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sábado, 31 de outubro de 2009

PEQUENO ALBERT

Sempre que acordado pelo barulho dos marrecos, o pequeno Albert passava o resto do dia de mau humor. Não era incomum que nessas ocasiões, só de pirraça, misturasse deliberadamente moela com chantilly no café da manhã e usasse seu suéter furado. Furado, aliás, por uma bicada de marreco, numa véspera de Natal em que um deles também acordou de ovo virado.

Nada pode garantir de maneira categórica que o interesse do pirralho pelos buracos negros datasse dessa época do furo na blusa, mas há fortes evidências que reforçam a tese. Foi também à mesa de refeições que, certa feita, gotículas de leite quente espirradas do bule despertaram no futuro grande físico a obsessão pela via láctea e seus mistérios, segundo depoimentos de vizinhos de cerca. Daí foi um passo para a formulação das primeiras teorias e equações. A modorrenta rotina da fazenda e a falta propriamente do que fazer turbinavam a imaginação do menino, que punha-se a disparar enunciados bucólico-científicos aos quais ninguém então dava crédito, exceto os sargaços, alguns esquilos e Copérnico, seu poodle de estimação.

É nesse limbo pouco estudado, quer seja, o tempo do Albert imberbe, que a história deveria se debruçar com acuidade investigativa e faro de paleontólogo. Se o fato de pouco sabermos da vida de Cristo enquanto criança pouco prejuízo trouxe à disseminação do Cristianismo enquanto doutrina, o mesmo não se pode dizer em relação à infância do nosso herói e suas consequências sobre a maior de suas descobertas: a Teoria Geral da Relatividade.

Explico e dou exemplo. É sabido que Albert foi taxado como débil mental por um professor. Como revide ao mestre, o mirim impôs-se o propósito de sobrepujar os achados de Newton no campo da Física. Assim, aos 12 anos, deitou-se debaixo de uma árvore aguardando inspiração idêntica à que fez o sagaz Isaac descobrir a lei da gravidade. A lerdeza de raciocínio atribuída ao menino explica o fato de não ter se dado conta de que a árvore sob a qual se deitara era uma jaqueira. Para não contrariar outra lei, a de Murphy, é claro que uma das jacas o atingiu em cheio. A queda do fruto fez abrir, literal e figurativamente falando, a cabeça do garoto, que ficou com o hipotálamo e o cerebelo em posição invertida à normalmente encontrada nos comuns dos mortais. Além disso, é de conhecimento público que seu cérebro, dissecado e estudado após o óbito, fez os cientistas concluírem que este era maior e mais denso que a média. De onde se deduz que a suposta anatomia privilegiada devia-se ao inchaço causado pelo impacto da jaca sobre a caixa encefálica, constatação infame demais para constar com dignidade num relatório científico – o que justifica a omissão do ocorrido até a presente data.

Mais grave ainda é a também desconhecida demanda jurídica daí originada, movida por um japonês de sobrenome Kobaiashi, o antigo proprietário da fazenda onde os Einstein residiam. Entendia o produtor hortifrutigranjeiro que, se não houvesse plantado a jaqueira quando administrador da propriedade, o desenvolvimento fenomenal do garoto não ocorreria, e consequentemente a Teoria Geral da Relatividade não teria sido formulada. Assim, seus herdeiros pleiteiam até hoje uma revisão histórica onde se atribua a co-autoria da TGR ao antepassado nipônico, passando doravante a denominar-se “Teoria de Einstein / Kobaiashi”. O processo encontra-se tramitando atualmente no Fórum da Comarca de Cotia.

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sexta-feira, 23 de outubro de 2009

DELETADOR DE SAUDADE - MANUAL DO USUÁRIO


No Menu Principal do programa, escolha “Definir Saudoso”. Aparecerão na tela os modos: amigo(a), namorado(a), noivo(a), cônjuge, pai, mãe, filho(a), amante, caso, rolo e ficante. Escolha e dê Ok.

Em seguida, maximize o box “Características Físicas”. Preencha os campos Idade, Altura, Peso, Cor de pele e de cabelo, Estilo de roupa, Classe Social, Escolaridade, Convicções Ideológicas e nº do Pis/Pasep.

Vá até a janela “Sinais particulares”. Se houver algum, marque e indique a parte do corpo onde se situa: Cicatriz, Pinta, Tatuagem, Piercing, Botox e Silicone.

