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sábado, 26 de setembro de 2015

A HORA E A VEZ DO SAL GROSSO


Imagem: shopgrillchurrasqueiras.com.br

"Enquanto eles choram, eu vendo lenços", disse uma vez o ilustre Nizan Guanaes, com sua obstinada verve empreendedora e seu otimismo desmedido. E no meio dessa choradeira toda de milhões de brasileiros, que culpam a crise, o governo, o patrão filho da mãe e sei lá mais o quê pela catástrofe em que estamos metidos, o lenço que eu vendo é o desacreditado sal grosso. Isso mesmo: sal grosso, aquele de botar atrás da porta para espantar visita ruim. 

Não fosse eu o cabeça-dura que sempre fui, acho que nem teria começado com essa história. Quanta gente tentou, de todo jeito, me alertar de que o negócio não iria pra frente. Principalmente a família e os amigos mais próximos. "Imagina, sal grosso? Ainda se fosse batata, milho, açúcar, café ou outra commodity mercadologicamente mais nobre e de consumo obrigatório..."

Pois fui em frente e não me arrependi. Joguei um pouquinho do meu produto nas costas (até quem vende sal grosso precisa de proteção), me benzi com o sinal da cruz e coloquei meu destino nas mãos de Jorge, o santo guerreiro, e seu alazão lunático. Para me sentir mais garantido, assegurei com mamãe uma provisão diária de cinco rosários pedindo a intercessão da Virgem para o bom andamento da empreitada.

Quanto mais eu pesquisava sobre o meu ganha-pão, mais eu ia vendo que lidava com algo mágico. Mágico e de efeito científico comprovado. O sal, especialmente o sal grosso, é capaz de neutralizar campos eletromagnéticos negativos. Entrando pelas searas do misticismo e da religião, os poderes e as aplicações se multiplicam num sem número de mandingas, simpatias e rituais que limpam corpo e alma, recarregam as energias e afastam inveja e mau-olhado. Resumindo: tinha na mão um coringa, aplicável perfeitamente a todo tipo de circunstância, sorte ingrata ou descaminho a que o indivíduo fosse levado, por seus próprios erros ou maus fluídos dos outros.

Tempos e ambientes de desesperança, desemprego, lamentação e angústia são, para esse humilde filho de Deus, a terra prometida. Encontrado nas boas casas do norte, mercadinhos de bairro e até em lojas de ração e formicida, o sal grosso "Redentor" (marca registrada) extermina qualquer quebrante e coisa feita. E para manter bem forte o poder de ação, está lá na embalagem que é preciso trocá-lo de dois em dois dias, já que os cristais se neutralizam em pouco tempo porque puxam a negatividade do sujeito. Ou, como eu digo sempre, o sal fica cansado. Se não ficar repondo frequentemente, não tenho como garantir o efeito esperado. Temeroso, meu cliente deixa faltar o arroz e o feijão mas tem a despensa sempre muito bem abastecida com quatro ou cinco sacos do "Redentor". 

Se ganho na crise, saio ganhando mais ainda na prosperidade. Em qualquer cidade desse país, o primeiro e infalível sinal de que a recessão econômica está dando uma trégua é o aumento da venda  de picanha maturada nos açougues. O brasileiro nasceu para queimar uma carne no fim de semana. E não preciso nem falar qual é o único tempero que se usa para fazer um churrasco que se preze, como manda a tradição gaúcha, certo?


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sábado, 19 de setembro de 2015

XADREZ PARA O REI, HOSPÍCIO PARA A RAINHA



Imagem: http://www.pdpics.com


Teleguiada, a rainha não pensa. O sapiens que a concebeu e a colocou onde está não foi sapiens o bastante. Tem poderes de rainha e age como boba da corte. Por seu raciocínio notavelmente desarticulado, seus asseclas deveriam  orientá-la a calar-se, abdicar ao trono ou acatar um tutor.

