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sábado, 27 de setembro de 2014

O CHULÉ NOSSO DE CADA DIA



O chulé anda escasso, e não é de hoje. A culpa não é do governo, nem da sociedade organizada, nem dos anões inadimplentes e muito menos dos ambientalistas. Estes últimos, inclusive, há tempos vêm alertando que, se nada for feito, tudo o que nos restará será o mortal oxigênio. Alguns são mais pessimistas e dão o jogo por perdido, afirmando que agora é tarde e já não há mais nada a fazer, a não ser esperarmos, conformados, a morte por sufocamento.

Os bancos de chulé, quem diria, estão exalando lavanda, com a triste falta de doadores. É desanimador, mas compreensível. Quem, em sã consciência, vai renunciar a uma cafungada profunda na meia podre para doá-la a quem mais necessita? Ainda mais sabendo que a chance de ver o próprio elixir fedorento sendo desviado para contrabando é sempre muito grande...

Junto com o contrabando, seu irmão mais perigoso: o tráfico. Mais do que o crack, o ecstasy e a coca juntos, o estrago causado pelas quadrilhas de chulé é apavorante. Se até há poucos anos era comum encontrarmos, em toda família de classe média, pelo menos uns três chulezentos em plena e farta produção, hoje a realidade é bem outra. A falta do insumo faz surgir carradas de fornecedores vindos de miseráveis favelas, que não hesitam em matar ou morrer para para manter girando a bilionária indústria da contravenção.

O desabastecimento, na entressafra de inverno, veio complicar ainda mais a situação. Evidente que a produção de chulé cai junto com a temperatura, e essa constatação levou as autoridades a criarem a Funghi Run 20K – Grande Caminhada pela volta do Chulé. Mais de 44.326 pessoas participaram do evento, em desabalada carreira sob sol abrasador, num esforço sobre-humano para a geração de quantidades colossais de chulé de qualidade. Concluída a prova, os participantes arremessaram seus tênis e meias usados numa grande caçamba, próxima ao pódio. Entretanto, a quantidade de chulé coletada foi inexpressiva – justamente por conta do clima ameno demais.

A verdade é que caminhamos a passos largos para o racionamento, a menos que as pesquisas em andamento sobre o enxerto de glândulas sudoríparas nos pés traga resultados animadores em curtíssimo prazo. Confirmada essa perspectiva otimista, o projeto do governo é implementar algo parecido com os mutirões da catarata, onde são realizadas cirurgias em massa nos grandes centros urbanos.

Paralelamente, temos de reconhecer que a polícia tem feito sua parte. Na terça-feira última, desbaratou uma gangue de larápios que vinha aplicando o velho e manjado golpe do velório. Em choro fingido, os delinquentes iam percorrendo sucessivos velórios para afanar as meias dos defuntos. E ali mesmo, no local do crime, consumiam vorazmente o chulé do finado.

Cães farejadores também têm sido adestrados para rastrearem chulé em expedições de busca, com resultados satisfatórios. O que não isenta a polícia de alarmes falsos como o ocorrido ontem, quando uma matilha de pastores alemães confundiu o que seria um grande depósito clandestino de chulé com uma fábrica de queijo gorgonzola.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 20 de setembro de 2014

ANGU À MODA DE DALI




Ah, como foi flácido o fluir dos flocos de nuvens pagãs, ficar de joelhos e estalar artelhos dentro da redoma. Quis um cafuné despido de intenção para comer com pão no café da manhã. Mas não estava são, como nunca estarei - apenas maldizia em régua derretida e compasso de espera.

A cara metade a léguas daqui. A cara metida em downloads de lá. Teimo rabiscando sem mãos a medir nem pés a amparar, mesmo sabendo que nada restará exceto o jasmim de raras consoantes. Brancas, fofas, sem serifas que machuquem. Caem flutuando no texto e deixam-se ficar, sem mais o que fazer e dóceis de lidar.

Que nada, quimera, que sina, pintassilgos de resina nessa piscina de esperanto. Regrido aos idos das lascadas pedras, desvãos, lodos e escaninhos por toda a inadequada geografia. Acesso de riso no acesso da estrada, recém-asfaltada com pasta de anis e raspas de misericórdia.

É quando, de repente, tudo passa a destoar de Dostoievski. Incensa e chora, lamenta e geme. À beira do Sena, a chanson se esvai em acordes lácteos. Espana, gira em falso. Espanha, falsos Mirós. Descem carradas de mouses de esgoto a farejarem rotos e a soltarem arrotos sobre outros ratos. Entrementes, há mulheres lusas ainda muito quentes, moídas por engano na bacalhoada. Uma soneca no vinco do teu jeans, sob o embalo cômodo de Brothers in Arms. Sem mais delongas, estimo melhoras.

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sexta-feira, 12 de setembro de 2014

