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domingo, 18 de outubro de 2020

PROÁLCOOL EM GEL

 


Proálcool em Gel, o novo programa governamental de Buana-Xongas, é lançado e apresentado à imprensa com a pompa e a circunstância dignas do seu protagonismo estratégico em âmbito mundial.



Numa primeira fase de implantação, bilhões de litros de álcool em gel foram utilizados para queimar cem milhões e duzentos mil hectares de matas nativas, na região norte do país. Estas deram lugar a latifúndios imensos de cana, que por sua vez produzirão mais e mais álcool em gel padrão Ultra Max Quality Premium para exportação.



Para o brucutu recém-liberto da Covid, tataraneto do polêmico Presidente Donald (e que aos berros promete, tal qual o tataravô, fazer a América grande novamente, desde que possa continuar contando com o voto do típico ianque comedor de sandwich de pasta de amendoim), trata-se de um momento de gigantesca importância para a raça humana. "Álcool em gel é o elixir da vida e o novo ouro, a ele se rendem - inativados e inofensivos - coronavírus de todas as cepas e mutações. Podem apostar: a partir de hoje, nada e nem ninguém nos deterá. Nossa sólida parceria com Buana-Xongas significará a prosperidade que tanto queremos resgatar".



Em meados do ano passado, após a 192a onda de contaminação multicontinental, que em duas semanas varreu da Austrália o equivalente a 26% de toda a população do Tennessee, líderes do mundo todo anunciavam com alívio o final da pandemia. Na ocasião, quase todo o estoque mundial de álcool em gel consumiu-se na festa de passagem de ano 2134-2135, utilizado para tocar fogo em quatrilhões de máscaras de proteção até então em uso no planeta.



O anúncio foi um grande chabu retórico, como hoje todos sabem. Descrentes do fim do suplício, especuladores visionários estocaram preventivamente algumas centenas de piscinas olímpicas repletas de álcool em gel. Foi a nossa salvação. Não fosse esta pequena reserva, a humanidade não teria como se defender da praga até que o novo Proálcool se implementasse como sistema. Mas, agora sim, podemos ficar tranquilos. Felicitemos uns aos outros, em solidários e saudosos apertos de mão.







Esta é uma obra de ficção.

© Direitos Reservados

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

NESSES NOVOS DIAS




Eu não vi, mas é como se estivesse vendo agora na minha frente o Marcos Valle, sem camisa e sentado ao piano em uma tarde de sábado de 1971, compondo o tema de fim de ano encomendado pela Globo, com o Nelsinho (em estado, digamos, alterado de consciência) esperando a música ficar pronta para botar letra junto com o Paulo Sérgio, irmão do Marcos.



Música concluída, letra entregue e discussão armada:



- Olha, sei lá, meu... não é melhor "nesses lindos dias" do que "nesses novos dias"?



O Nelson se defende.



- Mas eu falo dos dias que estão por acontecer. Não enche o saco, Marcos.



- Sei não, olha só, tem "novo dia" no primeiro verso, no segundo tem "novo tempo", depois vem "novos" de novo? É muito "novo" pra uma letra só, se você trocar por "lindos" fica bom do mesmo jeito e não repete tanto.



Eu vi, um ano antes, sentado num pufe e abraçdo a um bambi de pelúcia, noventa milhões em ação botando o Brasil pra frente. Aqueles mexicanos com seus sombreros invadindo o gramado de Guadalajara. Sem saber direito o que estava acontecendo e em preto e branco, com um plástico azulado por cima da tela, pra dar um certo gostinho de TV colorida - coisa que só chegaria pra valer na Terra de Santa Cruz em 72, 73. E apenas nas vitrines das lojas chiques, onde o povo se amontoava à noite, boquiaberto. Lembro que tinha até pipoqueiro na esquina e rádio patrulha rondando, no caso de haver confusão. Estes poucos aparelhos, quando saíam do mostruário, iam para as casas dos muito, mas muito ricos mesmo.



