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sábado, 24 de abril de 2010

NOTHING MAN


Na verdade, o que irritava demais era que o sujeito parecia uma caneta muito gasta e quase seca, de design ultrapassado, tampa mordida e serventia duvidosa até para a própria mãe, os irmãos e os vizinhos da frente que o ajudaram a criar.

Dava aflição e pena só de passar o olho no sempre esticado ser humano, mole ali no sofá mais mole ainda, feito boi na engorda – com a diferença que o quadrúpede, ao contrário dele, costuma passar a maior parte do tempo de pé. E não é mentira dizer que bastava terminar o almoço pro elemento já ir tratando de cavar espaço no bucho pra caber a janta, na adivinhação do que teria à mesa pra se refestelar até que não houvesse mais vaga disponível para um tremoço ou uma mísera azeitona sem caroço.

Com essa vida sem prestança o moço durou pouco sendo moço e logo logo rendeu-se ao definhamento, pelo uso muito continuado de certas partes do corpo e pelo desuso completo de outras. Ficou aquele velho que é ancião de tenra idade, acabado antes da hora, alvo de comentário e exemplo de mau exemplo. Do jornal só lia horóscopo, e nele se fiava mais que nos profetas do Antigo Testamento, mais do que no pronunciamento do presidente do Banco Central sobre a taxa de juros e mais até do que em fofoca de tia viúva – e dessas tinha duas que valiam por dúzias. Ô velhas mexeriqueiras, que quando apareciam com seus tupperwares lotados de biscoitos de nata traziam junto sacolas de injúrias e difamações sobre todo ser vivente da cidade, especialmente a parentada da zona norte. A sorte é que ambas, Aurora e Lélia, só muito de vez em quando surgiam e logo caíam fora após alguns jorros caudalosos de infâmia, deixando-o novamente às voltas com os botões do seu pijama.

“Esse cara aí é herdeiro de cartório”, diziam alguns à primeira vista, vendo aquele monumento à preguiça zapeando a tarde toda entre desenhos animados e alternando o trabalho das mandíbulas entre sacos de balas chita e bolinhos de chuva. E a chuva caía mansa como ele nas paragens que habitava, tão sem vontade de cair que em sua moleza o levava a meditar, pra descansar um pouco do estafante esforço de fazer coisa nenhuma.

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sábado, 17 de abril de 2010

DUELO À FRENTE DE UM PRATO DE COXINHAS


- Tim-tim!
- Saúde!
- Bom, onde é que a gente tinha parado mesmo?
- Sócrates e seus seguidores.
- Ah sim, claro. Numa perspectiva hedonista, é evidente a influência do iluminismo como mola propulsora da morfologia intramolecular...
- Ok, da qual derivou, décadas mais tarde, a hermenêutica mineira contemporânea. Tudo bem, isso é óbvio e incontestável para qualquer guri de 5 anos. Mas daí você generalizar, atribuindo a Cervantes a fundamentação da hidrofobia, vai uma enorme distância...
- Permita-me discordar. Veja por exemplo a exegese adstringente dos sonetos de Petrarca. No estrito sentido do léxico, conjectura-se ser pura fenomenologia endógena, pelo menos numa primeira análise.
- Em termos, em termos. Afinal, Donaldson é quem efetivamente fez a ponte entre o parnasianismo tardio e Paulo Coelho. Isso dentro da retórica fonética do ser, enunciada por Kant com muita propriedade.
- Contanto que fosse uma suposição empírica, comumente compreendida na estética gamaglobulínica.
- Mas as mutações no tecido social sempre prevalecem sobre a silepse antropológica. Silepse que, aliás, tem em Nietzsche seu mais ferrenho defensor. Te peguei, hein. Sai dessa agora!
- Por mais que a ciência lance luz a essas indagações, a ablação cinética do conservadorismo sempre será objeto, na acepção anímica, de um redesenho neo-positivista que age antagonicamente aos receptores de protease. Ficou clara a diferenciação?
- Na realidade, Pound, em toda sua obra, contextualiza a intersecção geomórfica, ainda que de forma veladamente dúbia, se tomarmos como parâmetro o determinismo puramente iconoclasta.
- Veja bem, o que eu defendo, do ponto de vista enunciado por Homero na Ilíada, é que a bissetriz não tangencia a prosódia de Lacan, qualquer que seja a natureza do objeto em questão.
- Alto lá, meu amigo. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Se Hahnemann, ao lançar as bases da homeopatia, não tivesse uma mãozinha do Padre Vieira, como explicar a queda da Bastilha enquanto divisor de águas no estudo das pororocas ? E digo mais: se fôssemos levar essa sua premissa como verdadeira, estaríamos admitindo o Molibdênio e seu número atômico como desencadeadores do efeito estufa. O que, convenhamos, é uma sandice.
- Discordo redondamente.
- É desanimador sentir o colega tão refratário à lógica quântica.
- Não tenho culpa se você é retrógrado e insiste em defender a representação metafórica, que extrai da identidade do objeto racional sua própria subjetividade transcendente. Ou você vai continuar negando que o Recôncavo Baiano na verdade é Reconvexo?
- Sim como aforismo. Jamais como axioma.
- Não, não. Você não entendeu aonde eu quero chegar. Tome, por exemplo, essa coxinha que repousa gordurosa à nossa frente. É uma reles coxinha, que não se sabe coxinha. Não tem a consciência de sua “coxinhicidade”, ou sua essência salgadística, entende? É o eterno conflito entre Eros e Tanatos, Sísifo e Prometeu.
- Deixe de ser simplista. A dicotomia aristotélica não se abstrai assim, num maneirismo niilista de contornos platônicos.
- Então, mas...
- Espera aí, deixa eu só concluir o raciocínio. A ambivalência, no contexto glauberiano, pode e tende a ser congruente. Caso contrário, a catarse sinóptica de Eleonora Duse lançaria por terra essa sua teoria. Ou melhor, sua falácia.
- Sei. De onde se supõe uma retomada da síntese diastólica.
- Então, é justamente esse o ponto. Taí a signagem termo-acústica que não me deixa mentir.
- E que não te deixa raciocinar, pelo jeito.
- Está partindo pra ignorância?
- É. Quem sabe assim você me compreende...
- Olha a baixaria!
- Ora, defenda-se com argumentos. Válidos, racionais, insofismáveis. Ou então, renda-se. Tenha a humildade de abandonar a partida ao antever o cheque-mate.
- Seguirei seu conselho. Tô indo embora.
- Ei, espera aí. A gente combinou de rachar a conta.
- Parafraseando Schopenhauer, te vira Mané. Tchau mesmo.