Escreva no editor de textos frases que a pessoa falaria com mais freqüência para você. Para que as falas tenham sotaques e inflexões personalizadas, vá até Opções, selecione Definir Modulação de Voz, escolha a mais conveniente e clique
em Aplicar. De quinze em quinze minutos as frases soarão no alto-falante do computador, em ordem aleatória ou mediante programação específica. Exemplo: mãe falando “Tá na mesa!!!” ao meio-dia e às sete da noite.

Inserir final de frase. Recurso interessante, não disponível na versão 6.2 do programa. Você pode escolher entre: “Né?”, “Entendeu?” “Certo?” “Ok?”.

Ainda no editor de textos, liste uma agenda básica com os compromissos do seu dia-a-dia. Esses dados serão automaticamente transferidos aos nossos servidores. Para que fique realmente próximo em todos os seus momentos, o ente distante saltará na tela como uma janela pop-up, lembrando cada um dos afazeres programados.

A área de trabalho do computador – ícones, papel de parede e descanso de tela, também pode ficar com a cara do sumido. Além disso, o programa permite a instalação de “Oi” e “Tchau” da pessoa, quando da inicialização e do fechamento do sistema operacional.

Nosso programa enviará a você e-mails em nome do saudoso. Para que não falte assunto, é preciso preencher o menu “Áreas de Interesse”. Selecione as mais adequadas. Você pode responder aos e-mails. Só não conte com a resposta da resposta, porque aí também já é demais.

O Menu Privé é acessado mediante senha, e deve ser utilizado por usuários que mantenham ou mantinham relações carnais com o ausente. As opções vão desde “Não, hoje estou com dor de cabeça” até “Foi bom pra você?”, passando pelo indefectível “Caramba, isso nunca aconteceu comigo antes”.

Lembramos que o nosso revolucionário produto deleta a saudade através de três níveis de operação: Ar da Graça, Presença Marcante e Repulsa, sendo que o modo Repulsa possui a função de transformar a saudade em reação alérgica ao saudoso, pela superexposição de sua figura no computador do cliente.

No menu Opcionais, você encontrará as alternativas “Sachet Chulé” e “Kit Hálito”, que serão entregues em sua casa no prazo máximo de três dias úteis. O sachet é um simulador de chulé do dito cujo. Clique em Suave, Médio, Forte, Extra-Forte ou Deus-me-livre. O Kit Hálito disponibiliza as modalidades Vinagrete com alho, Vinagrete sem alho e com bastante cebola, Cachaça, Uísque 12 anos, Uísque 8 anos engarrafado aqui, Cerveja, Cigarro, Pasta de Dente, Café, Mexerica e Amendoim Japonês.

Você pode desativar temporariamente o programa ou cancelar a assinatura do serviço a qualquer tempo. Para maior segurança, mesmo que o usuário mova o saudoso para a lixeira, um clone do mesmo permanecerá oculto no HD. Para habilitá-lo, clique em “Ajuda” e selecione “Volta, vem viver outra vez ao meu lado”.

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sábado, 17 de outubro de 2009

GHOST WRITER DA IGREJA NACIONAL DO SANTO TESTEMUNHO


O Senhor dos aflitos esteja ao meu lado nessa hora. Que todos os santos me amparem, ainda que ninguém aqui acredite em santo. Mais 16 depoimentos pra criar ainda hoje. Vão ao ar de madrugada. Quero ver outro no meu lugar dizendo sempre a mesma coisa e tendo que falar de outro jeito. É o desgraçado que estava no fundo do poço, com a vida derrotada, endividado até o pescoço, bebendo, tomando droga, socando a fuça das crianças, chifrando a esposa, amante fazendo vodu. Chega o parente que é da igreja, leva ele pra assistir o culto, mergulha a cabeça dele na piscina de plástico, vem a transformação instantânea e daí a um mês a vida abençoada, empresa com dinheiro saindo pelo ladrão, viagem para Bora-Bora, três apartamentos, uma casa de praia, frota de Pajero na garagem.