 Alguns, mais próximos, até tentam sugerir-lhe uma postura, ainda que falsa, de humildade. Mas a déspota ignora conselhos, recusa-se ao diálogo, rebela-se, escuda-se em arrogância e movimenta-se doentiamente pelo tabuleiro, em jogadas desconexas e proibidas pelas regras, legitimando-as à custa de patacas distribuídas aos ocupantes das duas torres. A torre da direita e a torre da esquerda. Assim a rainha empurra, com a recém-diminuta barriga, a interdição que lhe caberia em qualquer reino do mundo, menos no teatro de comédias onde a partida tem lugar.

Como em toda peleja oficial, nessa também há juízes. Alguns incorruptos e outros de juízo comprado, nomeados pelo rei para livrá-lo do mate. Em sua imparcialidade de fachada, fazem que não veem os cavalos andando em círculos, os bispos sorrateiramente abduzidos do exército adversário, as rasteiras que aleijam toda a trincheira de peões. Seguem aplacando sua consciência intranquila e sua justiça injustificável alegando outras tantas e presumíveis fraudes do antigo dono do tabuleiro. Saem batendo seus martelos viciados no argumento de que, se nas partidas anteriores se roubava impunemente, é justo que agora também se faça vista grossa. Questão de equanimidade.

Tudo isso entre uma e outra colherada de caviar, superfaturado como o rechaud em que é servido. O rei, momentaneamente acuado e clamando ajuda de exércitos fronteiriços, promete lances triunfais e redentores, um revide messiânico que trará aos desvalidos a terra prometida. Mas até os peões já entenderam que o discurso é um emaranhado de tolices, potencializadas pelo efeito da bebida. E o que o rei de araque, muito em breve, há de prender-se em seu próprio jogo.



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sábado, 12 de setembro de 2015

NASCIDO PARA TESTAR

Imagem: ribermedica.com.br

Não vou negar para vocês: eles pagam bem. Mas nem sempre foi assim. Quando começou essa história de testadores de produtos, a gente simplesmente recebia em casa uma amostra grátis do bagulho, experimentava e dava o parecer. Ficava uma coisa pela outra, o lançamento grátis em troca da avaliação. Depois fomos nos organizando, criamos nossa associação de classe e passamos a cobrar pelo serviço. Só que aí, além de guloseimas, absorventes higiênicos e lâminas de barbear, começaram a mandar coisas como banheirinhas para bebês gêmeos, rojões sem cheiro de pólvora, degoladores de galinha, aparadores de cílios, limpadores de nariz e outras esquisitices.

CAVIAR RUSSO NÃO VEM. O QUE VEM SÃO MULETAS DE FABRICANTES DE ARTIGOS ORTOPÉDICOS.
A primeira ilusão de quem entra para esse mundo nada maravilhoso é pensar que não vai ter que gastar mais nada no supermercado, tamanha a variedade de produtos que irá receber para degustação. Entretanto, as novidades realmente gostosas chegam para teste em quantidades mínimas. Outro dia mesmo recebi o maravilhoso chocolate Bis com sabor de cerejas ao licor, fechadinho em uma sovina embalagem individual. Ou seja, você recebe o Bis, mas sem chance de bisá-lo.

A parte mais chata é o relatório da sua experiência com a coisa. Não adianta querer tapear o fabricante para não ter muito trabalho, dizendo que tudo é ótimo. Eles vão perceber a falta de critério e o braço curto na avaliação. Na recente experiência que tive com um par de muletas, por exemplo, me pediram, além do relatório escrito, o envio de fotos dos dois sovacos após dez e após trinta minutos de uso intensivo, a uma velocidade média de 2 km por hora e alternando o pé de apoio. Em seguida tive que testar um outro protótipo ainda em desenvolvimento inicial, com um sofisticado sistema de amortecedores dispostos entre a muleta propriamente dita e as axilas.

CHOCOLATE COM 90% DE CACAU NÃO VEM. O QUE VEM É ARROZ DOCE PARBOLIZADO PARA MICROONDAS.
Nem em um campo de concentração teriam a coragem de servir uma gosma tão sem graça. Depois de entornar a geleca numa tigela, despeja-se o pozinho com sabor artificial de canela e açúcar, que vem dentro de um sachê parecido com aqueles de tempero de miojo. Liga-se o microondas na potência máxima e depois de três minutos está pronta a iguaria. A foto da embalagem, com aquela cara irresistível de sobremesa de vó, contrasta fortemente com a triste realidade de comida de astronauta com validade vencida. 