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sábado, 10 de abril de 2010

É O AMOR


- Tá fazendo 12 graus e esse ar condicionado ligado no extra cool. A ideia é me matar mesmo, docinho de coco?
- Se quisesse te matar de verdade usaria um expediente mais assertivo e de curto prazo, uns três ou quatro comprimidinhos de alta eficácia diluídos no seu Martini das seis e meia ou algo assim. Pra que ter que aguentar você reclamando, balbuciando um discurso patético antes de morrer? Uma pneumonia, se instalada, custaria a te matar. Não, não. Prefiro uma estrebuchada só, sem muito resmungo.
- Bom, se ainda te sobrar um quezinho de cavalheirismo e puder me dar a chance de escolher, espere que eu durma e meta-me de uma vez um tiro no ouvido. Pelo menos é indolor. Li numa reportagem que nesta modalidade não dá tempo do cérebro da vítima ordenar para que o organismo sinta dor. Você se livra de mim mas não me faz sofrer. Tudo bem assim?
- Ok, e você acha que a essa altura da nossa falência afetiva ainda há espaço para direitos humanos? Morrer tem que ser doloroso, pelo menos em se tratando de você. Tem que ser sentido até o estupor dos nervos. Eu quero que a sua derradeira experiência seja vivenciada na plenitude, se é que a morte pode ser vivenciada, entende? Mas também não pode demorar muito, não. Jogo rápido. Eu não agendaria o dia todo pra uma tarefa tão reles.
- O que eu não entendo é porque você se preocupa tanto com os requintes de crueldade. Ainda se eu tivesse um mínimo de importância na sua vida, vá lá, mas não é esse o caso. Você dá a mim uma relevância imerecida. Menos, por favor, menos. Guarde seu ódio pra quem seja digno dele.
- Discordo, amor. Você faz jus a procedimento VIP. Não tente tornar simplório o desfecho de uma relação tão complicada quanto a nossa. O pouco tempo que eu me disponho a perder com o servicinho tem que ser bem aproveitado, a experiência precisa ser gratificante. Consideremos um histórico gran finale, não menos que isso. E depois tem a trabalheira toda em sumir com o corpo, não deixar pistas, tudo isso vai me tomar horas de calculada logística e é razoável que eu seja recompensado de alguma forma. Você precisa entender que a sua morte, pra mim, tem que ser uma grandiosa e inesquecível experiência de vida. São segundinhos preciosos que eu quero saborear como quem degusta um Chateau Petrus num castelo da Normandia. Mas isso tudo estaria em pauta se eu quisesse te matar de verdade, só que por enquanto ainda não cheguei a este extremo.
- Fico sensibilizada, e é pena não poder dizer o mesmo.
- Seja mais explícita.
- A pizza de agora há pouco. Aliche estragado, dependendo do estrago, é fatal. E a minha metade era só de escarola. Fresca e saudável escarola. Sorry.

