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sábado, 29 de setembro de 2012

VIDA DE SANTO






Engana-se quem pensa que vida de santo é um infinito dolce far niente. Nem ao mais preguiçoso deles é dada a graça de ficar chupando chicabon eternidade afora. E aquele estereótipo de se recostar em nuvens, entre cânticos e cítaras, é mais coisa de anjo que de santo - e anjo de quadro barroco, idealizado e fora de contexto histórico.

Santo passa maus bocados, verdade seja dita. E nem por isso os devotos lhes tratam com o devido respeito, o respeito que o santo, justamente por ser santo, exige.

Por exemplo, esse estranho hábito terráqueo de entornar no mínimo 10% da cachaça no chão da venda, dizendo que é pro santo. Posso dizer com certeza que todos eles abrem mão da homenagem e passam muito bem sem ela. Se gostasse mesmo de água que passarinho não bebe, santo não seria santo. Muito pelo contrário.

Depois, tem outra: manda a Justiça Divina que, toda vez que se oferece algo pro santo, e não se especifica pra qual santo é o presente, a oferenda seja repartida por todos indistintamente. Vai daí que cada gole oferecido é dividido, em partes iguais, para a santosfera inteira. Sabendo-se que os santos são atualmente milhares, a cada um cabe geralmente uma gotinha de nada - e não é isso que vai desviar a santaiada do bom caminho. Até aí, nada de mais. Mas acontece que se a gente levar em conta que cada pinguço manda pra goela pelo menos uns três copos da marvada, e que só no Brasil temos milhões de alcoólatras, o estrago divino é grande, provocando em vários deles internações frequentes - quando não diárias. E as mais prejudicadas são as santas, que com um tiquinho de martini já estão trançando as pernas.

Outro problema sério são as imagens dos santos - tanto as pintadas quanto as esculpidas. Tem santo lá em cima que excomunga sem dó alguns dos displicentes artistas terrenos, pela falta de semelhança deles com as imagens que os representam. Esse tipo de episódio produz verdadeiras catástrofes estéticas. Outro dia mesmo toda a corte celeste saiu em passeata, com cartazes, faixas e gritos de guerra, protestando contra um lote de 250 estátuas de Santa Edwiges que saiu de fábrica com cara de Rita Cadilac. Um repulsivo sacrilégio, que merece punição exemplar. Para evitar novos contratempos, São Tomé propôs em assembleia a instituição do selo "Ver para Crer", que certifica a imagem beatificamente reconhecida, ou seja, aquela que tem a benção do respectivo santo e que guarda nítida semelhança com a sua figura dos tempos de carne e osso.

Além desse tipo de desrespeito, há também injustiças que agridem e irritam a turma de auréola. A maldosa e irônica expressão “Na descida todo santo ajuda” vem merecendo, de uns tempos para cá, um revide da parte dos ofendidos. Julgam eles que a frase denota uma certa acomodação, dando a entender que os santos têm braço curto e que não se empenham nas tarefas mais difíceis, onde só um milagre pode resolver a parada. “Não vamos ajudar mais na descida, ainda que o carro do sujeito esteja sem freio. Pois que se espafitem, aprendam a lição e vão para o inferno” desabafa um conhecido santo, que não quis se identificar.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 22 de setembro de 2012

CATEDRAL SUBMERSA






Devaneio ao som de La Cathédrale Engloutie, de Claude Debussy.

A verdade é que a lenda de lenda não tinha nada, pois juro sobre a Bíblia que vi a catedral engolida pelas águas, com suas ogivas góticas, seus altares e seus dezesseis sinos mudos há séculos. Ali jaz, até que razoavelmente conservado, o sacerdote de então. Ia com a missa pela metade, já que a história nos dá conta que estava na homilia quando as águas o calaram. E foi-se de estômago cheio, pois regalou-se na véspera com iguarias da Irlanda e vinhos da Normandia, trazidos por um fiel recém-chegado do velho mundo. Apesar do desencarne com o apetite satisfeito, trazia a testa franzida, como se advertisse os fiéis do dia do juízo final. Não muito longe da batina, pequenos peixes iam e vinham virando as páginas de um missal, com fecho folhado a ouro. Confessionários de ponta-cabeça, tomados por corais, bailavam sem gravidade, levando de vez em quando trombadas de tubarões. Um caco de vitral, do quinto mistério do rosário, prendia na areia a conta de água do mês. Paga após o vencimento, com multa e juros de mora.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 15 de setembro de 2012

MC LUA INFELIZ

Ilustração: Thiago Cayres



- Sabe de uma coisa, Ray, você até que é um cara esperto. O seu defeito é pensar pequeno, e um sujeito com 52 anos não tem mais tempo de errar na vida. Aonde pensa que vai chegar com esse sanduichinho de dois hambúrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola e picles no pão com gergelim? Pretende mesmo pagar a faculdade dos seus filhos com isso?