O pior é que tem que redigir também a fala do pastor. O desencapetamento, as perguntas que ele vai fazendo pro convertido responder. Outro dia tinha um post-it do bispo aqui em cima da mesa me dando o maior esporro, dizendo que estava tudo muito igual. Mas fazer diferente de que jeito? Se eu troco “fundo do poço” por “fim da linha”, eles corrigem o texto e mandam falar “fundo do poço” de novo. Se eu falo em “falta de perspectiva” volta pra “vida derrotada”, assim não dá. E o dízimo? Agora a imprensa está pegando no pé dizendo que os pastores são ostensivos, que batem carteira na cara dura. Veio ordem pra maneirar no roteiro, pra pegar mais leve na hora de pedir o dinheiro e dar o número da conta, deixar uma coisa mais velada.

Ainda se fosse só o texto, ficava fácil de resolver. Mas tem o problema dos atores, quer dizer, dessas toupeiras de teatro amador que falam tudo decorado, como se estivessem olhando o teleprompter. Eles tinham que ler o script e falar do jeito deles, pra ficar mais natural. Já disse isso não sei quantas vezes nas reuniões de pauta, mas na hora da gravação é aquela coisa mais falsa que perfil do Lula no orkut. Quando dá, já sento direto aqui no computador e deixo as falas prontas já pra uma semana ou mais. Aí entra o horário eleitoral de algum partido ou então mais comerciais por break e tenho que enxugar tudo de uma hora pra outra, pra caber no horário do programa.

O calvário prossegue na hora da cura. E quem opera o milagre é este escriba mal pago. Já comprei por conta um tratado de moléstias e fico caçando enfermidades para adoecer o moribundo de araque, conforme o jeitão do freguês.

Tudo bem que é meu ganha-pão, eu devia torcer pra audiência subir. Mas, se sobe, eles ligam de madrugada em casa, pedem pra ir voando pra ilha de edição do programa e fazer render a enganação redentora. “Força a mão aí, meu camarada, capricha no exorcismo porque o ibope tá lá em cima, não deixa despencar não”. Teve um dia que nem dava tempo de escrever pra mandar pro engravatado que estava comandando o programa, eu ia falando os textos de improviso direto no ponto dele. Ah, minha mãe. Se me dá um branco a farsa toda desmorona, despenca o cenário dos querubins tocando trombeta, é capa de “Veja” na certa. E o pior é remoer essa adrenalina sabendo que o bispão manda-chuva tá lá no palácio dele, onipotente no seu trono Luiz XV, vendo tudo ao vivo e já dando feedback por celular para o diretor do programa. Muda ali, muda aqui, repete em câmera lenta a cena do cara que jogou longe a muleta e invadiu correndo o palco.

Eu tenho o poder e o dom, a ira santa, o fogo sagrado que destroi a iniquidade e manda pro fundo do inferno os devassos e os incrédulos. E o que eu quero agora é mandar pro ar este texto. E vai desse jeito mesmo, no calor da hora. Estou sozinho aqui na técnica, é só apertar um botão. O templo ruiu. O Cristo de verdade apareceu para expulsar os vendilhões.


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sábado, 10 de outubro de 2009

TOCs PARA ONOFRE


Penso que numa relação saudável entre patrão e empregado tem de haver diálogo, abertura e franqueza. Por mais que essa relação sofra um natural desgaste de 46 anos, como é o nosso caso. É sabendo que você também pensa assim que tomo a liberdade de fazer alguns comentários sobre seus préstimos e a particulares constatações de natureza diversa, anotadas em 14 do corrente em minha agenda de capa preta – aquela que você ofereceu-me de presente no Natal passado.

Quando optei pela contratação de um administrador doméstico, imaginei estar comprando minha despreocupação quanto a entraves de ordem prática que tomariam-me todo o tempo, ainda que o dia, ao invés de 24, tivesse 27 horas ou mesmo 27 horas e meia. Acertei de vez em quando. Errei quase sempre.

Comecemos por um elogio – o único – mas digno de menção neste improvisado relatório. As meias sociais estão seguindo o habitual degradée de tonalidades de um par para outro, na forma como são dispostas na gaveta, facilitando assim a escolha e a combinação com a roupa a ser utilizada. O mesmo critério, contudo, não vem sendo adotado com as meias esportivas e os lenços. Gostaria de saber em que estes itens da indumentária são inferiores para merecerem sua desatenção, Onofre.

