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sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

AFFAIR VIRTUOSO




Cada um na sua webcam. No começo, uma gracinha aqui e outra ali. Não demorou muito, amantes remotos. 



- Bota o cachecol... bota o cachecol que eu enlouqueço logo de uma vez!

- Só se você colocar antes um gorro de lã. Mas tem que ser tipo capuz de bandido, daqueles que só ficam os olhos descobertos. 

- Tá, mas depois você promete que veste um casaco? Sobretudo é meu fetiche, sabia? Já te falei isso? Então. Quero três casacões bem grossos e felpudos, um em cima do outro, até você ficar curvado de tanto peso, sem poder mexer os braços e sem nenhum poro do corpo descoberto! Ui, só de pensar eu fico doidinha, doidinha. Megaexcitante!!!

- Mas como você é safada, heim?

- Então, aí você faz uma dança sensual em frente à câmera e aos poucos, bem devagarinho, vai abotoando os casacos no ritmo da música, até ficar tudo bem fechadinho até o pescoço.

- Ai, mas e se alguém resolve entrar aqui no quarto e me pega assim, vestidão - do jeito que não vim ao mundo? O que que eu vou dizer? Imagina a situação, vestido dos pés à cabeça!

- Isso é problema seu, quem mandou me provocar? Reconheça: você também está gostando...

- Sabe, um negócio que me tira do sério é marquinha de biquíni... Você bem que podia arrumar uma mala cheia deles, e ir mostrando, com essa sua carinha de sem vergonha, as etiquetas com as marcas de todos os biquínis que existem no mercado. Uau! Isso ia ser demais. Podemos fazer isso amanhã, né? Por enquanto manda uma selfie pra mim, todinha vestida. Por favor, só uma, vai...

- Esse negócio de tirar foto vestida e enviar pela net é um perigo. Aliás, dois perigos. Um hacker pode entrar nos arquivos do meu computador, achar as fotos comprometedoras e publicar. E você também, caso a gente brigue e pare com essa brincadeira, pode se vingar jogando as fotos na web.

- Então faz o seguinte, tira a foto do pescoço pra baixo, sem enquadrar o rosto... aí não vai ter jeito de alguém reconhecer você como dona do corpo cheinho de roupas. Concorda?

- Não sei, não. Vou pensar. Mesmo não mostrando o rosto, acho muito perigoso. Ainda se fosse um nudezinho inocente, mas de roupa... se algum conhecido vê, com que cara eu vou sair na rua?

- Tudo bem, então vamos parar por aqui.

- Mas logo agora que está ficando bom? Investi o que tinha e o que não tinha nessa relação, entrei em tudo que é crediário de loja, pedi dinheiro emprestado...

- Bom, então resolve o que você quer fazer. Mas uma coisa é certa: nua assim ninguém vai reparar em você. Nem na rua, nem na internet, nem em lugar nenhum. 

- Tô indo. Preciso de um tempo pra refletir sobre nosso caso. 

- Tá, mas e a burca? Você prometeu. 




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sexta-feira, 19 de janeiro de 2018

O DIA EM QUE O RUBÃO EXPLODIU




Eram onze e meia da manhã quando o Rubão foi pelos ares.
O chefe o chamou em sua sala e começou a esculhambação. Metas, metas e mais metas não atingidas. Relatórios, gráficos de vendas, queda nos lucros. Cobrança de resultados, avanço dos concorrentes, vermelho inevitável no balanço do fim do mês.

- Então, seu Rubens, como é que fica?

O Rubão, do alto de um metro e noventa e quatro revestidos por largo invólucro adiposo, ia escutando calado, os braços cruzados e os olhos no chão. Foi quando começou a inchar. Os globos oculares querendo saltar do rosto. As mãos tremendo incontrolavelmente, os lábios arroxeando e dobrando de tamanho. No início ainda teve a consciência de afrouxar o nó da gravata e desapertar o cinto. Depois foi perdendo os sentidos e entregando-se resignado ao estouro iminente. O coração pulsava na altura do pescoço, veias e artérias iam rebentando como pipocas no microondas.

O chefe, agora acuado diante do quadro calamitoso, tentava uma remissão.
- Calma, Rubão, calma, esquece o que eu disse. Mês que vem a gente recupera essa situação, agora volta ao normal...

