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sábado, 25 de maio de 2013

QUEM MANDOU ME OBEDECER?









- Minha Nossa Senhora dos esquálidos, o senhor está que é só pele e osso! O que aconteceu? A ideia era perder 15 quilos em dois meses, e em três semanas o senhor perdeu 42!

- Bom, eu simplesmente fiz o que o doutor mandou: dieta e exercício. Cortei gordura, açúcar, massa, refrigerante. Cortei de vez. Só salada, frutas e arroz integral. Deu certo, né? Não vai me dar os parabéns, doutor?

- Eu vou é lhe dar um puxão de orelha daqueles, mas o merecido mesmo era colocar em você uma camisa de força, chamar uma ambulância e interná-lo no hospício mais próximo!!

- Não estou entendendo...

- Veja você como são as coisas. Eu costumo recomendar aos meus pacientes pelo menos 140 minutos diários de bicicleta ergométrica, com carga média de esforço e respeitando a frequência cardíaca máxima.

- Sim, exatamente como eu tenho feito.

- Acontece que, até hoje, só você foi o louco que resolveu seguir isso à risca. Quando você comprou a ergométrica veio junto um livreto com a relação de assistências técnicas autorizadas, não veio? Se você procurar por elas, vai ver que nem existem, porque ninguém usa uma bicicleta dessas a ponto de precisar de oficina. São quinze dias de pedaladas na carga mais levinha e pronto, o sujeito encosta e vira cabide de roupa. Quem pode precisar da assistência técnica é o cara que vai comprar a bicicleta de segunda mão. Só que aí já acabou o prazo de garantia, embora o produto esteja como saiu da loja. Nem o plástico do selim é retirado, pode reparar. Isso acontece com 100% dos pacientes, no mundo inteiro. Há estudos científicos que comprovam o que estou falando!

- Espera aí, explica melhor essa história. O doutor está se contradizendo. Eu obedeci exatamente às orientações médicas e levo bronca por ter feito a lição de casa?

- Então, mas quando é que eu ia imaginar que alguém um dia ia seguir esse suplício a ferro e fogo? Eu recomendo por desencargo de consciência, meu amigo, já sabendo de antemão que serei desobedecido. A lógica é a seguinte: quando eu prescrevo no mínimo 140 minutos de pedaladas, é porque eu sei que o sujeito vai fazer no máximo 5. Então eu coloco essa margem a mais de 135 minutos para que pelo menos 5 sejam feitos. Compreendeu agora?

- Sim, mas...

- O mesmo ocorre com a orientação alimentar que lhe passei. Fala sério: como é que pode um ser humano passar só à base de verdura, fruta e arroz integral? Nem na Índia, meu caro. Nem faquir de circo consegue isso. Eu lhe indiquei esse cardápio pra que o senhor cortasse quando muito a picanha e a garapa, mas continuasse comendo queijo, fritura, bolo de chocolate, essas coisas que ninguém resiste. Nem eu.

- Eu juro que posso explicar. Na verdade...

- E não me venha com desculpa esfarrapada. Estou solicitando nessa guia aqui uma série de exames, para a gente investigar direitinho o estrago que o senhor fez com o seu organismo. Desculpe eu ficar assim, meio exaltado, mas tudo tem limite. Ora, onde já se viu... tem louco pra tudo nesse mundo.

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 18 de maio de 2013

BOAS NOVAS EM ANGU DOCE








O vereador Girz Antoniello , da cidade de Angu Doce (RR), é mesmo um político visionário. É de sua autoria o projeto de lei que muda os nomes de ruas batizadas em homenagem a vultos históricos por denominações que correspondam às áreas comerciais da cidade onde estão localizadas, facilitando assim a vida dos carteiros e da população em geral.

O ilustre vereador explica melhor o projeto e defende seu ponto de vista: "Em primeiro lugar, ruas com nomes de celebridades políticas, culturais e científicas toda cidade tem. No país, são dezenas de milhares de ruas, avenidas, praças e alamedas chamadas Duque de Caxias, General Osório, José Bonifácio, Tiradentes, Regente Feijó, Dom Pedro (1º e 2º), Deodoro da Fonseca, etc. Essa turma já está mais do que homenageada, do Chuí ao Oiapoque. O que proponho, na verdade, são sutis adaptações nos nomes - não os descaracterizando totalmente, mas agregando a eles algum elemento que identifique a região comercial onde as ruas se situam".

