na portaria pro senhor. Ahn... ah, não sei o que é, não senhor. Chegou faz uns par de hora viu, um crioulinho de motocicleta que veio trazer. Sei... tá certo, depois o senhor pega aqui comigo.

- Mas esse interfone não pára, heim?

- Então, Léia, eu fico pensando na vida injusta que a gente veve. Como é que você, vendo tanto carro passar o dia inteiro na tua frente, tem que andar de ônibus, eu queria entender essas coisa que o homem lá de cima deixa acontecer, mesmo em noite de Natal, que é aniversário dele. Podia dar um refresco só hoje, que era bem merecido, né não?

(Campainha)

- Ô meu Deus, outra entrega... um instantinho, Naudisléia. Alô, Seu Afrânio? Tem encomenda aqui de leitão, dois cupim e mais uns saquinho de farofa com miúdo, pode mandar subir? Ah, e veio junto uma pet daquelas de 2 litro e meio de guaraná. O quê? O pisca? Ah, então, deixa eu explicar pro senhor. É que o síndico falou assim que é pra eu desligar os pisca tudinho depois da meia-noite, pra não gastar muita força, compreende? Qualquer coisa o senhor fala com ele. Ô Léia, tá me escutando? O que eu ia te dizer é que eu acho que cê tá trabalhando demais, moreco. Doze hora e meia sem descanso, cheirando esse óleo dísio... eles abusa demais docê. Tá certo que o sirviço aqui no prédio não é nenhuma maravilha, mas pelo menos não estrago com a saúde, compreende? Ih, olha só, tem um Papai Noel dos gordo aqui na frente da guarita falando hohoho e dizendo que vai distribuir bala. Cada figura... não, quê isso Papai Noel, vira esse negócio pra lá, calma... ai... ai... Naudisléia, me vinga... Naudisléia, dá o troco!

- Seu troco, moço.

- Fica pra você, querida, caixinha de Natal.

- Ô, coisa boa. Brigado. Vai com Deus e boas festa.

- Então, Vandercleyson... Vandercleyson... fala comigo...



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quarta-feira, 26 de novembro de 2008

RECANTO DA PAZ



Antes de mais nada, é nosso dever informar que vocês não estão num Hotel Fazenda, como o nome pode supor aos distraídos ou àqueles mais apegados às fraquezas da carne. Apurem os sentidos e perceberão que não há boi algum mugindo, nem sabiá cantando, nem cheiro de torresmo pururuca frito no fogão de lenha. Saibam os senhores e senhoras que se encontram no paraíso, passaram de onde estavam para melhor e é bom que aceitem logo isso para que seu processo de adaptação seja menos traumático. Nossos enfermeiros e assistentes sociais não agüentam mais repetir a mesma história para cada um que chega aqui. Portanto, queimemos etapas: vocês bateram as botas, isso é um fato.


Embora a população na crosta terrestre cresça exponencialmente e já esteja na casa dos 6 bilhões, no cômputo geral há muito mais mortos que vivos. E é um reconfortante consolo lembrar que os seres humanos mais interessantes são aqueles que já estão por estas bandas – os grandes gênios, os maiores heróis nacionais, ídolos de bandeiras ideológicas variadas, entes queridos, amigos e colegas que deixaram saudades. E quem ficou lá embaixo, não demora muito e vem para cá também. É só uma questão de tempo. Eternamente falando, de pouquíssimo tempo.


Aos suicidas, lamentamos o inconveniente de decepcioná-los. Existe vida após seu ato extremo, e não há nada que vocês possam fazer para reverter essa situação. O inconformismo diante de sua nova realidade não levará a nada, não adianta se jogar pela janela de seus aposentos celestiais. O máximo que pode acontecer é vocês voltarem para cá e recomeçarem a leitura deste quadro de avisos.


Tentativas de amotinamento e de retorno ao vale de lágrimas de onde vieram serão imediatamente sufocadas pelos superiores de sua ala. Amantes de sexo, drogas e rock and roll serão gentilmente forçados a se adaptarem à castidade, à abstinência e às harpas e corais de querubins, que só lhes farão bem ao espírito – lembrando que o espírito é a única coisa que lhes resta.


A enorme legião de beatlemaníacos poderá deliciar-se com shows diários de George Harrison e John Lennon em nossa praça principal. Solicitamos aos mesmos um pouquinho de paciência até que a banda se complete. O que ocorrerá em breve, pois Paul Mc Cartney está com 66 e Ringo Starr fez 68. Considerando que os dois vivam até os 100, dentro de pouco mais de 30 anos o slogan “Beatles Forever” deixará de ser uma utopia. O mesmo se aplica aos fanáticos pelos Rolling Stones, que a despeito de sua língua de fora e sua simpatia pelo coisa-ruim, farão turnê por aqui logo logo, reintegrando finalmente o Brian Jones ao conjunto – nosso hóspede desde 1969.