- Meta-se com o seu foguete que eu sei o que estou fazendo. Um dia, milhares de manés californianos, metidos a inventores como você, tentarão copiar a minha receita e não conseguirão fazer igual. Pode apostar.

- Bom, igual não vai ficar mesmo. Ruim assim, vai ser difícil. Por que não abraça um projeto maior, com alguma chance de futuro, meu caro? A corrida espacial está só engatinhando, e temos literalmente um universo de possibilidades para explorar. O primeiro desafio é a lua, e os engenheiros da Nasa certamente vão cair de quatro com o projeto do meu foguete. Olha só a maquete... não é linda?? Mal posso esperar a hora de vê-lo rasgando o céu.

- Lançamento por lançamento, fico com o meu em terra firme. Melhor uma McOferta na mão que dois foguetes voando.

- É, amigo, vejo que um abismo nos separa. Minha ambição está nas estrelas, e a sua numa chapa quente e cheia de gordura. Triste.

- Pois fique sabendo que seus astronautas levarão Big Macs desidratados a bordo para comerem na viagem. Isso se conseguirem sair vivos da plataforma de lançamento, porque é bem capaz da sua geringonça explodir antes do fim da contagem regressiva.

- Pense bem, homem. Hamburguerias e sanduíches como esse que você imagina eu conheço dezenas só aqui em San Bernardino. E com belas mocinhas de pernas de fora, que andam de patins servindo os carros, o que não é o caso da sua modesta baiuca. E esse nome, então, McDonald's? Diga-me qual o sentido disso? Seu nome é Ray Kroc, caramba. Você poderia ao menos batizar seu "come-e-morre" de Kroc's Burger, lembra comida crocante, não é mesmo? Se bem que, para ser bem sincero, esses seus hambúrgueres mais parecem umas borrachas com gosto de sabão de coco. Jamais permitiria que algum dos meus astronautas se aproximassem dessa gororoba insossa. Eu teria que abortar a missão em consequência de diarréia coletiva.

- Bom, em primeiro lugar você precisa achar quem queira se aventurar nessa lunática empreitada, pra depois se preocupar com uma improvável disenteria, não acha? Meus ingredientes serão todos selecionados, de fornecedores exclusivos. Particularmente, confio muito mais nos automovinhos de plástico que vou distribuir de brinde com o Mc Lanche Feliz do que na performance do seu foguete espacial.

- Você é mesmo um caso perdido, Ray. Se me permite um último palpite, essa mistura de sanduíche com batata frita não vai dar certo... 

Hoje, uma das mais controvertidas teorias da conspiração sustenta que o homem nunca foi à lua e que tudo foi armado em um estúdio fotográfico chinfrim pelo governo americano. Por outro lado, se fossem dispostos em fila, os Big Macs vendidos até agora no mundo somariam várias vezes a distância da Terra à lua.


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sábado, 8 de setembro de 2012

