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sexta-feira, 25 de outubro de 2013

SUPERMERCADO VOLTE SEMPRE






Não tarda e chega de novo a hora dela: a compra de mês.

Lá vão os dois. No caminho, o marido vai pensando na série interminável de procedimentos à espera: da prateleira para o carrinho, do carrinho para o caixa, do caixa para o carrinho de novo, daí para o porta-malas, do porta-malas para o carrinho do prédio, do carrinho do prédio para a despensa de casa. Haja saco e saquinho de supermercado. Aliás, esses sim, resistem a tudo. Se você colocar mais que uma pasta de dente em cada um, a alça arrebenta.

É assim há 20 anos, todo santo dia 15, a melhor data para a fatura do cartão. Multiplicando-se os 20 anos por 12, temos a fantástica cifra de 240 compras de mês no decorrer do período.

Chegaram. É claro que o carrinho deles tem a roda enguiçada, que fica puxando pra um lado. Enquanto está vazio, tudo bem, quase não dá pra notar o incômodo. Mas à medida que o carrinho vai enchendo, o manobrista vai se enchendo junto.

Um carrinho vazio de supermercado nunca está vazio de tudo. Há sempre um raminho de brócolis esmagado, uma etiqueta de sutiã 54 e outras coisinhas do gênero, que podemos chamar de restos mortais da batalha anterior. Às vezes tem também a lista de compras da pessoa que usou o carrinho antes de você. Aquela listinha bem caseira, dobrada em quatro. Os ítens encontrados estão ticados ou riscados. Pode ser o contrário – o que está na lista é o que ainda tem em casa, pra lembrar de não comprar. Uma dica: se você estiver sem sua listinha pessoal, leia a do usuário anterior. Talvez você se lembre de alguma coisa que tinha esquecido.

Exemplo de lista típica, de autor anônimo:

Guardanapo – trazer 4 do + barato.
Pó de café – ñ comprar.
Bolacha de recheio – tem 2
Pipoca de microondas – pegar aquela do palhacinho, ñ lembro a marca.

E por aí vai. São todas mais ou menos assim.

O locutor anuncia uma oferta relâmpago. Ela lembra quando, em 1992, quase testemunhou o soterramento de uma velhinha num quiosque promocional de leite condensado. No empurra-empurra, entornaram a anciã no mar de latinhas, com as pernas pra cima e as anáguas à mostra.

Olha pra um lado, olha pro outro, ninguém está vendo. E ele devolve o Detefon Mata-Tudo na gôndola do grão-de-bico. Quem não faz isso? Mês passado ele encontrou um par de Havaianas tamanho 41 em cima de um filé de merluza, em oferta a 9,90 o quilo.

Por mais unido que seja, há o momento da separação do casal no supermercado, na seção de cosméticos. Ali a mulher vai passar pelo menos 45 minutos. Sabendo o tempo que vai perder, ele vai para aquele corredor perto das rações de cachorro, onde tem broca, estopa, cera automotiva e chave de fenda. É o habitat do macho de bermuda, camiseta regata, chinelão e barba por fazer.

Fim das compras, resta pegar a fila do caixa. Todas estão mais ou menos do mesmo tamanho, é preciso escolher uma. Meia hora depois eles percebem que é justamente essa uma que não anda. Todas as filas vão de vento em popa, menos a deles. É quando eles reparam no crachá da funcionária: “Em Treinamento”. Azar, agora é tarde pra entrar em outra fila.
Enquanto um vai colocando as coisas na esteira, o outro vai embalando. Mas aí a patroa lembra: “Nossa, esqueci o rodo!”
Que legal. Nada mais prático pra embalar e pra enfiar depois dentro do carro. Lá vai o maridão correndo feito um fugitivo da polícia, atrás do rodo esquecido. Chega lá e se depara com 16 tipos de rodos diferentes: com cabo de madeira, sem cabo de madeira, de alumínio, com borracha grande, com borracha pequena, com duplo borrachão, com triplo borrachão e exclusiva fita deslizante. Pega o que parece mais apresentável e nem olha o preço – a fila está parada, esperando por ele.

Mais surpresas. A água sanitária vazou bem em cima da baguete. O coalho do queijo fresco encharcou o sabão em pó. A cartela de danoninho, que estava lá no fundo, foi impiedosamente massacrada por uma PET Xereta de 2 litros. Acionado o fiscal do estabelecimento, o marido explica a história, diz que não foi culpa dele. Em vão. Vai ter que pagar pelo que fez e que não vai comer.

