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sábado, 27 de junho de 2009

PEDRÃO SOLTA O VERBO


Pobres infelizes, até parece que vão conseguir alguma coisa a mais comigo por conta desse foguetório todo. Não posso falar pelo Antonio e pelo João, menos turrões e mais misericordiosos, mas da parte do Pedrão aqui podem tirar o cavalinho da chuva e esquecer qualquer ajuda extra. Além do mais, ninguém lembra de verdade da gente, servimos mais pra dar nome à efeméride do que pra qualquer outra coisa. Ultimamente, nem isso: é festa junina pra cá, festa julina pra lá e o santo homenageado fica de sonso na história, batizando um rega-bofe que compromete seriamente a sua honrada biografia.

Tem coisas que só dando risada. O que eles chamam de pau-de-sebo, este eucalipto toscamente besuntado e com a minha figura lá em cima, para mim só pode ser efeito desse friozinho de inverno sobre o cérebro, façam-me o favor. Que cheguem a mim pela caridade, pela oração e não por essa escalada anti-higiênica, que aos vencedores rende um prato de pé-de-moleque amanhecido ou prenda ainda mais reles, jamais o reino dos céus.

Deviam aproveitar essa fogueira enorme armada aí embaixo para queimar os hereges dessa pândega sacrílega. E como há gente, com esses inocentes vestidinhos de chita, calças de grife falsamente remendadas e dente pintado de preto, que merecia uma inquisiçãozinha daquelas, ao melhor estilo medieval. Não exagero, não. Eu é que sei como é que a coisa termina, eu é que vejo o ritual nada católico atrás da tulha do rancho e cafezal adentro, sob efeito do quentão e da vitamina E do amendoim torrado. Já vi um casalzinho – o padre e a noiva da quadrilha, por sinal – que findo o arrasta-pé fez o que tinha que ser feito escorado no já citado pau-de-sebo, sendo que o sebo acabou servindo para um expediente que nem estando nos fundos dos infernos eu ousaria narrar. Pelas túnicas de Barnabé!

Vejo pais de família e gente de moral insuspeita furtando paçoca, desviando rojões para soltá-los no próximo jogo do seu time, superfaturando cachê de sanfoneiro. Em tudo quanto é quermesse vejo barracas da pesca com anzóis viciados (sei por experiência própria porque de pesca eu entendo), envelopinhos de correio elegante com cocaína dentro – tudo em nome da devoção a este que vos fala. Fora as calúnias envolvendo minha pessoa que entoam abertamente por toda parte, dizendo que eu fugi com a noiva na hora de ir pro altar. Brincadeira inconsequente com o sacramento do matrimônio! E ainda falam que a dita cuja era filha do João, com quem o Antonio ia se casar. Aí já é demais, me poupem. São Pedro cobiçando a mulher do próximo, sendo que o próximo é outro santo!!!

Pergunto: que tem tudo isso a ver com este velho Pedro que andou com o Mestre sobre as águas, que infortunadamente o negou por três vezes, que tem as chaves do céu? Milho verde, pipoca, canjica, lá na Galileia nunca teve nada disso. E o delírio prossegue com mais uns outros termos sem pé nem cabeça, que um sujeito fica entoando no microfone enquanto os caipiras de fachada saracoteiam aos pares: caminho da roça, balancê, a ponte quebrou, olha a cobra...

Vou é fechar o tempo e mandar uma chuva pra acabar com tudo.

© Direitos Reservados

sábado, 20 de junho de 2009

CINE LUXOR




Vinte e quatro quadros por segundo. A ilusão do movimento no seu olhar desiludido, em jogos de luz e sombra. Veio porque é domingo, depois da igreja e do almoço só pode haver o cinema. As manhãs preguiçosas do domingo, as tardes estéreis do domingo, as noites insuportáveis do domingo trazendo o nojo inevitável da segunda.


Ceda. Deixe estar, não há o que possa ser feito. Nada como uma inocente matinê quando o oco da existência se apresenta e toma assento. É, está sentado ao seu lado com aquela cara impassível e pagou meia, o espertinho.