Numa das reentrâncias da louça do bidê da suíte, em posição perpendicular à duchinha, pude observar um ponto verde de aproximadamente 1mm de diâmetro, o que poderia comprometer seriamente a higiene íntima das senhoras - que por ora não trago, mas que posso vir um dia a trazer aos meus domínios.

Queijos com furos em excesso no café da manhã: nada pode me irritar mais e embrulhar meu estômago na hora do desjejum. Sendo os mesmos adquiridos por peça, e não por quilo, acabo pagando pelo não-queijo ou invés do queijo. Solicite, doravante, que a moça do setor de laticínios corte o queijo ao meio para que você dimensione o número de buracos antes de efetuar a compra. Tome como parâmetro uma quantidade máxima de 0,3 furos (dos pequenos) por centímetro quadrado. No começo você precisará recorrer à calculadora científica, mas com o tempo passará a resolver a questão no olhômetro.

Já mais de uma vez o alertei quanto à conveniência de alternar o lado de inclinação da vassoura no processo de varredura. Se o esforço de inclinação for só para a esquerda ou só para a direita, os ramos da piaçava ficarão tortos prematuramente para um dos lados, encurtando a vida útil do utensílio.

Não creio que sua ignorância chegue ao ponto de não saber o que seja simetria, nem que me venha com a desculpa de ter faltado à aula nesse dia. De qualquer forma, tenho para mim que a questão é menos matemática do que de equilíbrio estético, e para isto basta um mínimo de bom senso. Refiro-me ao frequente desalinhamento entre os quadros nas paredes e os tapetes da sala, bem como à distância entre o Cuco, a imagem de Nossa Senhora de Lourdes e o termômetro que trouxe de lembrança de Campos do Jordão.

Passemos ao armarinho de remédios. Nada justifica aquela bagunça, onde todos se misturam: os não-tarjados, os tarja vermelha, os tarja preta ( Rivotril, Eufor, Dormonid, Bromazepan, Tofranil, Prozac ) e por fim os fatais, como raticidas, formicidas, soda cáustica e maionese de casamento – toda esta parafernália em meio aos apetrechos para lavagem gástrica, em caso de arrependimento.

Agora, os jornais que forram a gaiola do loro. É preciso que haja uma utilização equânime das publicações. Há lógica no raciocínio: se o Loro fala é possível que também leia, e é justo possibilitarmos ao bichinho pluralidade de informação, alternando a forração com a Folha de São Paulo, o Estadão, O Globo, o Jornal do Brasil e a Gazeta de Jacutinga.

Algumas maçanetas das portas estão rangendo, sinalizando falta de aplicação periódica de óleo lubrificante WD40. Você, Onofrinho, mais do que ninguém conhece meu hábito de percorrer todas as portas da casa antes de recolher-me à noite aos meus aposentos, certificando-me, re-certificando-me e tri-certificando-me de que se acham todas trancadas. Por favor, faça sua parte a ajude-me a tornar mais suave esta árdua tarefa. Saberei recompensá-lo com um panetone de frutas e um garrafão de vinho Sangue de Boi, junto com o décimo-terceiro no final do ano.

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sábado, 3 de outubro de 2009

FLASH PIZZA



Flashback chegando assim, na asa do desaviso: no céu e no assoalho da boca, a língua de um se contorce na prospecção de outro, e limpa com a ponta os dentes cheios de restos dos sonhos de ontem. Como ontem foi há muito, ambos carregam, por onde se atrevam, uma boa porção de momentos gostados, em providencial caixa de primeiros socorros.

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Não é impossível que um dia sejam batidas as estatísticas da época, quando impuseram um novo patamar nos escores de Eros. Mas duvido que haja casal como o que foram – pura labareda – com gana e técnica para quebrar o recorde. Bom, o disk pizza chegou e o puxa-puxa do queijo não espera muito tempo. A seguir, cenas dos próximos capítulos do vale a pena ver de novo.

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Falar em pizza, virgem só o azeite naquele reino permissivo, já que os dois, além dos dois, foram de muitos. E consumiram-se em devassidão até enjoarem e firmarem pacto de par hermeticamente isolado, naquele destilador de ciúme em que se meteram e de onde sairiam mutilados. Testemunhas avalizam que, desde então, as olheiras não eram mais da carne acesa até altas horas.

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Assim fiquei, voltando aos dias daqueles dois, até que o sono me rendesse. A pizza, ao meu lado, fria. Meia mofo, meia bolor.

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