Na saída, cadê o carro? A3, C5, B4? Ficam zanzando a esmo pelo labirinto de automóveis. Encontrado o Corcelzinho, guardam as compras e chegam à cancela.

- Benhê, o cartão do estacionamento.
- Ué, pensei que estava com você...

Inspeção no porta-luvas, embaixo dos bancos, nos bolsos, na bolsa...
Pensa que acabou? Imagina. É como diz o saquinho – “Volte Sempre”. Dia 15 do mês que vem tem mais.

© Direitos Reservados

Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 19 de outubro de 2013

CONSULTÓRIO SENTIMENTAL





- Promete que fica só entre a gente?
- Lógico. Prometo, em nome da ética médica.
- Então tá. É que... estou tendo um caso clínico.
- Jura? Alguém da área?
- Ahã. Olha só essa radiografia que a gente tirou no último fim de semana prolongado.
- Nossa, que pulmões. E a faringe, então... Esse pomo de adão, tão proeminente. Que sorte a sua heim, colega. Isso aqui é objeto de estudo pra um simpósio internacional. Merece abordagem multidisciplinar.
- Quando olhei aqueles globos oculares, sem nenhum grauzinho de miopia ou astigmatismo, quase tive uma síncope. Foi adrenalina na veia. Observe essa ressonância magnética. Fala a verdade: que omoplata! Dá pra ficar assintomática? Você sabe que quadros dessa natureza provocam desde espasmos involuntários até a perda momentânea da consciência.
- É, ele é muito parassimpático.
- Parassimpático? Aquilo é uma aula de anatomia. Desequilibra o nível de estrógeno de qualquer mulher.
- E aí, conta. Partiu pra um exame mais detalhado? Na sua residência médica ou na dele? Conta, conta.
- Fiquei anestesiada. Quando dei por mim, já estávamos na maca.
- Nossa, assim na primeira consulta?
- Pra você ver. Confesso que no começo foi difícil me manter estável. A pressão chegava a 25 por 13, o coração a 140 por minuto.
- E daí pra frente? Qual a posologia?
- No mínimo três vezes ao dia.
- E nada de repouso entre uma e outra?
- Nadinha, menina. Uma febre que não passava. Depois os sintomas foram desaparecendo, e toda aquela convulsão toda evoluiu para uma forte e inexplicável letargia. Parecia uma espécie de maleita, com frequentes episódios de apneia.
- É, já vi relatos semelhantes. E aí, deixou de apresentar sinais vitais?
- Falência múltipla. Estado terminal, ao que tudo indica.
- Marcou retorno?
- O pior é que não. Ele me usou, não vou me conformar em ser mais uma na história clínica dele.
- Não estressa, não. E se por acaso ele agendar um horário, faz um charme. Dá uma de difícil, deixa o bonitinho na sala de espera. Como eu fiz com aquele judoca tarja preta, que me causava dependência. Eu sei como são essas coisas. Precisando de um ombro amigo, estou aqui de plantão.
- Valeu, obrigada mesmo.
- Só me promete uma coisa.
- Fala.
- Se der enjôo, manda ele pro meu consultório. É sempre bom uma segunda opinião...
- Sua Hipócrates!


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 12 de outubro de 2013

CUIDADO: NÃO-VENENOSO!





- Quero todo mundo na minha sala agora. Eu disse agora!

- Nossa, o que é que aconteceu?

- Recebemos um lote enorme de veneno vencido, ou seja, não fatal. Estamos rastreando todo o processo para detectar onde foi o erro e processar o fornecedor.

- E como é que a gente faz agora? A história é contada milhares de vezes por dia... se não tiver maçã envenenada, como é que vai ser?

- Pelas barbinhas dos sete anões, chefe! Isso aí é uma catástrofe de dimensões mundiais.

- Cala essa boca, vai, não precisa ficar me lembrando disso. Eu sei o quanto estou ferrado, os acionistas vão me cobrar explicações.

- Olha só, ligação de Singapura informando que o filme travou bem no ponto em que a madrasta entrega a maçã para a Branca de Neve. Houve confusão no cinema, tiveram que chamar a polícia, a plateia queria os ingressos de volta. Tá feia a coisa por lá.

- Calma, calma pessoal. A gente sabe que, na história, o veneno não é pra ser tão fatal assim. É só um nana-neném suficiente pra Banca ferrar no sono até a chegada do príncipe. Podemos tranquilamente substituir o veneno por uns dois ou três Lexotan de 6mg que dá no mesmo...