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sábado, 3 de abril de 2010

DÚVIDAS FREQUENTES (FAQ) SOBRE NOSSAS CORRENTES


Pegunta
Para mim, esse negócio de corrente é ignorância e falta do que fazer. Ninguém vai morrer, perder o emprego, levar uma série de bofetões, desenvolver micose nos calcanhares ou engasgar com o palito do bife a rolê se interromper a brincadeira, concorda?

Resposta
Eu não estaria tão certo disso. Aliás, se você estivesse convicto da própria imunidade não estaria escrevendo para o FAQ, o que demonstra uma certa aflição sua em relação ao assunto. Não quero assustá-lo, mas citarei um exemplo, dentre muitos dos que se tornaram vítimas do pouco caso. Joaquim Alfredo Parnaso recebeu uma corrente e em seguida saiu de casa, no dia 12 de maio de 1978, para comprar 750g de tilápia. Não retornou até agora. O local onde funcionava a peixaria desde então já se transformou em casa de fogos, lotérica, sorveteria, Auto Elétrica Zé Chupeta e fábrica de fios de ovos, e nada do Joaquim voltar. Faz tanto tempo que a tilápia, abundante em qualquer córrego da época, hoje está quase extinta naquela região.

Pergunta
Recebi uma corrente me ameaçando de morte súbita caso não encaminhasse a mesma, em até 48 horas, a 20 amigos. Ocorre que 3 dos 20 emails voltaram, e só vi isso após as 48 horas regulamentares. Corro risco de vida, ou melhor, de morte?

Resposta
Corre. E corre pra enviar a corrente para outros 3, por garantia. Vai que...

Pergunta
Quando repasso uma corrente, um sujeito chamado Undelivery me manda o email de volta. Como dar um corretivo nesse safado?

Resposta
Esse tal de Undelivery é um dos maiores quebra-correntes que a internet já conheceu. Centenas de milhares de correntes são interrompidas por este sacrílego fanfarrão, que não parece temer a ira divina. Saiba que estamos empreendendo buscas no sentido de capturá-lo ou pelo menos de repreendê-lo sobre o péssimo hábito de retornar o email a quem o enviou.

Pergunta
Estava passando pra frente uma corrente quando houve um apagão. Na caixa do outlook, consta como item enviado. Posso confiar cegamente de que cumpri minha parte?

Resposta
Pode. Se o corte de energia afetou o recebimento do(s) destinatário(s), o problema é com outro tipo de corrente, a corrente elétrica. Assim, o castigo vai recair sobre a concessionária e seus (ir)responsáveis.

Pergunta
Outro dia chegou uma corrente pra mim e esqueci de enviar. Comigo não aconteceu nada, mas uma tia minha teve toda a metade esquerda do corpo amputada, do dia pra noite.

Resposta
Parentes são entes queridos, e isso é sinal de castigo para você. Mas antes meia tia que tia nenhuma. Da próxima vez repasse o email, para que a outra metade permaneça intacta. Aliás, já ouviu falar da expressão “meio parente”? Acho que é nesta categoria que se encaixa sua infortunada tia, doravante.

Pergunta
Recebi no email da firma, às 9h45, uma corrente dizendo que, se desse andamento na coisa até mais tardar na hora do almoço, receberia um grande e inesperado volume de dólares. Fiz direitinho e até agora nada. Como é que fica?

Resposta
Provelmente você mandou por mandar, por desencargo de consciência. Assim não vale. Tem que ter convicção, acreditar que vai acontecer para que a coisa de fato vingue. Além disso, os dólares não chegarão até você via Sedex, meu camarada. Fique atento às oportunidades de negócios, às intuições no jogo do bicho, às propostas de sociedade que venha a receber. Sua fortuna pode estar nestes avisos do destino e você nem perceber.

Pergunta
Às vezes eu recebo a mesma corrente vinda de 3 amigos diferentes. Se eu passar adiante as 3 ao invés de só uma delas, terei o triplo de bênçãos? Acho que seria o justo, pois tive 3 vezes mais trabalho, concorda comigo?

Resposta
Boa pergunta. E mereceria uma boa resposta, se a tivesse. Nem eu nem ninguém pode garantir a tríplice bem-aventurança, porém, a julgar pela lógica corrêntica, se passar pra frente as 3 com certeza terá 3 vezes menos chance de ser amaldiçoado. Já ajuda.

Observação da equipe FAQ das Correntes: o não encaminhamento destas instruções poderá ter conseqüências desastrosas. Repasse-o a pelo menos 3 centenas de amigos. Só a consciência e a mobilização coletiva poderão evitar o derramamento de sangue causado pela omissão preguiçosa e pela negligência.

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