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sábado, 29 de setembro de 2018

FÁBRICA DE NUDES




Eu não vou te estuprar, dona. Só quero que tire a roupa devagarinho, mas juro por todos os meninos do meu barraco que não vou relar um dedo na sua pessoa, tá me entendendo? Eu sou contra esse negócio de ganhar na porrada, na ameaça, no cano do três oitão, sabe como é?

Então, agora é só ir me obedecendo que em dois minutos tá dispensada. Te devolvo sem um arranhãozinho, sem um descascado no esmalte da unha.

Me dá o celular. Isso, com calma, não precisa tremer, vai abrindo a bolsa. Nenhum movimento brusco, me faça essa gentileza. Não gosto de violência, não quero ser bruto com a senhora, de jeito nenhum.

Sabe, dona, desse momento eu só quero lembrança boa. Os meninos lá no meu barraco estão com uma fome do cão, mas isso não me dá o direito de sair matando pra conseguir um dinheirinho - o pouco que baste pra que a barriga deles ronque um pouco menos. O que eu ganho é pro gasto, não sou ambicioso, longe de mim querer ficar rico fazendo isso. É só pros mantimentos, mesmo.

Outros tempos, dona, tem que ter bons modos na contravenção. O ladrão cidadão, sabe como é? Ser respeitoso com a vítima, que é o nosso ganha-pão. É a minha divisa, meu jeito de lidar com esse mundo aí, carente de valores.

O sutiã também, faz favor. É. Fique envergonhada não, tô acostumado já. E é do jeito que eu falei, só quero uma lembrança da minha estima pela senhora.

Olha, vamos fazer uma coisa, pra te deixar mais à vontade eu fecho a porta do mictório enquanto você tira tudo. Quando estiver pronta, é só me chamar e abrir o trinco, tá combinado? Repito e prometo que não vou te encostar a mão, pode confiar. 

Isso... dá um sorriso sensual agora, faz de conta que está tudo bem. Agora só um instante que eu vou enviar a fotinho descontraída da senhora pro meu e-mail, de recordação... pronto, tudo certo, sem sofrimento pra ninguém, que assim é bem melhor. 

Por favor, aguarde meu contato. A gente vai se falar bastante daqui pra frente. Mas fica tranquila que a senhora não vai mais precisar olhar pra minha cara nunca mais, basta que siga direitinho as minhas instruções.

Muito bem, agora pode vestir a roupa. E o celular aqui, tô devolvendo pra senhora, não vou querer levar. Não acho certo a gente ficar com o que é dos outros. Só boas lembranças, isso sim é o tesouro mais valioso que a gente leva dessa vida. A senhora não acha?





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sábado, 22 de setembro de 2018

BARBA, PRA QUE (NÃO) TE QUERO



O Paulo Coelho sem cavanhaque, o Roberto Carlos de barba, o Sigmund Freud imberbe e com rosto de bumbum de neném. De adorno facultativo, a barba (ou a sua falta) não tem nada: ela compõe a personalidade de maneira marcante. 

Mas dá trabalho. E difícil é saber o que é mais cansativo - manter o rosto liso ou a barba no esquadro e na altura desejada. Felizmente, soluções redentoras estão chegando ao mercado.

Uma delas é um preparado que entope os folículos pilosos, impedindo o crescimento de pelos. O processo é irreversível. Nunca mais o sujeito que fizer essa laqueadura capilar verá nascer uma penugem que seja no seu rosto. Tudo muito prático, rápido e definitivo, poupando preciosos minutos diários aos não-lenhadores.

Já o tônico batizado de "Parejá" no nordeste, e exportado como "StopNow" para 19 países, promete efeito ainda mais revolucionário. Uma vez aparada a barba na altura e com os contornos bem definidos, o camarada besunta a fórmula no rosto como se fosse uma loção. Pronto. O que está ali assim ficará até o final dos tempos, sem branquear nem exigir tosa futura. Foram décadas de pesquisas com caucasianos, afrodescendentes e asiáticos, de barbas espessas e ralas, em tons brancos, grisalhos, castanhos ou amarelados pela velhice. O resultado foi o mesmo - independente de etnia, dieta alimentar, dosagem hormonal ou herança genética. Comprovadamente, a barba ficava para sempre ao gosto do freguês. 