- Tá, mas o estrago está feito. Ou seja, onde quer que a história tenha sido contada nos últimos dias, a coisa ficou sem pé nem cabeça. A responsabilidade é nossa!

- Bom, aí já não é da alçada do meu departamento. Mas, daqui pra frente, se acharem a ideia do Lexotan boa, eu conheço um pessoal que fornece o genérico. Fica bem mais em conta. Até onde eu sei, eles têm um galpão lotado pra pronta entrega, e a data de validade é pra 2016. Resolve o problema por um bom tempo.

- Como saída emergencial, acho que pode ser. O problema é que a tolerância da mocinha ao medicamento tende a aumentar. Mesmo dando mais sossega-leão pra ela, a expectativa depois de algumas semanas é que ela desperte antes da chegada do príncipe.

- Gente, notícias frescas do norte da Itália. A história estava sendo contada hoje de manhã, para um grupinho de jardim da infância de uma aldeia. Estão dizendo que a porca da princesa traçou a maçã até o talo, deu um baita de um arroto, cuspiu as sementes na rua e foi multada por um fiscal da limpeza urbana. A situação está fugindo do controle. Estamos desmoralizados. Os Irmãos Grimm devem estar se virando nas catacumbas.

- Tem mais. Chegou um email de São Félix do Araguaia informando que a Branca comeu a maçã, saiu pra rua e se enrabichou por um atendente do Subway local. Ficaram conversando num banco de praça e tomando energético com tequila, enquanto o príncipe chegava a todo galope. Ele arrombou a porta da casa dos anões e, claro, não viu caixão nenhum. Começou a esbravejar, dizendo que aquilo não estava no script e que ia pedir uma indenização milionária por danos morais.

- Mais essa... cancela a compra do lote de Lexotan, ou então não vamos ter grana para o acerto com o sacana do príncipe. Vamos tentar uma conciliação no juizado de pequenas causas.

- Pequenas causas?? Só se a pendenga fosse com os anõezinhos. No caso do príncipe, grandalhão do jeito que é, vai ser difícil. Fora que ele tem uma renca de advogados reais.

- Se o advogado dele fosse bom mesmo, ele já teria escapado da história. Ou conseguido um Habeas Corpus.

- Bom, lá isso é.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 5 de outubro de 2013

SORVETERIA DRUMMOND





Tome aqui uma pazinha, experimenta o de nozes com coco queimado. Ninguém em Itabira faz deste sabor, olha como é cremoso. Um pingo de cobertura de chocolate caiu sobre o original de "Tardes de Maio", outro dia. Sinal dos deuses de que devo descartá-lo, é a mancha da reprovação de alguém que lá de cima é melhor em crítica literária do que eu em poesia. Vai, Carlos, ser sorveteiro na vida. Darei ao "Tardes" o mesmo e infeliz destino da "Máquina do Mundo" - o cesto de casquinhas espatifadas.

Sigo vagaroso, de mãos pensas, apertando o passo e olhando tenso para o relógio. Daqui a pouco acaba a missa, e Deus deu a este magricela uma sorveteria bem no caminho de volta dos fiéis para suas casas. Escalda, sol, nos cangotes dos meninos que imploram picolés a todo custo, me arruma aí um bom faturamento para compensar a baixa inspiração.
 Imagina, dona, isso acontece. Já vou mandar passar um pano de chão rapidinho, fique tranquila. Cachorro não sabe quando e onde pode mijar...

Para de uma vez com esse negócio de escrever, Carlos, bota todas as palavras pra gelar. Que se resuma a escrita, no seu caso, a anunciar os sabores na lousinha, a banana split em oferta, a calda de caramelo grátis pra quem escolher pistache de segunda a quarta.

João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili que amava todos os nossos sundaes repletos de cerejas ao maraschino e farofa de nozes. Façam como a Lili e venham se deliciar, com a família e com os amigos, no mais refrescante oásis da cidade.

E agora, José? E agora nada, é abanar as moscas e congelar os dias nesta pasmaceira que mal dá pro gasto. O aluguel vai vencer, a matéria-prima vai subir, a conta de energia está pela hora da morte. Itabira é mais que um retrato na parede, é o ganha-pão deste um que não teve peito de trocar o ferro das montanhas pelas espumas do mar. Mas saio no lucro, com meus sorvetinhos melados e nada necessários. Pelo menos não viro estátua e nem me roubam os óculos.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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