VASCAÍNA



Na capitania hereditária de Vasco Herculano Machado do Aleijão aconteciam coisas um tanto esdrúxulas. A greve dos sacis, reivindicando fumo de boa procedência para seus cachimbos, talvez seja a ocorrência mais conhecida, pela repercussão alcançada nos pasquins da época. O levante resultou, inclusive, na intervenção da Coroa Portuguesa para aplacar os exaltados ânimos dos Pererês, reunidos aos milhares em ruidosas passeatas sobre uma perna só.
Mas o incidente está longe de ter sido o único a merecer nota nos anais da história. Muito provavelmente, o maior de todos os rebus já registrados naquelas plagas coloniais se deu quando a referida capitania teve finalmente de tornar-se hereditária - por ocasião da
morte de seu donatário, o tal Vasco. A faixa de terra, que se estendia do litoral até a linha de Tordesilhas, era para o herdeiro um pepino maior que a Faixa de Gaza dos dias de hoje.
Financeiramente deficitária e atacada pelos índios caxinauás a cada oito dias, a extensa tripa era um matagal de fora a fora e exalava um odor incessante de carniça pela ausência de urubus na região, abatidos em massa pelo desalmado Vasco nas suas práticas de tiro ao pombo (como os pombos eram difíceis de acertar, Vasco achou por bem trocar de ave para facilitar-lhe a pontaria, daí a opção pelos urubus). Vasco Jr., em resumo, iria herdar um verdadeiro nó cego, o que o levou a abdicar da hereditariedade sobre a capitania. Não havendo outro português que se habilitasse a ficar com a encrenca, Juninho resolveu legar seus milhares de hectares à menos hostil das caxinauás que conhecia, uma tal Cunhapora Ceci, que há tempos lançava sobre ele uns olhares cheios de segundas intenções.
Cunhapora, flagrada após a caça vespertina cheirando lança em sua oca, agradeceu a Vasquinho o fato de lembrar-se do seu nome mas rejeitou a oferta. Entretanto, sugeriu a ele que propusesse a Inhauaterê e seus irmãos um bem fornido carregamento de espelhinhos em troca de serviços vitalícios de capina do território. Pelo menos assim manteria roçados os seus domínios enquanto, com um pouco mais de calma, engenhava uma solução adequada ao seu dilema.
Embora alguns dos irmãos de Inhauaterê demonstrassem sincero interesse na permuta, esta foi formalmente rejeitada pela maioria, que preferiu não trocar a rede pela enxada. Inconsolado e descrente da boa vontade humana, Vasco Jr. não vislumbrava outra saída a não ser repartir a capitania em pequenas sesmarias para cultivo de hortifrutigranjeiros.

Pelo tratado estabelecido, se suas terras não fossem lucrativas após determinado prazo, a Coroa Portuguesa poderia reaver a posse e mandá-lo à forca por justa causa.
Temendo essa possibilidade, Vasco Jr. retornou à mesa de negociações com Inhauaterê e Inhauaterê Mirim, seu filho, para elaborarem o estatuto da Alfamel, a Cooperativa de Produtores de Alfaces e Melões, a ser gerida por trinta mil japoneses dispostos a ganhar a vida a qualquer custo nas capitanias brasileiras. O que os nipônicos de então não imaginavam é que a maleita dizimaria, em apenas 17 meses, quase todos eles, enquanto a praga denominada Mandruvá da Alface faria o mesmo com suas hortas.

Vasquinho faleceu após duas outras tentativas fracassadas de fazer dinheiro com suas terras. E de arrumar um herdeiro para sua Capitania.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 6 de setembro de 2014

DE MARCA MAIOR



O que será que faz o M do Mc Donald's, a curvinha da Nike, o jacarezinho da Lacoste serem o M do Mc Donald's, a curvinha da Nike e o jacarezinho da Lacoste? Na busca de uma resposta, homens de marketing divergirão de sociólogos. Que não necessariamente terão as mesmas convicções dos filósofos, cujos argumentos jamais convencerão os religiosos, que inspirados em seus dogmas travarão discussões acaloradas com os cientistas políticos. A celeuma se aprofundaria, ganharia a mídia e se transformaria num grande fórum de debates, certamente com o patrocínio da Coca-Cola, da Vivo ou da Volkswagen.

O fato é que as marcas estão aí, colossais e reluzentes, explícita ou subliminarmente a fincar suas bandeiras nas frágeis massas cinzentas.
Tenho um amigo, publicitário, que arranca todas as etiquetas visíveis de suas roupas. Entende ele que essa é uma forma de propaganda e, até onde sabe, jamais será remunerado pela veiculação. Então, tesoura nelas. Nem bem saem das lojas e as roupinhas de grife viram genérico. "Ainda se a roupa saísse de graça, vá lá, tudo bem. Até toparia a permuta" – diz ele. "Eles me dariam as calças, camisas e sapatos e eu sairia pra rua desfilando as marcas deles".

Tá certo que esse meu amigo é um tanto radical. Mas tão xiita quanto ele é aquele cara no extremo oposto, que compra a etiqueta e só depois é que repara no produto em volta dela. "Grifado" da cabeça aos piercings, o talzinho é um verdadeiro anúncio ambulante. Veste o que veste não pelo valor que atribui à indumentária, mas pelo status que supostamente darão a ele por se exibir com aquilo tudo.

O poder da marca é um caso muito sério. E vale tudo para garantir que ela abocanhe mais mercado. Até mesmo recorrer a obras-primas em domínio público, que à revelia de seus autores acabam virando sinônimo de marca. O que será que Beethoven pensaria se soubesse que aquela curta e genial sequência de notas, que alicerça sua Quinta Sinfonia, se transformaria no "pão pão pão pão" da Wickbold? Ou da sua "Pour Elise", comendo solta nas esperas telefônicas e nos caminhões de entrega de gás? Quando é que iria passar pela cabeça do autor de "O Sole Mio" que sua canção imortal viraria comercial de Cornetto? E por aí vai. "As Quatro Estrações", de Vivaldi, vendendo sabonete. O célebre "Aleluia" de Haendel, que já apregoou até remédio para prisão de ventre. A solene "Pompa e Circunstância", de Edward Elgar, por décadas reduzida à musiquinha do "Boa Noite Cinderela", antigo quadro do Programa Silvio Santos. A lista é interminável. Se bobear, "Águas de Março" daqui a pouco vira jingle de guarda-chuva, pra desespero do meu amigo xiita. Que, aliás, anda sumido. Deve estar desempregado.

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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