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sábado, 28 de janeiro de 2017

NOVELOS E NOVELAS




Ninguém pode afirmar com absoluta certeza, mas tudo leva a crer que o termo "novela" vem de "novelo". O fato de ser algo que vai se desenrolando aos poucos explica esse bem aplicado batismo. 

Mas novela não só vem de novelo. Ela vende novelo, com o perdão do trocadilho. Se por um lado vemos a TV perdendo audiência dia a dia para a internet, por outro é crescente a fatia populacional da chamada terceira idade. Tem mais vovós crochetando e tricotando em frente à boa e velha televisão do que sonha a vã filosofia do Mark Zuckerberg. Por mais que as vovozinhas de hoje saibam também manejar com destreza seus perfis no facebook e no instagram.

Essa nova realidade inspirou um plano ambicioso e detalhadamente articulado, envolvendo o núcleo de projetos especiais da emissora líder e o maior nome da nossa indústria têxtil. O patrocinador da novela é o fabricante do novelo. Além de milhares de inserções de merchandising no enredo televisivo, a marca fica licenciada a utilizar nomes, fotos de atores, sinopses e o que mais julgar conveniente em seus produtos. Incluindo a embalagem - no caso, aquela tira de papel que abraça a lã.

Ao final de cada novelo, a vovó encontrará uma dica sobre o fim da novela, agregada a um cupom de desconto para a compra do próximo suprimento de lã. Um círculo perpétuo de consumo. Novelo após novelo, novela após novela. A trama do folhetim em absoluta sintonia com a trama do tricô e do crochê.

No quesito interatividade, há um rol imenso de ideias. Sendo o público idoso cada vez mais representativo no universo da audiência, os velhinhos e velhinhas também seriam os galãs e vilões da novela. Isso criaria uma maior identificação do telespectador com o elenco, ampliando exponencialmente o Ibope. A primeira ação interativa já está aprovada, e consiste em um concurso de figurinos. O público cria e confecciona roupas para os atores, necessariamente produzidas com a lã do patrocinador. As melhores ou mais originais irão vestir os personagens, e os nomes dos figurinistas domésticos constarão nos créditos em destaque, lado a lado com os nomes dos astros e estrelas. A anciã-estilista que mais se destacar ganha ainda uma aparição especial no último capítulo.

Uma grande ação de cross marketing irá amarrar comercialmente o processo, até mesmo junto às velhinhas não adeptas do tricô e do crochê. Em parceria com uma rede de lojas de roupas, as peças de vestuário feitas com a lã e que aparecem na trama serão expostas com destaque nos pontos de venda. Em cada cabide, um apelo chamando para assistir à novela; e na novela, em contrapartida, cenas gravadas dentro do magazine. Uma perfeita e harmônica engrenagem promocional, onde todos os envolvidos ganham. A seguir, cenas dos próximos capítulos. 




© Direitos Reservados


sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

O DESPERTADOR HUMANO



Junto com a Revolução Industrial – período de 1760 a algum momento entre 1820 e 1840 – vieram os empregos. Para não perderem a hora, existia o despertador humano, um profissional responsável por acordar as pessoas para que comparecessem ao trabalho pontualmente. O primeiro relógio-despertador foi criado em 1847, mas só se popularizou décadas depois. Assim, era comum ver pessoas com bambus ou varetas batendo nas vidraças ou atirando pedrinhas nas janelas daqueles que as contratavam.
(fonte: universoretro.com.br)





Fico imaginando o que seria dessa cidade caso eu tivesse escolhido outra coisa para fazer na vida. Se bobear, você mesmo pode ter sido acordado por mim hoje. 

Não há quem não precise de meus préstimos. Muitos podem pensar que não faz nenhum sentido um arrumador de pinos de boliche, por exemplo, necessitar dos serviços de um despertador humano. Ele não tem que acordar cedo, pois geralmente trabalha à noite. Só que ele troca a noite pelo dia, e se não houver ninguém para acordá-lo mais ou menos ao pôr do sol, ele vai ser mandado embora. Mas existem outras consequências. Se um cara desses vai trabalhar com sono, demora para sair da pista e acaba ele mesmo servindo de pino de boliche. Concorda comigo?

