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sábado, 19 de dezembro de 2015

NATAL DE ARAQUE



- E então, como foi na entrevista?
- Vou ter que engordar uns 22 quilos se quiser pegar a vaga de Papai Noel. O recrutador disse que a barba está boa, mas meu rosto está muito chupado.
- Só que pra você engordar vai ter que comer, e se tivesse o suficiente pra comer não tinha que procurar esse bico. Não dá pra colocar uns enchimentos debaixo da roupa? Um almofadão, um edredon fofo?
- Não adianta... Papai Noel tem cara gorda, tem braço gordo. E nos gordos de verdade até a voz é diferente. A minha é um fiapo, Maria... parece aquelas de Pato Donald quando entrevistam bandido no Jornal Nacional.

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Bem, analisamos todos os candidatos e apesar da magreza optamos por você. O esquema é o seguinte: você acomoda o peste nos joelhos e faz o interrogatório, observando rigorosamente esta sequência:
. Você é um bom menino?
. Se comportou durante o ano?
. Obedece papai e mamãe?
. Vai bem na escola?
. Come toda a chicória do prato?
Depois de ouvi-lo mentir em todas as respostas, você pega a cartinha da mão dele, lê em voz alta, coloca ela no saco, dá um beijo na testa do ranheta e enfia dentro do envelope o folheto da loja que tem o brinquedo que ele pediu. Aí você diz pro melequento entregar o envelope pro pai dele, falando que é a resposta do Papai Noel, ok? O que converter em venda você leva meio por centro. Feito, meu velho?

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O turno era de 14 horas ininterruptas. O assento do trono tinha uma pequena tampa que dava direto para um outro trono, da Celite, pra que Papai Noel não precisasse sair dali pra nada. A fila tinha de andar, fazer o quê. E calculando a conversa de cada pentelho com o bom velhinho, mais a pose pra foto, tínhamos a média de 2 minutos e meio por peralvilho.

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- Gui, olha só o Papai Noel!!!
- Ô mãe, é Natal ou primeiro de abril?
- Por que a pergunta, Gui?
- Papai Noel chega de trenó, não de helicóptero como esse aí. Não tem tatuagem da Harley Davidson e do Che Guevara perto do cofrinho. Não fede cachaça. Ah, e na roupa desse velhinho aí tem uma etiqueta escrito “Casa das Festas”. Estranho, não? Esse não é Papai Noel. É um mentiroso sem vergonha.
- É isso mesmo, o senhor é um impostor. A gente passa o ano todo dizendo para os filhos que mentir é feio, que se disser mentira não ganha presente de Natal. Aí chega aqui no shopping e encontra um Papai Noel fajuto, mais suspeito que brinquedo chinês. Nem criancinha lactente cai nessa esparrela. O senhor não passa de um artigo de 1,99!
- É, vamos processá-lo por falsidade ideológica, mãe. Esse Papai Noel cover não tem nada a ver. O verdadeiro Nicolau deve estar indignado com esse rascunho genérico.
- Chuta o saco dele, Gui, chuta. Isso!

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O escândalo do Noel desmascarado espalhou-se mais rápido que as renas do Noel de verdade. Tiveram de arrumar um substituto às pressas, este afiançado pela administração do shopping como legítimo. O risonho, bonachão e desta vez suficientemente gordo Santa Claus distribuía ho-ho-ho’s por onde passava. No mais, os piscas, as bolas multicores, as guirlandas e os sinos badalando anunciavam um natal a preceito, como deve ser. Contudo, um guri capcioso, na hora de subir ao colo do obeso acetinado, viu o que não devia ver: uma fitinha do Senhor do Bonfim amarrada no punho do Papai Noel. Do verdadeiro Papai Noel.
- Ô manhêêêêêêêêêêêêêê! Vem cá ver uma coisa!