SPORT UTILITY 4X4 NÃO VEM. O QUE VEM É VASSOURA COM CERDAS DE TUNGSTÊNIO.
A promessa da vassoura era varrer com eficácia jamais vista, obviamente pela dureza do tungstênio. No test-drive o produto mostrou-se realmente notável, tanto na eliminação da sujeira quanto na eliminação do próprio piso - a vassoura literalmente lixava o meu porcelanato. O justo no caso seria me enviarem alguns metros de piso cerâmico para testar junto com a vassoura, a fim de que o meu prejuízo fosse menor. Fica a dica para a próxima vez.

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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

DEVORADORES DE ORELHA



Somos os devoradores de orelha, e viemos livrá-lo do mais avassalador infortúnio do mundo pós-moderno: a falta de tempo. No caso, falta de tempo para ficar up-to-date com o universo literário daqui e d'além mar. Nem que seja aquele leve e basiquinho verniz cultural.

Os lançamentos editoriais são tantos que, ainda que fosse feita a leitura só das orelhas, o tempo dispendido seria enorme. Como conhecimento é o ouro do século 21, surgiu dessa necessidade a ideia do nosso negócio.

Nossos leitores de orelha, hoje totalizando 314 profissionais intensivamente treinados, alternam-se em turnos estafantes de 12 ou mais horas e têm de recorrer a técnicas de leitura dinâmica para darem conta de suas cotas diárias de resumos. Lidas, cada orelha gera uma mini-sinopse que é enviada ao cliente via eletrônica, com o básico que ele precisa saber para não passar vexame numa conversa. Claro que o assinante do serviço determina as áreas de interesse sobre as quais necessita manter-se atualizado.

Suponha uma saia justa numa festa, onde perguntam a você o que achou de determinado livro. Basta simular que o celular está chamando, você se afasta um pouco, consulta o resumo de orelha correspondente e volta dominando o assunto. Em linhas bem gerais, mas o suficiente para não chutar a bola para fora do estádio. 

O serviço é eclético nos gêneros e inclui também os resumos de orelha daquelas obras fundamentais, que dão estofo à cultura geral do indivíduo. Grandes clássicos, como "Em busca do tempo perdido", "A montanha mágica", "Dom Quixote" e "Crime e Castigo" estão disponíveis para pronta entrega. Não só na forma de e-resumos, mas de falso livro também. Em volumes novíssimos, de capa dura, ou artificialmente manuseados por processo industrial de envelhecimento. O recheio é em isopor, proporcionando leveza e facilidade na remoção quando for a hora de tirar o pó da estante. 

Oferecemos também uma sensacional novidade, vinda há poucas semanas da Europa: o isopor com capa refil. O cliente adquire a princípio apenas os isopores e vai trocando periodicamente as capas com novidades e best-sellers da indústria editorial, simulando uma pretensa atualização com o que de melhor vem chegando às livrarias. É sua decisiva oportunidade de postar no Instagram e em outras redes sociais fotos suas em frente à biblioteca-cenário, legando à sua extensa rede de amigos a imagem de um erudito com sólida formação literária e artística. 

Como em todo negócio inédito e de sucesso, não demorou muito para que começasse a surgir concorrência desleal. Alertamos a todos que o referido concorrente, o qual por razões éticas não iremos citar o nome, deixou recentemente um ex-Presidente da República em situação diplomática vexatória numa cerimônia de entrega de título de Doutor Honoris Causa. Assinante do serviço, o popular ex-ocupante do Alvorada precisou recorrer à mini-sinopse de uma obra de Santo Agostinho e deparou-se com a orelha de "50 tons de cinza". Uma falha imperdoável, que atribuímos à incompetência dos leitores de orelha desse relapso colega de mercado.


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