.

domingo, 17 de novembro de 2019

PRAIA DE NUDISMO GERIÁTRICA





- Pode me explicar porque está usando óculos aqui, na praia de nudismo? Se a ideia é tirar tudo, tem que tirar os óculos também, querido.
- Vim de óculos pelo único motivo plausível, ou seja, para enxergar melhor as ondas e as palmeiras esvoaçando. Ninguém usa óculos pra ver pelanca e ruga. Masoquismo tem limite.
- Aproveita e usa os óculos para ver esse apêndice que você tem um palmo abaixo do umbigo. Mas não sei se consegue, talvez tenha que ir ao oftalmologista para um reforço nas lentes...

- Você fica falando de mim, mas está de óculos escuros.

- Nada mais apropriado para vir à praia. 

- Com eles, eu não consigo saber para quem você está olhando. Nem por isso eu fico te patrulhando, né? Cada um cuida de si, ciúme não tem cabimento nem justificativa na nossa idade.

- Não subestime tanto nossa faixa etária. Repare que "sexagenário" começa com "sex".

- Adeus às ilusões, querida. Na ativa, aqui, só o salva-vidas. Esse tem que ter até uns trinta, pois deve trabalhar bastante no resgate das baleias encalhadas. O coitado merece ganhar adicional de insalubridade - pelo trabalho de remoção de baleias e por expor os olhos a imagens que danificam a retina. Ou seja, gente como nós passando à frente dele o tempo todo. Imagina a tortura.

- Isso depende muito. Há jovens que adoram mulheres mais velhas.

- É muito Édipo envolvido...

- Sabe nada, queridão. Sabe nada...

- Não vamos discutir, isso já fazemos bastante em casa. Quer saber? O bom de frequentar lugares assim é que existem duas, e apenas duas, alternativas. Ou ninguém ri de ninguém, pois aquilo que o tempo faz com a gente não tem graça nenhuma, ou todo mundo ri de todo mundo. Eu, particularmente, prefiro a segunda opção.

- Bom, nisso a gente concorda. E acho que vai bem uma cervejinha pra rir um pouco... bora?

- Só se for sem álcool. O médico proibiu, lembra?



© Direitos Reservados




sábado, 9 de novembro de 2019

SÓ QUERO O SEU BEM, MEU MENINO VADIO




Meu filho,


Eu só quero o seu bem. No sentido de que você se dê bem, veja bem... E se dar bem, mas bem mesmo nesta vida, Juninho, é amealhar muitos bens. Seja lá de que jeito for. Entendeu bem?

Se um conselho deste velho e experiente pai valer alguma coisa para você, que seja este: nunca se furte a roubar. Siga meu exemplo, jamais se negue ao abnegado exercício da contravenção. Mesmo que isso não traga benefício algum à sociedade, pode ser que reste o consolo de enriquecer a você. Roube mesmo, menino, roube até não dar conta de carregar aquilo que não é seu. Até vergar as costas de tanto lingote de ouro desviado, de tanta usina hidrelétrica e estádio superfaturado, até ficar com as mãos em carne viva de tanto contar dinheiro dos esquemas de propina. Até grana deixar de ser solução para passar a ser problema - tamanho o montante que você terá juntado, sem saber o que fazer com ela. Ô coisa boa, quando chega nessa fase...

Não deixe sobrar nadica de nada, aproprie-se de tudo que puder ou que estiver dando sopa. Não poupe nem quadro de Portinari, nem anjo de Aleijadinho, nem crucifixo de parede, nem  talher de faqueiro. Afana mesmo, sem dó nem piedade, sem drama de consciência. Na calada ou nas fuças do mordomo. Se não surrupiar, vem outro e leva, creia em mim. 

O caldo entornou? Papai aqui não há de faltar. Entregue-se ao desfalque como se o dia de hoje fosse o último da sua vida, surrupie descaradamente, tendo na cachola aquele mandamento que aprendi com seu avô e transmiti para você: "Farinha é pouca? Meu pirão primeiro!".

Vai sem medo, cria minha. Faça o que der na telha, se for em proveito próprio. O máximo que pode acontecer é te pegarem com a boca na botija, em ato tão flagrante que justifique a denúncia. Ainda assim, keep calm. Você é filho de mim. Caso o caso vá pra frente, da instância suprema não passa. E a instância suprema, convenhamos... se aquele outro precisa de um cabo e um soldado, eu te asseguro: nem disso a gente vai precisar!

A sabedoria mais preciosa é aquela que surge dos nossos próprios erros. Dá para contar nos dedos quem se arrumou na vida sem trapaça ou uma rasteira bem passada sempre que preciso, estimado filhote. Dá pra contar nos dedos da mão esquerda, para falar a verdade. E olha que eu tenho menos dedos nessa mão, né?...




Com amor,

Papai




Esta é uma obra de ficção(?)
© Direitos Reservados

sábado, 2 de novembro de 2019

EXISTE MÚSICA APÓS A MORTE






Para o meu pai



No mundo inteiro, é cada vez maior o número de negócios que sobrevivem saudavelmente às custas da morte. Um verdadeiro paradoxo, se a gente levar em conta a expectativa de vida aumentando dia a dia. 

Uma empresa da Inglaterra, por exemplo, faz enorme sucesso produzindo discos de vinil onde se misturam à matéria-prima, no momento da prensagem, as cinzas de pessoa falecida. Pode-se usar todo o conteúdo da cremação em um único LP de 12 polegadas ou dividir os restos mortais em um número maior de cópias, para distribuição à família e aos amigos mais chegados.

A ideia traz os entes queridos, do túmulo frio e quase sempre largado aos vermes, para a sala de estar. De um jeito natural, nostálgico e reconfortante. Em lugar do jazigo da família, uma seleta e adorada coleção de discos na estante. Designers, diretores de arte, ilustradores e fotógrafos também devem faturar alto com as capas de disco, que certamente variam de supercloses do rosto do falecido a panorâmicas do caixão no velório, cercado de velas e coroas de flores.

Uma outra vantagem do mausoléu sonoro é o futuro morto deixar as coisas dispostas conforme sua vontade, ao invés de permitir que a família resolva tudo a seu modo - o que quase sempre não coincide com o que o defunto aprovaria. Pode-se elaborar previamente a playlist  antes do óbito, evitando que a seleção da parentela divirja da sua compilação.

A gravação de músicas, no entanto, não seria a única possibilidade. Igualmente viável é o registro da voz do falecido, deixando uma única e longa mensagem à família ou dedicando uma faixa a cada um dos parentes mais próximos - com conselhos, histórias, advertências, poemas e por aí vai. 

Há outras ideias, lindas e criativas, para perpetuar de alguma forma os nossos mortos através de suas cinzas. Virar árvore, lápis, fogo de artifício, tatuagem (as cinzas são misturadas ao pigmento) e até mesmo pó de ampulheta, uma alternativa cheia de simbologia e que desperta profundas reflexões filosóficas. 

Mas o melhor mesmo parece ser o vinil. Imaginando agora um hipotético disco com as cinzas do meu saudoso pai, o bolachão poderia começar com "E o destino desfolhou", seu Greatest Hit, e ter como faixa final "Despedida", canção do Roberto que ele adorava. Perfeita para um último e não tão definitivo adeus.



© Direitos Reservados