Como não poderia deixar de ser, os dois tônicos milagrosos foram comprados e patenteados por poderoso grupo multinacional. O fato inusitado, nessa história toda, é que parte dos acionistas da empresa estuda com carinho a possibilidade de retirar do mercado as duas minas de ouro. Isso porque há uma proposta trilionária, oferecida pela Gillete, que literalmente irá cortar pela raíz o sucesso crescente dos produtos, dando sumiço nas duas fórmulas. 



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Este texto é obra de ficção.

Imagem: fontedasaude.org


domingo, 16 de setembro de 2018

MELHOR E ETERNO AMIGO



O primeiro cachorro a gente nunca esquece, ainda que o quadrúpede já tenha virado adubo há muito tempo. Tudo bem que existe uma natural transferência da estimação que se tinha ao bichinho para o outro que invariavelmente chega a fim de ocupar seu lugar. Mas o primeiro tende a ser mais especial que os demais, não há como negar isso.

O que pouca gente se dá conta é possibilidade de mantê-lo indefinidamente, mesmo que não seja a rigor o mesmo bicho.

A primeira alternativa é o processo natural, ou seja, a cruza do cãozinho que se deseja perpétuo com alguma fêmea da mesma raça ou muito parecida com o macho. As chances de reprodução e de geração de inúmeras ninhadas dependerá somente das oportunidades de acasalamento. Tendo em vista que cada ninhada produz em geral de quatro a sete filhotinhos, numericamente os descendentes se acumularão em progressão geométrica. Talvez ninguém nunca tenha pensado nisso, mas é perfeitamente possível que dezenas de gerações de uma família tenham como cães de guarda ou companhia dezenas de gerações que descendam do mesmo cachorro. O que daria margem a uma frondosa árvore genalógica canina, tão ramificada quanto a humana.

O congelamento do sêmen também é possibilidade a ser considerada. Um filhote (ou toda uma ninhada) do pet poderá ser gerado no mês que vem ou no século 26, sem maiores problemas. O número de filhotes resultantes da técnica é ilimitada, já que os espermatozoides são armazenados aos milhões. E não têm prazo de validade, se conservados em condições ideais.

A alternativa mais cara e tecnicamente mais complexa é a clonagem. A atriz e cantora Barbra Streisand, por exemplo, fez logo dois clones da sua cadela Samantha, morta no ano passado. Claro que 100 mil dólares, que é o custo do procedimento, não é para humanos vira-latas. Nele, células-tronco do pet são armazenadas quando do seu nascimento ou a qualquer momento de sua vida. Constatada a morte iminente, ou opcionalmente muito antes dela, o clone é gerado e o original conviverá com sua cópia até o desenlace - facilitando a transição para os donos e, porque não dizer, para si mesmo, ao constatar que está indo embora e ficando a um só tempo. O difícil é determinar na pele de quem estará sua consciência, se na matriz ou no dublê... Aí está uma pergunta definitivamente sem resposta.





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domingo, 9 de setembro de 2018