Orações por intenção de suas respectivas almas serão detectadas por nossas estações de captação vibratória e enviadas em tempo real para seus fones de ouvido, cujo controle de volume, graves e agudos encontra-se na parte interna da asa esquerda dos senhores. Já as orações-spam (aquelas genéricas, formuladas indistintamente para o bem de todas as almas) não serão enviadas, por serem muitas e perturbarem o descanso eterno de que são merecedores.


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sábado, 15 de novembro de 2008

SIX O'CLOCK


Eu poderia começar dizendo que o sol do horário de verão britânico entrava coado pelos vitrais da Abadia para pousar solene na tumba da Rainha Mary II. E assim o faço, por mais romanticamente descritivo que seja. O spalla da Orquestra Filarmônica Real repete outra vez a passagem mais difícil do concerto, aquilo definitivamente não fora escrito para amadores.

Na seiscentista monarquia, quantas vezes a Mary infante teria atravessado a nave do templo, para mais tarde casar-se, coroar-se e entrar pela derradeira vez o monumento gótico, aos 32, num suntuoso ataúde. Em outra ala, no Poet’s Corner, Dickens vara o tempo em sono eterno, possivelmente escoltado pelo avarento Ebenezer Scrooge e seus fantasmas. O eco do andar de um Beefeather vem trazê-lo de volta ao violino. Então empenha toda a alma num vibrato, pensando no tio-avô que definha não muito longe dali. Talvez fosse seu último Natal. Apesar do rosto pouco vincado, da mão forte de veias saltadas, da voz rouca ao pedir para passar o pão à mesa envolta em aromas de velas e sopas, tudo indicava que não tornaria a ver os fogos de artifício anunciarem o Ano Novo sobre o Tâmisa.

“Mantenha o violino afastado do sol, pois o calor faz a madeira rachar ou descolar”. O conselho do velho mestre dos tempos de conservatório ia e voltava em sua mente como o hipnótico tema do Adagio. Soa a última nota, em uníssono com o violoncelo de Edwin. Westminster é muda, pode-se ouvir o pousar da mosca entre duas teclas do órgão de tubos. É muda e assustadoramente triste a Abadia àquela hora, que os católicos chamam de Ave Maria.

Suas orelhas eram grandes, demasiado grandes para não serem notadas e odiadas por Anne Elisabeth. Ela jamais se interessaria por um orelhudo de dentes tortos. Turistas e mais turistas, às levas. Estrangeiros que já viram tudo na cidade e aparecem por ali nessa tarde quase noite, para roubar a concentração do ensaio disparando seus flashes, mesmo sendo proibido. Façam o sightseeing bem longe, comam fish and chips, corram afoitos com seus mapas para a roda gigante ou o Palácio de Buckingham, longe da real e absoluta treva que vem vindo, a treva só plenamente compreendida pelos súditos nativos da rainha. Eles são de Massachusetts, Iowa e Connecticut, seguem deixando cascas de amendoim sobre os restos mortais de quem ergueu a Londres mais sublime, posando no sarcófago de Newton como quem tira fotos com o Pateta e o Pato Donald. Dobrem o valor do ingresso, please, quem sabe assim cai pela metade o número dos abutres.

Em pizzicato dançam seus dedos e seus medos, na forma de mínimos elfos. Ele vê nas quatro cordas os quatro inconfessáveis sonhos desfeitos, os quatro planos futuros forçosamente adiados e as quatro vezes, só na última meia hora, em que bendisse mentalmente a névoa, os tijolos à vista, a hipoteca paga em dia e a velha e boa xícara de chá a lhe esperar de madrugada em Notting Hill.

Apesar do adiantado da hora, voltou à pé para o apartamento, repassando mentalmente o trecho massacrante da partitura e imaginando o interior do chalé que alugou em Greenwich para ocupar sozinho no fim de semana. Com uma plástica nas orelhas, quem sabe da próxima vez conseguisse levar Anne Elisabeth consigo.

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sábado, 8 de novembro de 2008

EM DEFESA DE UM ADMINISTRADOR INJURIADO


Creiam-me: José Denárdio da Figueira Paranhos é inocente. A acusação maldosa de que tem sido vítima explica-se pela indisfarçável inveja de seus adversários, em face do que fez e ainda fará por nossa terra.

