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sábado, 18 de dezembro de 2010

CHRISTMAS EVENING


Ilustração: Thiago Cayres






Certa vez, em tempos aqueles, os dias quase sempre azuis se perfilavam sem noção de que eram a paz da vida acontecendo. Por essa época ela cantava no coral e era comum ver gente com frasqueiras e sobretudos pelo boulevard, vivendo rotinas sem sustos em casas sem adornos, muitos com fones de ouvidos a ilhá-los do universo e cercanias. Já ela ia assobiando a ária que iria cantar na confraternização da associação de bairro. “Maldito Handel, não pensou em mim”, matutava entre uma e outra colcheia escorregadia, aguda além da conta. Talvez tenha feito de propósito, e ela imaginava um caricato Handel profético, compondo com a intenção de maltratar as frágeis gargantinhas do século 21. Aguarda o sinal abrir, o pezinho marca o compasso. Uma rajada de vento, ajeita o cachecol no pescoço chupado na véspera. Era um cavalo confinado, o sujeito. Chegou relinchando desejo e desembestou-se por cima rasgando roupa e lençóis, sem maiores cerimônias. Não queria. Não ontem, quando uma fanfarra desafinada cismou de ensaiar o dia todo no fundo da sua cachola. Dá mais uma volta de cachecol em torno do pescoço. Embora um resfriado agora fosse tudo de bom, desculpa perfeita para faltar ao recital e se meter de vez embaixo das cobertas. Pausa para se pôr nos eixos, degolar mentalmente o cavalo e dar a Handel a merecida banana - a que ninguém ousaria dar ao gênio dos Oratórios. Happy Christmas, mundo. Passe muito bem sem mim.

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sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

AGORA É HORA, ÔE!


Quem poderia imaginar que, a essa altura da vida, o “Perde Tudo” do “Roda a Roda” ia cair como uma bigorna de desenho animado em cima de mim, este pobre servo de Davi? Má ôe, presente de 80 anos, é pegadinha? Heim???

Não dobro a espinha, um judeu da minha ascendência jamais será um decaído sem salvação. Recomeço do nada. Do nada uma ova, tiro proveito da fama que fiz. Volto pra minha banca de capinhas de título de eleitor e de canetas de tinta aguada. Tirava mais dinheiro sozinho que todos os camelôs da Praça da República juntos, apregoando em uníssono canetas muito melhores que as minhas. Pronto, ganho um monte de dinheiro pra mim mas resisto à tentação de ficar abrindo empresas com o tanto que me sobrar. Quando muito abro um novo Baú, mas antes invento outro recipiente. Mais moderno e cibernético. Tem gente que nem sabe mais o que é baú, isso é coisa onde se guardava enxoval de sinhazinha. Acorda, Senor. São novos tempos, funde uma seita, venda a salvação eterna ao invés de carros, lambretas, capas de botijão de gás e bonecas falantes em sorteios semanais – se o freguês estiver rigorosamente em dia com as mensalidades. Venda o que lhe cair às mãos, venda o glacê do bolo e as 80 velinhas como relíquias da grande festa via satélite. Anuncie um striptease seu, a começar pela peruca, no horário mais nobre do SBT e comercialize as cotas de patrocínio a peso de ouro. Pois barras de ouro valem mais do que dinheiro.

Não, não. Esquece. Me aposento de vez e deixo o Portiolli no meu lugar, só fico lá em casa mexendo na grade. Mas grade pra mexer em casa só se for a do canil do cachorro, já que a TV está praticamente vendida. A emissora e os aparelhos que tenho na mansão do Morumbi, incluindo a 14 polegadas do quarto da empregada. Preciso fazer dinheiro rápido, ôe. Só espero que o bispo mantenha a oferta e assine o contrato da joint venture para implantar no Mercosul a Igreja do Santo Silvio. Eu entro com a imagem e ele com todo o escopo logístico e de fomento às franquias. Batismos por atacado em piscininhas de lona, dízimos que retornam em mercadorias à sua escolha e títulos de capetalizalização comercializados nos cultos espalhados a cada oito quarteirões. Mas olha eu aí divagando e deixando pra lá a banca das canetinhas. Marrrr volta lá pro seu lugar, Silvio, sai pra lá, sai pra lá, ôe. Foi desse jeito, criando holdings de mil braços, que você se enfiou em camisa de onze varas.