PENÚLTIMA MORADA



- Maluca essa história da morte do coveiro, heim?
- Nossa, nem fala. Sem querer o cara cavou a própria cova. Só de pensar eu fico arrepiado. O buraco já tinha mais de dois metros e meio quando ele teve o piripaque. Parece que foi infarto. Caiu lá embaixo, fraturou o crânio e por ali talvez acabasse ficando, se não sucedesse o imbroglio que veio depois.
- Eu fiquei sabendo meio por alto, não sei de detalhes, não.
- E olha que ele tinha onde cair morto, meu camarada. Aliás, melhor lugar impossível para se cair morto. Uma sepultura perpétua numa quadra nobre do Cemitério da Consolação. Bem no filé mignon, onde só tem celebridade e aquelas dinastias quatrocentonas lá da capital.
- Herança de família?
- Sei lá... eu pensei nisso mas descartei a possibilidade. Se fosse, o cara seria herdeiro de outras coisas, não só o terreno no cemitério famoso. E sendo rico não seria coveiro, muito menos aqui nesse fim de mundo. 
- Lá isso é.
- Quando a fatalidade aconteceu, o defunto da vez estava na boca da cova, esperando pra descer. A família ficou horrorizada com o infortúnio do coveiro já que, ainda que indiretamente, foi por abrir o buraco do ente querido - no bom sentido - que o coitado acabou morrendo.
- É, situação embaraçosa. Mas não deu pra segurar o homem caindo, não teve uma "bambeada" antes de capotar?
- Nada. O cabra deu um grito, levou a mão ao peito e tombou rapidinho. Vai daí que a família confabulou ali mesmo e decidiu enterrar o parente em outro lugar, oferecendo generosamente o túmulo ao coveiro.
- Atitude digna.
- Sim, mas aí descobriram o terreno milionário que ele tinha na Consolação, e acharam que o morto, evidentemente, iria querer ser enterrado lá.
- Óbvio. Imagino que aí tiraram o coveiro da cova e fizeram o traslado para São Paulo...
- Seria o mais lógico a fazer, se houvesse por essas bandas coveiro sobressalente.
- Ave Maria... só tem um na cidade?
- Se médico só tem o Doutor Fernandes, como é que coveiro ia ter dois? Resultado: dois presuntos na fila e ninguém pra enterrar.
- Calamidade mórbida, meu amigo.
- Então... aí tiveram a ideia de encomendar um carro fúnebre vindo de São Paulo. Para remover o coveiro da cova, sepultar o outro defunto no lugar e trasladar o corpo do coveiro para enterrar no Cemitério da Consolação - no túmulo que é dele por direito. 
- Boa! Aí resolvia tudo.
- Mas não demorou e apareceram uns parentes pobres do coveiro, que moram aqui na região. Ficaram sabendo do terreno nobre no campo santo paulistano e resolveram tomar partido e lucrar com a situação. 
- Já estou até adivinhando: chegaram na família do morto oferecendo a sepultura de São Paulo.
- Matou a charada. E pediram um preço absurdo. Fizeram chantagem emocional, dizendo que ficar com a sepultura era o mínimo que a família teria que fazer para se penitenciar da morte do coveiro, que bateu as botas por causa do parente deles. Bom, eu só sei que já são mais de três dias de negociação, debaixo de um sol senegalês. E sem previsão de acordo, por enquanto.
- Nenhuma luz até agora?
- Alguém sugeriu que o padre faça um "cara ou coroa", para decidir celestialmente a parada. O padre concordou, contanto que tivesse a autorização do bispo - que foi operado e está nas últimas, segundo o mais recente boletim médico. 






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Imagem: www.aki.pt/ferramentas/ferramentas


sábado, 1 de setembro de 2018

O ÚLTIMO A SAIR APAGUE A LUZ




Tudo bem, só que o interruptor não funciona e é preciso entrar com um protocolo na concessionária de energia para solicitar uma averiguação, ainda a ser agendada, a fim de determinar a real causa do problema. 

Há apenas três (e não quatro) parafusos fixando o espelho do interruptor na parede - um forte indício para que se cogite crime de apropriação indébita. Suspeitas recaem ainda sobre um certo ex-presidente, que teria se apoderado do referido parafuso semanas antes de deixar o Palácio, escondendo-o em um sítio no interior de São Paulo.

A esquerda argumenta que apagar a luz é ato arbitrário, de natureza unilateral, não condizente com a moderna democracia que o país vem se esforçando por consolidar nos últimos anos. 

A direita rebate de forma veemente a insinuação, afirmando que o problema de mau contato apresentado pelo aparelho se deve à polarização provocada pelas alas mais radicais dos socialistas, fazendo com que o polo positivo e o negativo entrem em curto, causando um apagão ao mesmo tempo energético e ideológico. 

Já o Centro aponta para uma solução conciliadora do tipo “dimmer deslizante”, para que a transição entre a escuridão e a iluminação a plena carga se dê de forma suave e gradativa, sem traumas para a coletividade e preservando nossos mais caros e autênticos valores institucionais. 

Há, entretanto, uma forte corrente apartidária que sustenta não ser possível apagar algo que há muito não está mais aceso, já que o país demonstra crescente inadimplência não só no que diz respeito às suas demandas energéticas, mas também nas contas públicas de gás, água e telefone. 

A verdade é que um apagar geral de luzes produzirá uma nação vulnerável em suas fronteiras e em sua soberania. Nisso concordam todos os analistas políticos e econômicos. A literal penumbra resultante dará ensejo para que milhões de cidadãos cubanos e venezuelanos abandonem seus paraísos de origem, pensando que ao agirem assim estarão retribuindo o bem que nosso "pai dos pobres" fez a Chavez e a Fidel em outros e nebulosos tempos. 

Note-se ainda que uma ONG, de notória tendência esquerdista, já tem engatilhado um instrumento jurídico contestando semanticamente a frase "O último a sair apague a luz". Argumentam os referidos trotskistas de que o termo "último" é segregacionista e discriminatório, por incumbir a uma única pessoa - no caso, a última a abandonar o recinto - uma tarefa que seria de todos. 



Imagem: NASA
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