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sábado, 26 de maio de 2018

O DUÑA PROFETIZA



Foram anos e anos de sumiço. Uma ausência que causou desalento e tentativas de suicídio a um número incalculável de discípulos, espalhados pelos quatro cantos do Tocantins. 

Mas eis que sem mais aquela surge o Venerável Duña, de carona em um treminhão de cana e anunciando, à sua passagem, a visão profética que teve e que ansiava por partilhar com a humanidade. 

À falta de púlpito, o iluminado teve que trepar em um cupinzeiro para fazer sua pregação. O improviso, entretanto, em nada diminuiu a importância da revelação e o tom solene em que foi proferida.

Assim falou a divindade a seus pupilos e às centenas de curiosos que se acotovelavam pelo pasto, estapeando-se por um lugar onde a abençoada visão do Duña pudesse ser melhor apreciada:

- Vivemos uma era marcada por perversa inversão de valores. Morais, éticos, religiosos, filosóficos e, porque não dizer, gastrointestinais. Afazeres que, até outro dia mesmo, eram inerentes aos idosos, hoje disseminam-se feito tiririca entre a moçadinha das raves. É disso que trata a revelação que trago, ou melhor, a profecia.  

Mais ou menos nesse ponto do sermão, um desafeto de outra seita arremessou, na luzidia testa do mestre, três ovos de sanhaço gorados. O incidente não calou a voz do Predestinado, que prosseguiu com a preleção a despeito da gema fétida pingando de suas grisalhas madeixas. 

- Vejam que, desde que o mundo é mundo, ficar criando bolor em casa sempre foi o passatempo compulsório da velharada, com seus pijamas e pantufas. E é natural que assim seja, pois suas carcaças carcomidas merecem algum repouso antes da decomposição no campo santo e depois de tanta contribuição ao INSS. No entanto, o que temos observado nos últimos tempos? Filhos e netos desses valorosos heróis, alguns beirando os 50 aninhos, sendo sustentados por eles e pendurados no celular ao longo do dia, da tarde, da noite e da madrugada. Pedindo filet à Chateaubriand delivery e procurando qualquer coisa que renda algum ao fim do mês no Catho online - desde que não seja preciso deixar o conforto do lar. E o que é mais revoltante: trajando os pijamas listrados e pantufas do pateta confiscados à força de seus pais e avós. 

Humilhados, tungados e sem ambiente em suas próprias casas, logo ao raiar do dia multidões dessas pobres vítimas saem às ruas para seus campeonatos de damas e bocha, quando homens, ou para tricotar mantinhas para as obras de caridade do Rotary Club, quando mulheres. Fora dessa rotina, uma vez ao mês vão ao banco receber suas aposentadorias e pensões. Quer dizer, iam: seus dependentes cinquentões já descobriram suas senhas eletrônicas e fazem, de casa mesmo, a transferência dos proventos para as próprias contas. Em resumo: quem tinha que estar ralando coça o dia inteiro, e quem merecia coçar tem que sair à rua para encontrar o que fazer. Mesmo não tendo, compreensivelmente, vontade de fazer nada. 

Pois anuncio a vocês que, anteontem de tardezinha, dezoito anjos tocadores de trombeta, vindos de Jericó com baldeação em Corozaim, chegaram esbaforidos à minha choupana afirmando que, a continuar tal despropósito, há de cair sobre esse mundo a maldição das maldições. Não tenho ideia do que possa ser feito para evitar a tragédia. Apenas transmito o recado. 


Imagem: http://pinkfuzzyslipperwriters.blogspot.com.br



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sábado, 12 de maio de 2018

DOZE ANOS SEM CANA



Doze anos de cana. Quem dera o sentido literal: doze anos de cachaça. Mas a sentença era inapelavelmente aquilo mesmo. Cento e quarenta e quatro meses vendo, a seco, o sol nascer quadrado. 

Fosse um preso comum, arranjaria com outros encarcerados o goró nosso de cada dia. Ou os gorós, quantos bastassem. O que não falta é jeito escamoteado de fazer a bebida circular com certa tranquilidade nas Alcatrazes tupiniquins. Pinga é artigo facilmente disponível no câmbio negro, como os cigarros, os créditos de celular e outras moedas de troca utilizadas pela turminha em recuperação. 

Mas a cela dele era especial, isolada. Essa era sua desgraça. Até o banho de sol era privativo, sem contato com ninguém. De que jeito arrumar a "marvada"?

Advogados, parentes, gente do partido, amigos, todos eram revistados antes das visitas. Revista brava, sem chance de entrar com qualquer coisa escondida. 