Nos setores onde se concentram as lojas de materiais elétricos, por exemplo, a Rua Benjamin Constant viraria só Rua Benjamim. Ainda no setor de eletricidade, a Avenida Marco Polo, que divide a zona norte da zona sul, se transformaria em Marco Polo Positivo. Seguindo o mesmo raciocínio, está prevista também a mudança da Rua Leonardo Da Vinci para Rua Leonardo da 20W. Diz ele: "Veja só a facilidade na hora de localizar um endereço. Ao ler o nome da rua, o sujeito já identifica a parte da cidade onde ela fica. Modéstia à parte, esta minha ideia é um achado. A não aprovação do meu projeto de lei significará um retrocesso para todos os angu-docenses".

Na região das lojas de roupas e tecidos, alguns dos nomes já definidos para as ruas são Viscose do Rio Branco, Juscelinho Kubitschek, Moletom Jobim e Marechal Godão.

Quanto às duas ruas que comportam o comércio de cosméticos, os novos nomes também já estão confirmados: Rui Babosa e Condicionador Valadares.

A aceitação, entretanto, não é unânime junto a outros vereadores e alguns segmentos da população, como os professores de História da rede municipal de ensino, que já articulam uma ação conjunta para impugnar a lei. Eles alegam desrespeito não só às figuras homenageadas, mas também à contribuição que deram ao desenvolvimento do país e à história da humanidade.

Girz Antoniello rebate às críticas, argumentando que a mudança dos nomes trará divisas à cidade e fará dela um destino turístico dos mais disputados, justamente pelo ineditismo da proposta. "Quem é que não vai querer vir em excursão até Angu Doce para tirar fotos junto às originalíssimas placas das ruas? Teremos um incremento considerável no comércio do município, com a abertura de novos hotéis, pousadas e restaurantes. Disso eu não tenho a menor dúvida."

Em nota oficial, autoridades do clero na região afirmam que só se pronunciarão a respeito após analisarem os novos nomes que serão dados às ruas da zona do meretrício.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 11 de maio de 2013

QUE DESELEGANTE




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- Óia, exprica direito essa história aí pra mim.

- O senhor tem que transmitir um certo verniz cultural, compreende? E no caso é só um verniz mesmo, porque a madeira... é de caixote de verdura...

- O quê?

 - Nada não, pensei alto. Sorry.

 - Ah...

 - Vejamos, vamos começar com a literatura. Aqui nesta parede da sala podemos providenciar uma estante bem grande. Na prateleira mais visível precisamos de pelo menos uns 80cm de lombadas de Guimarães Rosa, mais um outro tanto de Machado e uns 50cm no mínimo divididos entre Drummond e Pessoa.
 - Mai que diacho de pessoa é essa aí que a senhora falou?
 - Para os russos, seria de bom tom reservar uns dois metros ou mais de Dostoievsky, Tolstói e Tchekov. Todos com lombada bem vistosa, clássica, se possível livros bastante manuseados - pra dar um ar de intimidade do proprietário com as obras-primas. Conheço um sebo que vende esse tipo de livro para decoração e cenário de novela.

- Cerrrrrrrto.

- Fique tranquilo, pois os meus serviços abrangem a busca de conteúdo atualizado, para que o senhor fique inteirado de tudo o que acontece no circuito cultural - literatura, música, artes plásticas e assim por diante. Eu vou encaminhando as novidades em pequenos tópicos, para que o senhor as assimile e tenha suficiente repertório para não passar vergonha nas rodas de intelectuais. Trouxe um aqui um exemplo, veja só: "Vocês não acham que o último CD da pianista Maria João Pires obscurece os dois anteriores?"

- Ah, esses aí eu cunheço!! João e Maria, aqueles doi menino da casa de doce...

- Bem, continuando as orientações. O senhor tem que falar as frases que enviarei e desaparecer rapidinho, porque se alguém resolve lhe fazer uma pergunta as consequências podem ser desastrosas. O procedimento seria mais ou menos assim: o senhor lança uma determinada questão de natureza filosófica ou artística e o pessoal da roda, além de se admirar com sua cultura, vai querer deitar erudição para não ficar por baixo. E aí, enquanto eles se engalfinham, um querendo falar mais que o outro, o senhor dá uma desculpa e se retira discretamente. Entendeu?

- Entendeu.

