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domingo, 27 de outubro de 2019

GOOGLE EM CAMADAS




É chover no molhado afirmar que o Google sabe de tudo o que há sobre a face da terra. Agora, abaixo da face também. Centenas de metros abaixo.

Assim, o internauta conhece não apenas o que consta em determinada localização, mas também se informa sobre o que existia ali em tempos remotos.

Num verdadeiro trabalho de arqueologia, o gigante das buscas vem mapeando e escavando as muitas camadas de detritos e utensílios soterrados, que revelam o dia a dia de gerações passadas. 

Como exemplo, na mesma coordenada geográfica foram localizados, em camadas bem definidas cronologicamente:

- Dois peões de ludo nas cores azul e amarelo, estojo vazio de canetinhas Sylvapen e lata de doce de gergelim Halawi Istambul, com data de validade de 10-09-1978, ainda não aberta. Pulverizador de veneno para uso agrícola. Tubo catódico 20 polegadas TV Colorado RQ. Molhador de dedos com esponja umidificadora, para contagem de dinheiro. Recibo de quitação da TRU - Taxa Rodoviária Única.

- Espelho retrovisor esquerdo e pneu estepe de Lambretta LI ano 1965. Esfregão, Magiclick, ficha DDD Telerj, capa de selim de bicicleta com distintivo do Corinthians.

- Placa de madeira com a inscrição "Fazenda Beata Eduardina", de propriedade do Sr. Osório Dias de Arruda Filho. Uma garrucha sem gatilho e com o punho de madrepérola intacto. Retrato da primeira comunhão de Osorinho de Arruda Neto em companhia de onze outras crianças não identificadas, provavelmente colegas da classe de catecismo. Indícios de "chifre" feito por caneta tinteiro em um dos garotos da turma, posicionado no canto superior direito da citada fotografia. 

Quem pensava que o Google era o senhor da informação planetária, mal arranha a superfície da verdade. Pode ter certeza que o buraco é mais embaixo. 



Esta é uma obra de ficção.
© Direitos Reservados

sábado, 19 de outubro de 2019

BOOK DOS MORTOS



De maior rede social do mundo, o Facebook deverá se transformar no maior cemitério do planeta. A continuar a rápida debandada dos Milenials e companhia para redes sociais mais instantâneas e descoladas, como a chinesa Tik Tok, não demora muito e o  todo-poderoso mundinho azulado terá mais contas de mortos do que de vivos. 

O problema para o Markinho Zucker é tão grande que já virou tópico da Central de Ajuda do Face. Pode conferir: https://www.facebook.com/help/contact/651319028315841. Há instruções detalhadas para requerimento e manutenção de memoriais, sendo necessário inclusive que a família nomeie um administrador do jazigo. 

O fato dá margem para mil elucubrações. No Dia de Finados, por exemplo. Já parou para pensar? Pop-ups e banners pipocarão insistentemente pelas telas oferecendo buquês de flores virtuais para adornar os memoriais dos entes queridos. Arquitetos, decoradores e escultores se oferecerão para redesign dos túmulos de pixels. Profissionais de marketing certamente irão propor pacotes de estatísticas de page-views e infinitas outras métricas e gráficos comparativos, para mostrar quantos visitantes deram uma paradinha, rezaram um terço ou fizeram reverência ao defunto. 

Ao invés de modem de um lado do monitor e caixinha de Alexa do outro, duas grandes velas de sete dias em intenção do(s) morto(s) adornarão os desktops.

Dar fim aos restos materiais seria o de menos. Talvez bastasse embalar o presunto em saco plástico de lixo e despejar na lixeira, à espera do caminhão de limpeza pública. O importante mesmo seria o ritual virtual - que, não é de hoje, virou mundo real. É ali que se concentrariam as atenções. É ali que se trabalha, que se diverte, se namora, se casa, se vive e se morre. É ali que a vida - e a morte - acontecem.