A primeira ideia, meio previsível, foi tirar proveito da notória proximidade com algumas megaempreiteiras (em grande medida responsáveis por conduzi-lo ao novo endereço). A intenção seria óbvia: conceber um túnel ligando a distribuidora de álcool da Petrobras mais próxima de Curitiba à cela do distinto. Ou seja, um "cachaçoduto". O problema é que o porte da obra, 100% executada em nível subterrâneo, com certeza despertaria alguma suspeita, isso se não chegasse a ser totalmente descoberta em razão de provável denúncia da imprensa, intriga da oposição ou delação premiada. 

A segunda alternativa, de execução mais prática e logística mais em conta, seria simular uma incurável e até então desconhecida mania de limpeza. O distúrbio obrigaria que se entregasse ao "doente" quantidades industriais de álcool doméstico, para dar vazão a um compulsivo esfrega-esfrega das grades, paredes, algemas e outras instalações e apetrechos do universo prisional. Evidentemente, os litros de Zulu seriam substituídos por aguardente tipo exportação antes de chegarem às ávidas mãos do dependente, numa orquestração organizacional de causar inveja a Al Capone nos idos da Lei Seca. 

Qualquer que seja a opção estratégica, será preciso agir rápido: há casos em que a falta do álcool causa mais estrago que o excesso dele. O mundo político sabe muito bem do que um abstêmio em desespero é capaz de fazer. E de falar. 



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domingo, 6 de maio de 2018

DANDO PIPOCA AOS MACACOS




"Eu devia estar feliz pelo Senhor
Ter me concedido o domingo
Pra ir com a família
No Jardim Zoológico
Dar pipoca aos macacos"
(Raul Seixas - "Ouro de Tolo")



A disputa com o ex-futuro cunhado no ossinho da sorte, depois do almoço de sábado. O ato de contrição, a confissão, a hóstia, o Cristo vivo e ressuscitado no coração. O vale-ducha do posto de gasolina para quem abastece trinta ou mais litros de segunda a quarta. O lustro com Kaol na prataria, o zelo com o par de abotoaduras, os sapatos pretos e prontos para a reunião da associação de bairro, a imagem de São Cristóvão no retrovisor do Clio.

Vai que um pneu fura, é bom lembrar de calibrar também o estepe. Vai que chega lá e não tem mais mesa, é bom se precaver e reservar com antecedência o lugar para a família no jantar de caridade. Vai que o tempo fecha de repente, é bom carregar sempre um guarda-chuva na maleta. Vai que o chefe resolve chegar mais cedo, é bom já estar a postos, meia hora antes de todos, para não correr o risco. Vai que o cuco não desperta, é bom dar corda até o fim, e assim que endurecer ainda forçar mais um pouco, para dormir sossegado e amanhecer bem disposto. 

Deus me livre de dar palpite onde não sou chamado, mas a filha caçula do vizinho anda metida com um tranqueira. Longe de mim maledicência e intrigra, mas é mesmo muito estranho um homem temente aos céus andar assim tatuado, com cinco filhos nas costas e patente de major. Olha, não é por nada não - até porque eu nunca liguei para essas coisas - mas que ali tem, isso tem. E como tem. Misericórdia...

Não foi por falta de aviso que a coisa deu no que deu, o quanto que eu alertei! Se conselho fosse bom ninguém dava - vendia; mas como já vi muita água passar por debaixo da ponte, não ia deixar meu compadre ser o último a saber. 

Eu posso não ter nem a metade do que esse sacana do meu chefe acumulou tungando os outros, mas quando eu chego em casa eu boto a cabeça no travesseiro com a consciência tranquila. E ele, será que? Nada como um dia depois do outro para ver quem ri por último. Essa lição e esse exemplo eu trouxe do meu pai. Esse sim, sabia tudo. 

Quando eu tinha sua idade, também tinha pôster, boina e barba do Guevara. Quando eu tinha sua idade, experimentei mas não traguei. Quando eu tinha sua idade, também queria virar o mundo do avesso. Quando eu tinha sua idade, devia ter perdido menos tempo com bobagem e assistido mais episódios do mundo submarino de Jacques Cousteau. Quando eu tinha sua idade, me segurei e respeitei sua mãe até o casamento. Quando se tem 20 e não se é comunista, o sujeito é mau caráter; quando se chega aos 40 e se permanece comunista, o sujeito é retardado.

Nem adianta eu tentar te convencer agora que você está errado, é só quebrando a cara que você vai mudar de ideia. O tempo vai ensinar. Escuta bem o que eu estou te falando.

Imagem: mobilityhelp.com
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