- Agora, tenha a bondade de prestar atenção aqui, na tela do meu notebook.

- Ô, mai o rapai que fez essa escurtura aí foi se inspirá no hospitar. Ó só, essa muié aí tá com os braço amputado e a outra muié do quadro tá com o pé que parece uma jaca. Vai vê que que é ácido úrico, só pode sê, pra ficar com os pé desse tamanho...

- Oh, my God.

- Cumé?

- Meu senhor, a escultura é a célebre Vênus de Milo e o quadro é o Abaporu, obra máxima da Tarsila do Amaral.

- Uia, é memo? E tem quem compra esses estropiado aí? Ou então vai vê que na escurtura da muié fartô pedra, por isso a coitada ficô sem os braço. O escurtô carculô mar.

- Vamos fazer do senhor um apreciador de óperas, um entusiasta da cena lírica. Ou, pelo menos, fingir que é. Ser amante de ópera é omust, meu caro. Ouça um trecho de “La Bohème”, para ir se familiarizando.

- Eita berreiro disgramado! Parece leitoa no abate essa dona aí. Esganiça forrrrrrrte.

- Mas que deselegante. Please, contenha-se.

- Priss?? Eita...




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sábado, 4 de maio de 2013

VELA DA VIDA TODA


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Existe uma tradição católica cultivada não sei onde, nem desde quando, mas existe. A vela de toda a vida: uma mesma vela acompanha o fiel desde o batismo até o velório, passando pela primeira comunhão, o crisma, o casamento, a unção dos enfermos. Concluída cada uma destas cerimônias, ela é apagada e guardada em casa, à espera do próximo uso, até que sua chama seja extinta em definitivo junto com o seu dono.

Bela tradição, de profunda simbologia: a mesma chama se renovando nos momentos decisivos da existência. Mestre Duña, o avatar da sabedoria suprema, enumera alguns possíveis desdobramentos - do fato e, literalmente, da vela, já que ela muito provavelmente trincará em vários pedaços e não estará mais parando em pé ao fim da vida do marmanjo.

No batizado, ao lado do padre, o padrinho segura a vela. Este sofre de Mal de Parkinson. É a primeira de uma série de fissuras no ainda reto bastão de parafina.

Mestre Duña adverte que há de se fazer uma ressalva que precede o batizado do cristão. Em caso de parto difícil, se acenderem uma vela nas vigílias de oração, é essa que valerá oficialmente como sendo a vela da vida do rebento, pois foi acesa por intenção dele - que para todos os efeitos já era um filho de Deus, mesmo estando ainda na barriga da mãe.

Crisma. Sendo a confirmação do batismo, acaba também confirmando a sina da vela rachada. Ela ganha novas fissuras quando o crismando a usa para bater na mão de um colega de sacramento, que inventou de fazer chifrinho sobre sua cabeça na hora da foto da turma.

Casamento. O padre se excedeu na homilia e deixou a vela acesa além da conta, consumindo quase a metade dela. O noivo, que a segurava, derrama um charco de parafina líquida nas mãos da noiva, quase na hora de colocar a aliança. A noiva morde o véu para não gritar de dor, mas num sofrido espasmo dá com o cotovelo na vela, que vai ao chão junto com o buquê de flor do campo.

Um belo dia, num interim de cerimônias, a estabanada faxineira foi limpar o armário e  a vela, mais uma vez, obedeceu a lei da gravidade. A essa altura já são dezesseis pedaços presos um ao outro pelo barbante do pavio.

Extrema unção. Após a benção do padre, o moribundo, em seu leito de morte, orienta a futura viúva: "Querida, tem só um toquinho de vela, mas deve dar e sobrar para o velório, o último ofício dessa minha fiel companheira. Você acende por uns dez minutos, apaga e coloca a pouca parafina restante no caixão. Pode ser no bolso do paletó, para ficar perpetuamente comigo, junto do coração".

O pavio, mal apagado, incendeia instantaneamente o terno de tecido sintético, e em segundos temos um esturricado defunto duplamente morto.

Mestre Duña conclui, com sua proverbial sapiência: "Queridos amigos, essas são apenas conjecturas. Uma advertência nem contra e nem a favor desse costume, seja lá onde for costumeiro. Só quis refletir um pouco, e fazê-los também ponderar sobre as consequências, nem sempre beatíficas, de sua prática. Fiquem com meu abençoado abraço”.



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