Guardadas importantes diferenças entre um fenômeno e outro, o processo lembra o que demograficamente vem ocorrendo no Japão: basta mais uma geração para que a população do país se reduza à metade, ou mesmo desapareça. A explicação é simples: os novos casais nipônicos, quando têm filhos, decidem pelo herdeiro único. Isso já acabaria com 50% do plantel humano em apenas uma geração, já que de dois resultaria um. Só que o problema tende a ser ainda pior, pois os jovens por lá estão optando pelo celibato, satisfazendo-se solitariamente com bonecas e bonecos infláveis. Se a moda pega pra valer e vira padrão, em coisa de 50 anos não sobra um japonês para contar a história. Sem reprodução, a geração atual seria a derradeira. Sorry, japonezada. A ameaça é triste mas é real.

Mas, voltando ao Facebook, ou ao futuro book dos defuntos: o bom e velho Mark, que recusou centenas de bilhões de dólares para vender seu Facebook há dez anos, da noite para o dia  acordará com sua fortuna valendo um milésimo do que valia ainda ontem, pois um cemitério não é formado por consumidores. Um book de faces vivas vale muito mais do que um book de faces mortas.




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Imagem: https://www.materiaincognita.com.br


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

ROTAÇÃO INVERTIDA




Desde que o mundo é mundo, ele gira em torno do próprio eixo no sentido anti-horário. Não se sabe exatamente o que ou quem resolveu inverter a ordem das coisas, mas o fato é que um belo dia passamos a girar no sentido oposto. Digo "passamos" porque, queiramos ou não, estamos a bordo dessa nave louca e não há nada de prático que se possa fazer a respeito.

Com o planeta girando para o outro lado, o tempo, acostumado a andar para a frente, começou a ir para trás.

Voltava-se do trabalho antes de ir para ele.Transas começavam pelo orgasmo e terminavam nas preliminares. A pipoca pronta saindo do microondas era enfiada de volta ao forno, o saco estufado ia murchando até virar um montinho de milho, dali voltando à despensa de casa e dela retornando à prateleira do supermercado. 

Livros passaram a ser escritos do epílogo para o prólogo. Do Pós-Doc se pavimentava lentamente o caminho que culminaria no Jardim da Infância. A Terra passou a ser habitada por poupadores compulsórios, já que ao cuspir as notas nos saques os caixas eletrônicos as engoliam imediatamente de volta. E assim por diante, em tudo o que se possa imaginar a reação antecedia a ação, o avesso passava a ser a ordem natural das coisas.

Filmes, séries e novelas de TV eram um spoiler do início ao fim. As bitucas de cigarro arremessadas à rua saltavam de volta para a mão do fumante, tornavam a ser cigarros inteiros e integravam de novo o maço, que por sua vez acabavam no bar em que foi comprado.

Muitos estranharam a princípio. Houve protestos, barricadas, queimas de pneus, passeatas com bateção de panela. A oposição botava a culpa na situação pelo fenômeno, e vice-versa. Mas sob o efeito reverso, quando as multidões saíam às ruas, estas, por maiores que fossem, iam minguando até não sobrar ninguém. E o resultado de tudo era um retumbante fiasco.

É preciso que se diga que, antes da inversão rotacional, aconteceu o big breque. E haja ABS para segurar a pelota sem mandar pro espaço tudo que estava em cima (ainda que a pelota seja um disco, como teimam alguns). Sim, porque giramos a nada menos de 1.700 quilômetros por hora. E, planos ou esféricos, estamos girando.

O lado bom da catástrofe é que as pessoas rejuvenesciam dia após dia, trazendo à realidade a ficção de Benjamin Button - o cara do filme que nascia velhinho e com o passar dos anos ia virando criança. Ao mesmo tempo, cadáveres putrefatos iam se recompondo embaixo das lápides, eram puxados para cima pelo coveiro, trazidos ao velório, depois à Santa Casa e desta até suas casas, antes da hora fatal. Que nunca aconteceria. 




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