Se você parar para pensar, vai ver que tudo - ou quase - depende de mim. Supondo que aconteça um acidente e o arrumador de pinos acabe indo para o hospital. Ele não vai precisar de mim enquanto estiver internado, certo? Errado, pois o médico que trata dele vai, para estar pontualmente levando seus cuidados ao enfermo. Assim como a enfermeira, o motorista da ambulância e todo um leque de profissionais que botam o hospital para funcionar. 

Se o leiteiro não estiver de pé às 5 e meia da manhã, pronto para fazer suas entregas, vai deixar todo mundo sem café para ir ao trabalho (ainda que seja leite o que ele fornece). E a sorte minha é que o ordenhador de vacas mora na zona rural. Se fosse na cidade, teria que acordá-lo também. E bem antes do leiteiro...

Agora imagine você numa emergência, em que seja preciso ligar imediatamente para alguém. Pode esquecer se não houver telefonista acordada, para completar a ligação. Como elas trabalham em turnos, são vários grupos de mulheres que precisam ser despertadas em horários diferentes. Isso me força a ficar com minha vara de bambu pra baixo e pra cima o dia todo. E a pé, pois não há transporte que acomode satisfatoriamente o meu instrumento de trabalho.

Confiança é tudo nessa profissão, e a responsabilidade de acordar tanta gente não admite erros nem desculpas. Basta meia hora de atraso em um dia qualquer e pronto, perco de uma vez o respeito dos clientes. 

Sem mim, o mundo para. Ninguém pode imaginar a vida com atrasos nos serviços de telefonista, leiteiro, arrumador de pinos de boliche e tantas outras ocupações desse mundo moderno. A menos que inventem um relógio que seja também despertador, o que me parece muito improvável. Porém, devo admitir que essa ameaça me roubaria o sono. Mas como não posso dormir mesmo...





© Direitos Reservados
Imagem: @FotografiasDaHistoria


sábado, 14 de janeiro de 2017

TATTOO À DIREITA



Já vou avisando, a quem se interessar, que aqui é tudo de extrema direita. Dos desenhos tatuados até o tatuador, que é membro da Ordem Rosacruz com orgulho e mantém em dia suas contribuições mensais à Opus Dei e à Legião da Boa Vontade.

Levando minhas convicções da ideologia à anatomia, confesso que sinto-me mais à vontade tatuando do lado direito do corpo. Não que eu seja radical. Pelo contrário, sou até bastante complacente: comigo, os esquerdistas regenerados têm a chance de eliminar as bobagens que um dia resolveram estampar na carcaça. Desenvolvi uma tecnologia revolucionária, que permite a reconstituição da pele em sua pigmentação original. A tinta da tatuagem é expelida no máximo em uma semana, deixando todo o corpo livre para tattoos moralmente edificantes, como o Brasão do Exército ou a imortal efígie do General Emílio Garrastazu Médici. Há quem duvide, dizendo que é tudo conversa, que não há nada que remova uma tatuagem bem aplicada. Pois que apareçam por aqui para a prova definitiva - trazendo, de preferência, uma estrela do PT. Adoro exterminar essas estrelinhas, bem como Che Guevaras, Fidéis, foices, martelos e demais ícones inúteis. Aliás, tinta vermelha eu só removo, nunca aplico. Nem adianta insistir, que procure outro profissional. Um leviano e irresponsável profissional, no caso, sem compromisso com o desenvolvimento cívico das novas gerações. 

Caveiras, folhas de maconha, dragões cuspidores de fogo, serpentes, símbolos cabalísticos e de magia negra também estão fora do meu mostruário. Mediante aprovação prévia de cada desenho, admito aplicação de flores, ondas do mar, pássaros, símbolos yin/yang, corações, mandalas e frases em geral, dependendo do que o sujeito intenciona colocar como mensagem. 