Eu vi a Lolita e o Airton segurando uma bandeja, com um porco assado de maçã na boca, fazendo merchan da Cantina Don Ciccilo ao lado do Carlos Imperial - bebendo uísque e fumando, em pleno programa vespertino. Sendo que o merchan era pura permuta - o restaurante entrava com o rega-bofe para os artistas todos do "Almoço com as Estrelas" e o apresentador fazia o testemunhal. Zero de dinheiro envolvido!



Eu vi o Silvio Santos apresentando o "Só compra quem tem" e falando com seu irmão Léo pelo telefone, dizendo que "prêmios, prêmios, prêmios o Baú agora dá". Pelo menos em 50 desses 70 anos que a TV faz agora, alguns flashes marcantes deixaram registro nesta caixola abarrotada. Coisas que aos poucos vão deteriorando. Como as fitas de videotape que ainda restaram, salvas dos incêndios da Record, da Globo, da Tupi, da Excelsior.



Eu vi, sim. E é quase certo que não trocaria o que vi, fragmentos que guardo em caixinhas de veludo dentro de um cofre de aço, pelas décadas que um garoto de 15 de hoje tem pra ver. Prefiro reter o pouco que possuo entre uma dobra e outra dos miolos, mesmo que nada disso exista mais, do que partir, titubeante, rumo ao que esse menino teria pela frente. Pra que eu fizesse uma troca dessas, precisaria ter muita vantagem envolvida. Vantagem grande, de respeito. Talvez uns 150 anos de bônus por aqui. E isso se eu tivesse certeza que o "aqui" continuaria existindo em 2170, evidentemente.







Esta é uma obra de ficção.

© Direitos Reservados



Imagem: https://observatoriodatv.uol.com.br/





domingo, 4 de outubro de 2020

NO AR, O MAIS ÍNTIMO DOS REALITY SHOWS




Ao contrário da mecânica habitual, o novo reality show não terá a participação de pessoas que não se conhecem e que se reúnem para se amarem ou se odiarem sob o mesmo teto. Será protagonizado por moradores de um quarteirão inteiro, que convivem comunitariamente há anos ou décadas. Vizinhos que têm laços muito próximos ou que não se conhecem quase nada, mas que têm em comum o fato de habitarem a mesma quadra.



Os moradores e famílias participantes deverão adivinhar qual a identidade do vizinho que em determinado programa terá sua intimidade devassada pela divulgação de seu extrato bancário, de seu varal de roupas e do lixo que produz.







PROVA NÚMERO 1 - DE QUEM É O EXTRATO?

Como todo extrato de banco, será pormenorizado - detalhando o saldo do dia em que foi impresso, quais as quantias gastas nos 30 dias anteriores e em que produtos e serviços. Enfim, espelhando fielmente as despesas que o vizinho "misterioso" teve.



PROVA NÚMERO 2 - DE QUEM É O VARAL?

De um sisudo suéter a uma calcinha insinuante, adquirida em sex shop. Tudo pode aparecer no momento em que o fotógrafo do programa bater à porta do morador da vez. Se o participante correr para o quintal a fim de deixar o seu varal publicável será automaticamente eliminado da competição.



PROVA NÚMERO 3 - DE QUEM É O LIXO?

A produção do programa isola o quarteirão para, logo nas primeiras horas da manhã, coletar - antes dos lixeiros - o saco de lixo de determinada família. Sem cortes ou edições, o saco será aberto ao vivo, dando publicidade nacional ao que de mais indevassável o participante pode ter: a sua privacidade doméstica.



A partir destas revelações - o extrato bancário, as roupas do varal e os dejetos do cotidiano, os participantes tentarão adivinhar a identidade do morador. Ganha o reality show quem mais acertos obtiver em seus palpites. A emissora informa que em breve abrirá inscrições para os quarteirões interessados em participar da primeira edição do programa.





Esta é uma obra de ficção.

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