Lá fora o mundo é lesma, um esparramar demoroso. Só o que prossegue é a sessão nesses rincões esquecidos. Uns poucos bem-te-vis pousados nos beirais do palácio branco em frente ao jardim. Num dos quartos alguém decerto faz a sesta reparadora. Passe pelo corredor, pare na sala. Os retratos a óleo simetricamente dispostos, os móveis espanados. Os ricos fartos do seu manjar, seus rostos sentindo agora a felpa dos veludos. Estão em paz com seus corpos e saciados em seus haveres.


Pegada à mansão, a escola. Muda e descorada, descansa solenemente da algazarra dos meninos. Em preto e branco e câmera lenta, um cachorro erguendo a pata e urinando no pneu. Todos na Vila Alva cheios como pneus – do dia que não acaba, das horas que não passam, da notícia que não chega. A rotina sem novidades de qualquer ordem, substancial e definitiva como um paralelepípedo. É o momento em que o olho pede lupa, a alma pede ânimo e cada coisa estática mostra a crueza que tem.


Espere um pouco. Volte ao filme. Rebobine, projecionista. Dez minutos de devaneio e lá se foi o enredo da história. Se alguém perguntar qual filme viu, não saberá responder. Abra uma bala. Chore, chorar faz bem. Nem vão reparar, tão pouca gente aí dentro. Estúdios de animação do mundo todo, uni-vos para animá-lo. Depressa, antes que lhe arrastem mil elencos de fantasmas e vilões. Lanterninha, acuda lançando luz sobre seus olhos marejados.


A perna dorme, o corpo cansa no estreito da cadeira. Cruze os braços, tente entender os diálogos sem olhar as legendas. Durma. Faça como a perna: durma. Tanta gente paga ingresso de cinema para dormir. Jogue-se num triplo mortal ao centro da tela. Deixe-se ser o mocinho desse roteiro caótico. Corta. Câmera abre o enquadramento e faz uma lenta panorâmica por toda extensão do que você foi até agora. Basta de fazer o cartaz do filme alheio. Veja a platéia vendo você dentro da fita, brilhe, acene, dê autógrafos, sinta aos seus pés o tapete vermelho da entrada do Oscar. Perpetue-se no celulóide. Coragem, vá. Queime de uma vez os negativos desses dias: bem-vindo à avant-première de si próprio, em doube surround e pleno de efeitos especiais. A comédia de levezas indizíveis, com o sapateado frenético dos musicais da Metro. Até a bilheteira rói as unhas, torcendo pelo seu final feliz. Se não pela sua vontade, ao menos pela bilheteira seja feliz para sempre. The End.


© Direitos Reservados

sábado, 13 de junho de 2009

MAIS NÃO PEÇO


Eu olho para o seu retrato na carteira, em meio a esse Vietnam particular, e sinto o quanto tem valido a pena voltar para casa tendo morto e debaixo do braço o leão do dia, o troféu que lhe entrego em permuta de um sorriso, o costumeiro, não mais do que aquele protocolarmente aberto junto com as venezianas às sete da matina, sua hora predileta.

Não importa que no decorrer do período me falte o eixo pela pressão baixa e o discernimento para o que quer que esteja a um palmo do meu nariz: o que posso lhe assegurar é que sempre prevalecerá a devoção incondicional e espontânea, oferecida de bom grado para que as coisas continuem simplesmente assim, sendo o que até agora foram, pois mais não peço por não ter direito nem merecimento. Eu me contento com a janta escassa e racionada, uma beirinha que me caiba é o bastante, dá de sobra.

Que eu lhe seja provisoriamente útil como um calço de mesa é ideia a que já me acostumei, não tenho em mim qualquer pretensão além de compor a série B do seu time de soldados descartáveis. Escolhi assim quando lhe vi me vendo, com olhos mais curiosos que propriamente interessados, apenas acolhendo meu espanto e deixando governar sua vontade sobre a minha, sentenciando a sina que desde então vai se perpetuando. Suas esporas e botas de cano alto fazem verter o sangue, mas não machucam mais.