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

VENDO TELEFONE POR MOTIVO DE MUDANÇA



Resumo dos capítulos 1 a 94

O nome já explica mais ou menos o princípio da coisa: celular. O sinal de radiofrequência é repetido por células de transmissão, ou Estações Rádio Base - aquelas torres horríveis. As células têm um determinado raio de cobertura, e se comunicam umas com as outras para completar a chamada, seja lá em que parte do planeta o sujeito esteja recebendo ou fazendo a ligação. A cada 500 metros, uma antena. Ou melhor, a cada 350. Minto: a cada quarteirão. Para instalar o monstrengo metálico, 26 homens treinados na Finlândia. A torre abriga 2.358 componentes de extrema sofisticação tecnológica, com alíquotas de importação proibitivas. A instalação é de madrugada, para não dar na vista. Para não dar margem de contestação. Para não dar chance à vizinhança de tentar se defender do suposto risco de câncer. Aí começa. Vamos fazer um abaixo-assinado. Vamos lavrar boletim de ocorrência. Vamos reunir uma multidão para abraçar a antena e chamar a televisão para fazer reportagem. (Tudo bem que celular precisa de antena, mas não na frente das nossas casas!). Só que antes, algum Judas da comunidade teve de ceder espaço para a antena operar. O dono do terreno baldio estava mesmo com a corda no pescoço, e os 15 mil de aluguel por mês chegam em boa hora. Contrato de 8 anos. Mais 2 mil por ano de IPTU. Mais todos os outros tributos municipais, estaduais e federais. Mais a licença de operação. Mais os vigilantes, um por turno. Mais muro de quatro metros com cerca elétrica em cima. Mais a praça do bairro que teve de ser adotada em troca de uma momentânea trégua com os moradores. Tanto investimento precisa se pagar, o quanto antes, para não enfurecer os acionistas e manter em alta o preço das ações na bolsa de valores. Dá-lhe campanha atrás de campanha. Promoção atrás de promoção. Aparelho de graça. Programa de fidelidade com novecentas voltas ao mundo e um milhão de minutos de bônus para se esgoelar de falar. A qualquer hora, para qualquer número, de qualquer operadora. Patrocínio de futebol e marca estampada em tudo quanto é canto, do nome do estádio ao cadarço do tênis do gandula. Lobby em Brasília para garantir a perpetuação do cartel e a autonomia na administração do preço por minuto cobrado em cada região. Contestação jurídica. Queixas no Procon, por abuso de poder econômico, descumprimento de contrato, cobrança indevida na conta, propaganda enganosa, ausência de sinal.


Capítulo 95

WhatsApp. Sabe o wi-fi da sua casa? Então. É isso.




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sábado, 5 de dezembro de 2015

VENDO ESTANTE POR MOTIVO DE MUDANÇA



I
Só quem foi geração coca-cola naqueles entediantes 80 sabe o quanto custava juntar dinheiro para levar um LP da loja. O jeito era apelar para o compartilhamento de arquivos da época - pegar os discos emprestados e gravar em fita cassete, de 45, 60 ou 90 minutos. Você cedia os seus xodós para o vizinho, e ele os bolachões que tinha para você. Com mútua promessa de voltarem sem riscos nem barulho de lenha crepitando na lareira.

II
Antes do três-em-um National que ganhou no Natal de 82, um que fazia a proeza de gravar direto para a fita equanto o LP tocava, o procedimento era outro. Colocava-se o disco na sonatinha portátil e posicionava-se o microfone do gravador bem perto do alto-falante da vitrola. Só que o microfone aberto captava, além da música, todos os outros sons que fossem emitidos nas imediações. Gritos da mãe chamando para o almoço, canto de cigarra, chuva caindo, latido de cachorro, a perua vendendo pamonha de Piracicaba e o que mais fosse auditivamente perceptível no ambiente doméstico.

III
Quem não tivesse vizinho nem disco para compartilhar, que ficasse o dia todo esperando a única FM que pegava num raio de 150 km, até que o DJ resolvesse tocar a música que você queria. E apertar o play a tempo para a gravação não comer um pedaço dela. 

IV
Bem-vindo à era do compact-disc, o revolucionário CD. Som puro, sem riscos, espetacular capacidade de armazenamento. Nunca mais ficar mirando a faixa no acetato para não errar a música. Nunca mais caneta bic na fita cassete. Chegamos ao ponto máximo da tecnologia. O que de mais moderno poderia aparecer depois disso?

V
Está tudo na rede, é só ter tempo e paciência para garimpar. Dê a busca pelo nome da música ou do álbum e vá conferindo as ocorrências. Alguns perigosíssimos sítios virtuais já entregam, numa baixada só, discografias inteiras. A raiva é quando está tudo certo, clica-se em "download" e aparece a mensagem dizendo que o arquivo foi removido por violação de direito autoral. De 2002 a 2013, foram mais de dois mil álbuns baixados e dois milhões de cavalos de troia reunidos em um fabuloso haras no computador. O HD inteiro perdido, inapelavelmente. Uma saga de trabalho insano e murros sem conta em cima da bancada, mais de uma década de sacerdócio cibernético jogados no lixo.

VI
Ali estão todos eles forrando as quatro imensas estantes, produtos de milhares de horas a menos de sono. Metade das fitas oxidando, metade travando ou rompendo no rebobinamento. Metade dos discos com os sulcos perdidos de poeira, metade com os encartes devorados pelas traças. Metade dos CDs travando na terceira faixa, metade com os códigos binários estranhamente embaralhados.

VII
Você acorda com vontade de escutar o Réquiem de Mozart. Spotify, Mozart, Réquiem, pronto. Só em um dos vários serviços de streaming,  mais de duzentas extraordinárias versões diferentes para se ouvir de graça, quando quiser, liberando metros e metros de estantes só para livros e porta-retratos. Enquanto escolhe qual vai querer escutar primeiro, a incômoda sensação de que quem deveria estar na estante tomando pó é você mesmo.



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