Imputam-lhe como crime a compra de 2,5 toneladas de canjica sem licitação. Ora, senhores, não estamos falando de concorrência pública para aquisição de mísseis, turbinas para hidrelétricas, cápsulas espaciais e outros itens de pouca importância e custo unitário irrisório, tão irrisório que a própria sociedade se envergonharia em investigar os meandros de compra. Falamos de canjica e seus essenciais derivados, e do caos que poderia advir com sua escassez. Daí ser plenamente justificada, neste caso, a dispensa de licitação, até porque um único fornecedor demonstrou suficiente competência técnica no manejo e distribuição do insumo precioso aos entrepostos públicos.

E como é precioso. Dentre miríades de aplicações cotidianas, podemos citar a farinha de canjica enriquecida com ferro, vitaminas e ácidos graxos, comprovadamente mais eficaz que o óleo de fígado de bacalhau no combate às hipovitaminoses A e D. A canjica em flocos, processada, embalada e distribuída simultaneamente pela Canjesp, Canjerj, Canjemg, Canjesc e Canjenorte às escolas de suas respectivas redes de ensino, com ação clinicamente demonstrada no incremento da memorização de números de telefone, incluindo DDD e independente do prefixo da operadora. (E aqui abro um parêntese para louvar a canjica como instrumento de integração nacional e de desenvolvimento de nossas telecomunicações).

Continuando, citemos a canjica em pasta, que utilizada em conjunto com a fécula de mandioca gera poderoso grude para colagem de pipas, papagaios, pandorgas, maranhões e outras incontáveis denominações popularmente atribuídas a esse artefato tão estimado pela gurizada. Temos ainda a canjica moída e desmembrada em suas moléculas e átomos, recentemente aprovada pelo Ministério dos Esportes para utilização como antiderrapante em barras assimétricas. E, logicamente, a canjica in natura, largamente empregada como substituta do feijão para marcar os números sorteados nas cartelas dos bingos devidamente regularizados.

Tão rica é em possibilidades esta nossa glória verde e amarela que nada menos de 14 laboratórios farmacêuticos multinacionais pelejam junto à OMS a quebra de sua patente, argüindo como justificativa os bilhões de potenciais beneficiados ao redor do globo com seu manancial de utilizações farmacológicas – incluindo-se aí um revolucionário tônico para calvície e um regularizador de disfunção erétil capaz de deixar o azulzinho Viagra vermelho de vergonha.

Tecidas estas considerações, destaco também em defesa de José Denárdio seus inequívocos sinais exteriores de pobreza, ou de empobrecimento lícito, como a posse de um tupperware rachado e colado com durex e a constatação de um taco solto em sua sala de estar, com um volante da loteria esportiva de 1973 servindo de rejunte provisório – ou permanente, pela longa data da gambiarra. A única, aliás, que o incorruptível caráter do acusado poderia conceber. Coragem, José Denárdio, mantenha a cabeça erguida. A história lhe fará justiça.

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sábado, 1 de novembro de 2008

ENQUANTO ISSO


Secos & Molhados, utensílios domésticos, gêneros de primeira necessidade: bacalhau salgado com alhos em réstia, cereja ao licor na tina a granel, queijo curado de casca suja e muito grossa, fumo de corda e querosene. George Bush, no fim do mandato e há 3 dias sem dormir, quer reunir os líderes mundiais para criar nova ordem econômica. As dezoito luas de Saturno seguem em silente e imperturbável órbita, nem aí para a irmã menorzinha do sistema solar. O dono da venda faz com o dedo garranchos no nada, farto da lida, da vida e da Cida, a patroa. O cão malhado e sem raça, na porta do armazém, gira em círculos tentando pegar o rabo. No autódromo, o escudo da Ferrari está pelando ao sol do meio dia e meia. Na mansão da Galícia o casal fogoso parte para a segunda, após vinte e cinco minutos de descanso do embate inicial. Nada azucrina a paz do pombal na Quinta das Sequóias, em Sintra. O cão dá trégua ao próprio rabo com o ploft da viúva Ângela ao pisar na poça. O relógio de Bush pára, ser insone no salão oval. Pensa que o antecessor, ali, se divertia muito mais. Sem atentados, sem Osama e sem Obama. “Vende-se esta venda”, vou pregar cartaz na porta, não há viva alma a precisar de nada. Saturno e suas luas prosseguem, sem noção da sua parte no equilíbrio do universo. Alguém da criadagem abre o trinco do pombal. Alguém da escuderia dá partida ao F1 para a volta de qualificação. Alguém será gestado na cópula da Galícia. Alguém alisará o pêlo castigado do cãozinho. Alguém tirará Bush de seu sinistro devaneio, com más novas. Alguém pedirá uma pinga no balcão, fiando como de hábito. Ninguém poderá fazer nada para que as luas de Saturno ensaiem um bailado novo.


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Foto: Nasa