Senor, o que é isso, Senor, você pode mais. Você opera milagres, é a própria porta da esperança. Um extenso portfólio de produtos para meus telespectadores e colegas de trabalho. Gotículas de saliva silviosantescas para cura de gagos. Bolsos de ternos que guardavam os aviõezinhos para o auditório, vendidos no Mercado Livre como se fossem indulgências da Inquisição. Kits do Pequeno Silvio Santos para o Dia das Crianças. Autógrafos originais, com firma reconhecida em cartório, cuja concessão é do meu genro, casado com a minha filha número quatro. Chats pagos pra falar comigo a qualquer hora do dia ou da noite. Travesseiros e almofadas com a minha estampa, bonecos de pancada para academias de boxe, para quem não é lá muito afeito à minha pessoa. Silvio, agora para. Para ou continua? Heiiiiiimmmmmm??? Má ôe! Ai, ai, ai, viu.



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sábado, 4 de dezembro de 2010

PAPAI NOEL É TURCO

Ilustração: Thiago Cayres




Nada contra os turcos e sua milenar fama, talvez infundada, de muquiranice. Tenho alguns amigos turcos, amizades que perduram por toda uma vida sem exigir nada em troca (o que não é muito comum entre os turcos, dirão os maledicentes de plantão). Mas o fato é que, segundo fontes de reconhecida credibilidade, Papai Noel, ou São Nicolau, nasceu na Turquia – mais exatamente na cidade de Petara, na segunda metade do século III. E isso explica muita coisa. Ou melhor, a falta de muita coisa.

. Primeiramente, elucida a triste estatística de que 83,4% da raça humana não recebe um chaveirinho que seja como presente de Natal. De onde se conclui que o tão propalado espírito de fraternidade reinante em cada esquina desmorona-se quando é imperativo meter a mão no bolso. E bolso é algo que não existe nas acetinadas calças rubras de Noel.

. Justifica-se, também, a alocação intensiva de mão de obra chinesa na confecção da quase totalidade dos presentes trocados no planeta durante as festas de fim de ano, incluídas aí as confraternizações de amigo secreto.

. Ao entrar silenciosamente pela chaminé e a altas horas da noite, o velhote evita que alguém da casa acorde, abra os embrulhos e encha sua cara gorda de sopapos em razão da quase sempre péssima qualidade dos presentes.

. Sua imensa e anti-higiênica barba é fruto de economia igualmente porca: é que o bom velhinho não quer morrer com uns trocados na compra de apetrechos de barbear, mesmo que sejam aqueles de marca própria vendidos nos hipermercados.

. Repare que ele traja invariavelmente a mesma indumentária. Os mais aguerridos aos rituais natalinos poderão argumentar dizendo tratar-se de tradição. Na verdade ele só tem aquela roupa mesmo, sendo que a dita cuja envelopa sua carcaça gordurenta desde mil setecentos e qualquer coisa.

. Suas renas voam porque foram forçadas a desenvolver a capacidade de levitação, já que não são alimentadas pelo dono sovina e não aguentariam nem meio quilômetro de galope.

. Por mais que o tempo passe, a única forma de se comunicar com o ilustríssimo turco é através das famigeradas cartinhas. Isso porque nosso anacrônico herói se recusa a adquirir um computador, ainda que de segunda mão, e consequentemente também não possui uma conta, ainda que gratuita, de email.

. É de sua autoria a versão alternativa da letra de Jingle Bells, cantada até hoje a plenos pulmões pela gurizada: “Jingle bells, jingle bells, acabou o papel... não faz mal, não faz mal, limpa com jornal”. É claro que, partindo de Noel, não poderíamos esperar coisa mais aproveitável em termos lítero-musicais.

. Alguém que nasce na Turquia e muda-se para o Polo Norte é alguém que, no mínimo, merece a desconfiança da Interpol. Quais motivos estariam por trás de mudança tão radical de endereço? Notório inadimplente e toureador de credores, Papai Noel encontrou na ausência de constituição, de tribunais de justiça e de presídios da calota polar o esconderijo perfeito. Ali montou seu QG, onde maneja suas falcatruas sob diferentes nomes, dentre eles Santa Claus, Père Noël, Viejito Pascuero e Babbo Natale. Se tiver qualquer pista sobre o seu paradeiro, ligue para o distrito policial mais próximo. Você não precisa se identificar para formalizar a denúncia.


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