Tattoos nas partes íntimas, nem pensar. São intocáveis. Há que se ter compostura e pudor, ainda que cada um tenha livre arbítrio sobre o que fazer com o próprio corpo. Particularmente, não me presto a esse tipo de serviço. 

Chegou a hora de tirar a tattoo dos guetos. Por que não um padre ou um maçom tatuados? Desde que o desenho dissemine valores éticos e cristãos, que mal há nisso? Outro dia mesmo, fiz uma bela de uma Santa Ceia tomando, de fora a fora, as costas do indivíduo. Também tatuei um Rosário em um monge beneditino, começando no pescoço e terminando nos tornozelos. Desviando, logicamente, de quaisquer partes pudendas no percurso. 

Pela glória da Pátria e em defesa da manutenção da ordem política e institucional, coloco-me à disposição dos clientes maiores de 21 anos, que apresentem atestado de bons antecedentes e não tenham passagem pela polícia. 



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Imagem: www.goodfreephotos.com
Esta é uma obra de ficção, e não reflete necessariamente o pensamento do autor. 


sábado, 7 de janeiro de 2017

EX-TILINGUE



O estilingue sumiu do mapa. Bem como o bodoque, a chiloida, a baladeira, a funda, a atiradeira e demais sinônimos. Justifica-se o desaparecimento. Que chance teria o coitado numa queda de braço com o Xbox, o PS4, os jogos de realidade virtual e sua turma? É claro que não falo das atiradeiras de competição, que parecem uns bólidos, ultramodernas e produzidas com materiais sintéticos. É aquele rustiquinho, da roça mesmo, ou quando muito dos quintais das casas de vila, quase tão extintos quanto o próprio estilingue.

Por definição, o estilingue é uma traquitana contraditória. Para um militar em guerra, uma brincadeira de criança. Para um militante da paz, uma arma mortal travestida de brinquedo. Para mim e para você, talvez pairem controvérsias. Mas certamente concordaremos ao admitir que não existe uso politicamente correto ou ambientalmente justificável para um estilingue. Tanto na intenção com que é usado quanto no material necessário para fazer um.

Começando da estrutura básica: a forquilha. É preciso serrar um galho de goiabeira, jabuticabeira ou outra eira do pomar para se ter uma bem bacana em mãos, com um "V" simétrico e reforçado. Daí você precisa de pedregulhos, também chamados seixos, como munição. E seixos ou pedregulhos demoram centenas, milhares, quem sabe milhões de anos para ganharem da natureza aqueles contornos arredondados. Porque se a pedrinha não for redonda, já era. O tiro não será certeiro. Depois tem aquele courinho que prende o pedregulho para o disparo. Só se for couro legítimo, subproduto de gado abatido. Caso contrário, durabilidade zero. O menos antiecológico dos insumos seria o conjunto das duas tiras de borracha, que esticadas darão o impulso para a pedrinha zarpar. Ainda assim elas vêm da seringueira, cujo látex poderia muito bem ser destinado a fins mais edificantes.

Pronto o estilingue, ele vai servir para quê? De duas uma: arrebentar vidraças ou matar passarinhos. A primeira opção caracteriza vandalismo; a segunda, crueldade animalesca e estúpida interferência na cadeia alimentar. No entanto, sua imagem permanece como algo bucólico, associado à inocência infantil e aos inesquecíveis momentos vividos na fazenda da vovô. Algo que lembra cartilha de alfabetização, calendário de quitanda ou capa de alguma edição antiga de "Caçadas de Pedrinho", do Monteiro Lobato. 

Por isso, se alguém, contradizendo minha tese, disser que viu por aí um menino com um estilingue nas mãos ou no bolso, não caia nessa. Com certeza é uma arapuca. Também em extinção, por sinal. 



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Imagem: folhadofazendeiro.com.br