Três segundos depois, Rubão era carne moída. Explodira silenciosamente, low-profile, bem ao seu estilo. Talvez a banha abundante tivesse abafado o estrondo. O fato é que não havia centímetro de mármore, vidro temperado e madeira nobre da sala do diretor que não estivesse coberto com as vísceras do dedicado supervisor de vendas. Embora quase inaudível, a força daquele big-bang humano foi avassaladora. Alguns ossos encravaram-se, como que fossilizados, nas paredes do escritório, formando um curioso mosaico.

O diretor, tirando um fiapo de pâncreas preso aos seus óculos junto com o “R.J.T.” da camisa do Rubão (chamava-se Rubens José Tavares), tinha que pensar rápido. A situação era insólita, poderia ser acusado de assassinato.

Interfonou para a secretária e pediu que providenciasse um cão faminto, em pele e osso, imediatamente. Antes de tudo, limpar a área.

Refestelado do presunto e sua gordura, o cão começou a agonizar. O diretor decidiu levá-lo a um veterinário para uma injeção letal. Sacrificado o bicho, não haveria indício do ocorrido.

Não foi preciso. O cachorro chegou morto ao consultório. Sem a permissão do diretor, o doutor foi logo abrindo sua barrigada.

Após autopsiar o bicho, o veterinário foi categórico:
- Macacos me mordam, isso é carne de Rubão!
- Como assim? , disfarçou o diretor.
- Como assim digo eu, quem tem que se explicar é o senhor. Conheço carne de Rubão a léguas de distância. Além do mais...
Não chegou a concluir o raciocínio. Três tiros nos miolos o calaram para sempre. Sabia de tudo, era preciso eliminá-lo, pensou o diretor ao sacar a arma e mandar pro inferno o segundo num dia só.

Fugiu em disparada com o Rubão moído num saco de lixo, e se deu conta de que as placas dos carros todos tinham prefixo RJT. Pelas ruas em que passava via a Borracharia do Rubão, rubancas de jornal, a agência do Rubanco do Brasil, outdoors de Vick Vaporubão, concessionárias Mercedes-Rubenz.

Corria. E quanto mais corria, mais o espectro do Rubão ganhava fôlego para alcançá-lo. Ele com o pacote de carne já marrom, sem ter como livrar-se do finado a decompor. Entrou num beco, olhou para o céu e viu uma nuvem com o perfil exato do defunto. Exausto, cambaleou até chocar-se com a vitrine de uma loja de perfumes. O alarme soou: ru-bão, ru-bão, ru-bão, ru-bão...

Antes que a polícia viesse, chegou sua vez de explodir. Ruidosamente, gloriosamente, solenemente, como convinha a um executivo do seu porte.
No dia seguinte, os jornais noticiaram terem sido finalmente encontrados os restos mortais de Rubão, junto aos destroços de um desconhecido, enterrado como indigente.




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sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

CACHORRO ENGARRAFADO




"O uísque é o melhor amigo do homem. É o cachorro engarrafado"
Vinícius de Moraes

Ele chegou filhotinho, uma coisinha de nada, só 200ml de suave fofura e inocência. No rótulo se lia "12 years old", mas, para um exemplar daquele pedigree, doze anos era só o começo de uma longa e proveitosa vida. 

E como foi saboreada a vida que me deu, enquanto durou. Não exigia nada em troca e não dava trabalho nenhum. Não pegava pulga, nem carrapato, banho não carecia, nem latir ele latia. Manso como só ele, deixava-se ficar ali na estante, entre livros e porta-retratos. 

A intimidade e o zelo foram se achegando aos poucos, em goles discretos. Sabia o momento do seu reinado a cada fim de tarde, à hora certa e boa. Era quando trocávamos colos. Eu lhe dava o meu e ele me dava o dele. Sem gelo, reconfortante e amigo. Cicatrizante de mágoas e refazedor de ânimos, punha-me a alma pulando doida feito um cãozinho dançante de circo. Em sua irracionalidade, parecia conhecer a magia do seu caramelo com gosto e cheiro de envelhecido, levando como recompensa de sua travessura um biscrock ou coisa assim. 

E quantas vezes eu ali quieto, no divã da sala, livro ou jornal nas mãos, e lá vinha ele com aquela cara de pidoncho, abanando o rabinho. Me ganhando com seu blend de cocker spaniel, poodle e yorkshire, um malte (ou seria maltês?) de aroma inconfundível e traços amadeirados de marcante personalidade, que só o repouso sem pressa em carvalhos escolhidos pode trazer.