LIQUIDIFICADOR JETMASTER SUPERTURBO 3 VELOCIDADES







O fato é que John Boy Walton mal conseguia disfarçar seu entusiasmo com algumas das partes palpáveis de Tetê, aquela que sabia demais e não viu que o tempo passou, ainda que continuasse em ótima forma dentro do seu biquíni de bolinha amarelinha. Há tempos os comunistas deixaram de ser uma ameaça, de maneira que compra-se uma Rural Willys zero quilômetro nos revendedores autorizados com apenas alguns ordenados ganhos - contanto que esse ordenado seja de piloto da Panair, de delegado de polícia ou de funcionário de carreira do Banco do Brasil. O Rio, às três da tarde de sexta, está no mínimo duas doses de cuba-libre abaixo do que seria desejável, e confesso a você que não vejo inconveniência alguma em reservar uns cruzeiros novos para o casaco do Mappin. Se te interessar fala com a irmã do Pedro, o falsificador de carteirinhas, ela trabalha lá e te dará uma atenção especial. Eu posso jurar que vi um dos dedos do Redentor se mexendo. Por falar em dedos, não me parece crível a sua nota final do curso de datilografia. Minha velocidade é de 60 palavras por minuto e ninguém da turma, nem passando graxa nos mãos, conseguiria me alcançar em condições normais de temperatura e pressão. Mas deixa isso pra lá, vem pra cá, o que é que tem, até porque no momento um girassol da cor dos seus cabelos inventou de brotar do centro das terras de Jerônimo, o herói do sertão, para pousar nos ombros gelados do robô. Você sabe, aquele para sempre perdido no espaço e que passa todo dia antes do John Boy. Ok, cambio? Então boa noite, Mary Helen.

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 1 de setembro de 2012

O MELHOR DA FILA É ESPERAR POR ELA





Imagem: Thiago Cayres

Deu na "Folha": paulistano às vezes passa mais tempo na fila do que no programa que a originou. É tanto tempo que ela própria virou o passeio. As duas horas em média de fila no restaurante acabam sendo até mais cobiçadas e proveitosas que as próximas duas de esbórnia. Petisca-se e birita-se na faixa, paquera-se, twita-se, lê-se, medita-se, enfim...

Como dizem os americanos, no pain, no gain. No caso, sem espera não tem graça. Só que tem cada vez menos pain no processo, com os mimos e agrados que os donos da casa servem para amenizar a demora e o desconforto em pé. Digo em pé, mas até isso está mudando. Tem atração que oferece banquinho, mesa, cadeira e sabe-se lá mais o que para fidelizar a clientela.

E a fila, quem diria, de ritual enfadonho virou objeto de desejo.

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- E aí, faz muito tempo que tá aqui na fila?

- Umas três horinhas, mas passou tão rápido. Daqui a pouco já chega a minha vez de sair. Mas até que deu pra aproveitar bastante. Sábado que vem tem mais, se Deus quiser.

- Olha lá o espertinho, quer voltar pro fim da fila de novo... é o fim do mundo, só aqui no Brasil mesmo.

- Pois é, onde é que está a polícia nessas horas?


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- Moço, eu vou ser obrigada a entrar um pouco aí no restaurante pra comer alguma coisinha, mas não queria perder o meu lugar aqui. Tem jeito de você guardar a minha vaga? Volto rapidinho, juro...


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- Eu não sei onde é que a gente vai parar desse jeito.

- Porque tá falando isso?

- Tá vendo aquela outra fila, lá no outro quarteirão? Então, é a fila pra entrar na fila. Tem até cambista por lá. E vou te dizer uma coisa, deve ter fila de cambista antes dela...

- O garçon, o garçon, aproveita aí!

- Black Label, senhor?

- Pô, mas é só essa porcaria que você sabe servir? Deixa de miséria e me traz aí um Buchanan’s 18 anos Special Reserve com duas pedras de gelo.


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- Ai, meu Santo Expedito, já tá chegando a nossa vez.

- É a vida, bem. Nem tudo são flores, tem sempre a hora do sacrifício.

- Que pena, amor. Me sinto na fila pra câmara de gás num campo de concentração nazista. Não entro de jeito nenhum. Não, não e não!

- Já sei, vamos armar um cirquinho, inventar alguma coisa. Finge que tá tentando falar no hospital, fala que a sua tia está nas últimas, e vai deixando os outros passarem na frente. Vai, chora aí, arranca os cabelos que eu ajudo a explicar a história pro pessoal. E assim a gente vai enrolando até umas três da tarde, que é quando fecha o restaurante e distribuem as senhas pra entrar na fila amanhã de novo.


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“Vendo pela melhor oferta lugar na fila do Massimo, Famiglia Mancini, Figueira Rubaiyat e Dom. Tratar direto com proprietário”.

“Realize o sonho da fila própria. Financiamento em até 20 anos pela Caixa, sem comprovação de renda”.

“José Bianconte de Sousa Lemonzzito recebeu esta mensagem e encaminhou para seus amigos. Em menos de 24 horas, sua caixa postal estava abarrotada de senhas para filas as mais diversas. Não quebre esta corrente: passe adiante e veja o que acontece”.

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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