Mesmo que a você não diga muita coisa o fato de estarmos juntos, do marco zero espero que possa estar lembrada, com uma mínima ponta de nostalgia. Era então naqueles dias do começo, o reconhecimento tátil que permitia quando muito a mão na mão e uma ou outra palavra dita só no intento de dizer alguma coisa, não que houvesse precisão. No mais das vezes o silêncio era servido e se bastava, em tons de um cinza azulado. Quanto às urgências do sexo e outras do amor sabia por ouvir falar, ou das lições da rua ou das besteiras escritas e ditas em caráter de segredo nos banheiros de escola - repertório nulo quando dei pelo seu corpo, meses depois do reconhecimento inicial, pois nada do que fantasiei como sendo de proveito se encaixava no campo de pelos e carnes de verdade, o que para mim foi outro e envergonhado susto. E de que forma estranha você ria de mim e de minha imperícia, nem um pouco complacente com este aprendiz nos seus braços.

Em seguida vimos nós dois, se impondo no sítio da cama, um desajeito cerimonioso seguido por um modo todo seu de olhar o desenho da serra como se houvesse um outro e oculto contorno por trás dele. Coisas que ia percebendo e ruminando quieto após o seu cansaço, pressentimentos que não lhe contava para que nesse homem das trincheiras você não enxergasse um covarde cheio de dedos. O que seria uma injustiça – logo eu que saio à luta a despeito de inimigos tão mais fortes, ansiando uma comenda de bravura.

De espanto em espanto não restou para mim um palmo de conforto, o suficiente para que pudesse me sentir, um dia que fosse, num lar e na intimidade da mulher da minha vida – ainda que não seja nem de longe o homem que você imaginou para a sua.

© Direitos Reservados

domingo, 7 de junho de 2009

A SAUDADE DA CASA EM QUE NUNCA ENTREI


Ali hoje, e já há tempos, é o Banco do Brasil. Aquele que diz que é o Banco do João, do Carlos, da Helena, da Ritinha, do Zé. Ali ontem foi o palacete da Dona Lucina, a casa dos filhos Francisca, Mariquinha, Felipe, Henrique, Antonio e da penca de netos que alguns loucos ainda juram ouvir a algazarra no salão de jogos.

Ali hoje há filas de gente com a testa franzida e olhar distante, ansiando a campainha que chame por sua senha para amortizarem, com o pouco que pinga, o muito que devem. Ali ontem também havia filas, mas filas de gente com festa no rosto e nas vestes, que se formavam desde suas escadarias de mármore até ganharem as entranhas mais escondidas de São João, na procissão do Divino.

Quem tem um pouco mais de história para contar há de lembrar que bem ali, onde estão aquelas máquinas cuspidoras de dinheiro, a velha matriarca da Fazenda Matão acompanhava aflita a cotação do café no rádio capelinha, uma mão no seletor de estações e outra no terço, rogando forças não para manter a fortuna que tinha, mas para continuar dando amparo à vila de colonos que dependia dela.

Os que hoje passam com pressa e indiferença em frente ao prédio de blindex da Praça Armando Sales desconhecem o que se chorou e se riu enquanto ali era um lar, com panelas no fogo e compotas na despensa, lar que continuava lar de afeto e de aconchego a despeito da rica mobília, das desavenças políticas, das pequenas intrigas que cercam quem quer que habite uma mansão de quarenta e quatro cômodos.

Quem vê a agência bancária moderna, a dominar o quarteirão com todo o aparato de segurança, provavelmente não testemunhou o ranger do portão da frente, em madeira vermelha, que se abria com generosidade idêntica para um mendigo ou para o Juscelino Kubitschek. Nem lembra do Dr. Oscar a clinicar de graça ou recebendo porcos e galinhas em paga de partos, na época em que seu consultório ocupava um dos quartos do casarão.

No banco 24 horas, frio como moeda, já não se tem mais notícia da dama lusa em trajes negros, Dona Lucina para uns e Mandinha para outros, que há muito já estava na igreja enquanto a cidade dormia. A portuguesa que veio dos Açores no século dezenove, jeito austero e sotaque carregado mesmo após meio século de Brasil, só deixava a sua casa pela casa de oração. E embora lá de cima a entristeça ver a estranha metamorfose do cenário da sua vida, às vezes deve abandonar o cantinho de céu a que teve direito para vagar por seus domínios demolidos, zanzando entre um caixa e outro como se estivesse buscando empréstimo para a colheita de café. Talvez ao ler este texto ralhasse comigo, bisneto a quem nem conheceu, como ralhava com os netos no salão de jogos.