Nessa toada, o tempo voou e ele espichou. De garrafa de bolso para 500ml, daí para 750 até chegar a um litro. Ou seja, se eu o entornava aos poucos, o seu crescer forte e saudável recuperava o consumido. Na cruza, rendeu oito filhotinhos. Todos com a sua cara e com os mesmos 200ml, o tamanho que tinha quando entrou em casa pela primeira vez. 


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Imagem: extra.com.br

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

NATAL CELULAR




"Bando de DNA amarga mais um Natal na cadeia", estampava a manchete dos principais jornais no dia 25 de dezembro. 
O menor, de alta periculosidade e conhecido no submundo do tráfico pelas iniciais DNA, comemorou as festas com uma palavra de ânimo aos seus comparsas: "Não é porque o DNA está na cadeia que o nosso Natal vai ser triste. Vamos lá, sorriam, sorriam, mesmo que seja atrás das grades. Pensem em visita íntima, broa de fubá com serrinha dentro, golpe do sequestro falso, crédito de celular aos montes. Pensem alguma coisa assim, bem bacana, e abram aquela risada gostosa para a nossa foto natalina anual".

Prosseguiu o famoso meliante, depois de umas três ou quatro taças de espumante de discutível qualidade:

"Mas espera aí, está todo mundo muito alinhadinho, assim fica falso e sem graça. Talvez umas serpentinas em cima e outras embaixo, envolvendo o pessoal, uma coisa mais festiva! Quero os grupos bem animados, como se fossem uns blocos de carnaval. Aliás, o carnaval tá chegando, daqui a pouco começa aquela sem-vergonhice nas ruas e não vai dar outra: exame de DNA pra tudo quanto é lado para reconhecimento de paternidade".

As festividades para o passa-fora de 2017 e a entrada de 2018 continuaram com os cromossomos:

" - Já que estamos os 46 reunidos, acho que vale uma foto para a posteridade.
- Mas a gente tá sempre junto...
- Eu sei, mas nunca ninguém lembra de tirar retrato. E hoje é uma ocasião especial. Porém já vou avisando que quem vier com o maldito trocadilho "Cromossomos felizes" vai ter a cabeça cortada na fotografia. E vou compartilhar a guilhotinada no Instagram.
Então vamos pro clique, vai. Digam X, digam X... ué, por que só a metade do povo tá sorrindo? Não entendi...

Em nível atômico, a animação não era menor:

Caramba, o elétron não para quieto, assim a imagem vai sair tremida. Gente, vamos colaborar! Deem só uma olhada no nêutron, que belezinha... Fica na dele, quietinho lá no núcleo, não se envolve em confusão e tá sempre bem na foto. 

A farra celular prosseguia, em sistema operacional Android e IOS:

" - Atenção células, vamos deixar um registro pra posteridade. O citoplasma, o núcleo e a membrana podem ficar ajoelhados em primeiro plano, aqui na frente. Na fila de trás ficam a mitocôndria e a organela, ok?"

E se completava em um hemograma completo:


"- No fundo, no fundo, o ser humano gosta é de ver sangue. Mesmo que seja em um mero exame de laboratório. E temos que fazer bonito! SUS, convênio, particular, o empenho tem que ser o mesmo, ok? Não vamos desapontar nosso organismo, pelo amor do Criador. Plasma, hemácia, leucócito, plaqueta... todos aí, né?
Sangue azul a esta altura já deve estar sendo perseguido pelos paparazzi, loucos por uma foto indiscreta pra revista Caras. Mas não é esse o caso da gente. Sangue vermelho como o nosso é o que mais tem por aí, e precisamos dar um jeito de nos diferenciar e agradar quem nos hospeda. Com essas campanhas de doação, se ele resolve dar uma de escoteiro vamos parar na geladeira do hemocentro. Temos que nos segurar por aqui, nem que seja pra esconder o ferro das lentes do microscópio e simular uma anemia". 

No reino vegetal, cliques, flashes e selfies culminaram em um instantâneo histórico, digno de moldura e lugar de destaque em qualquer parede:

- Gente, vamos fazer uma fotossíntese. Fiquem todos em clorofila aqui em frente à câmera, não quero deixar ninguém de fora. Atenção, sorrindo...




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