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sábado, 29 de julho de 2017

GRANDE HOTEL



Chego um pouco antes do horário estipulado para o check-in. Dou um tempo no bar do hotel, que tem um enorme “Hipotálamo’s” em neon azul piscando na porta.

Meia hora e duas taças de vinho depois, adentro o aconchegante salão do cerebelo. Sento-me num sofá de córtex e abro o jornal do dia, ainda intocado sobre a mesinha de centro. Avisto de lá o saguão lotado. Pelo menos umas 70 pessoas, vestindo túnicas verde-água, buscam alojamento na memória. Querem acomodação a todo custo, mas poucas são aceitas pela recepção.

- Temos que ser seletivos, infelizmente não há lugar para todos.
- Mas eu fiz reserva...

Na recepção também ficam as chaves dos acontecimentos, alinhadas para facilitar o acesso quando necessário.

Escadas em caracol fazem a comunicação entre três imensuráveis pavimentos. São dezenas de quartos, cada um deles contendo 365 dias vividos. Pelos corredores há quadros de pessoas e lugares. Uns estão impecavelmente conservados, a tinta ainda parece fresca. Outros têm carunchos nas molduras, as cores perderam o brilho e a tela está puída em vários pontos.

Chamo o elevador junto ao boy com o carrinho de malas. Ajeito a bagagem no armário da suíte e mergulho na banheira.
É boa e reconfortante a sensação de estar envolto em massa cinzenta, morna e homogênea. Desliza nesse momento pelos ombros toda a tuabuada do 8, enquanto o Chimarrão, meu primeiro cachorro boxer, surge refletido em preto e branco no espelho.

Pouco depois desço ao refeitório, onde todos alimentam vorazmente suas lembranças. Fatos aparentemente esquecidos estão dispostos em baixelas de prata e taças de cristal. Um garçom me serve águas passadas e entrega a comanda para rubricar.

A equipe de monitores se aproxima de minha mesa e anuncia a sessão de cinema às três, na glândula pituitária. Quinze imensos telões mostram imagens de webcams flagrando em tempo real o comportamento dos neurônios.

Sigo as placas indicativas para o salão de jogos. Um sujeito alto, uma espécie de crupiê trajando smoking, é quem dá as cartas. Está o tempo todo de costas, impossível ver o seu rosto.

Na piscina, um tobogã vai atirando um sem número de pessoas na água, uma após outra, em estonteante velocidade. O avô que só conheci por fotografia, a mãe aos 15, o pai aos 25, a vizinhança, amigos e inimigos, celebridades e gente vista unicamente de relance.

Anexa ao complexo aquático, a sala de massagem oferece uma nova técnica de relaxamento, à base de impulsos elétricos. Após exame médico, o hóspede aguarda a próxima sinapse numa espreguiçadeira revestida em tecido felpudo com o logo do Hotel.

Há um aviso em letras garrafais numa das paredes do deck, um pouco abaixo da bóia salva-vidas:
“Pedimos aos senhores hóspedes que não transitem entre o hemisfério esquerdo e o direito sem autorização prévia da gerência”.

Feito o tour de reconhecimento, me aninho ali, numa dobra de miolos rente à sauna a vapor. Viro de um lado para o outro, estico as pernas, puxo as cobertas e pego no sono. Ronco longa e ruidosamente, a ponto de colocar em alerta todo o sistema nervoso central.

© Direitos Reservados

sábado, 22 de julho de 2017

ALONELAND




É pouco provável que consigamos deter o processo de desertificação de Aloneland. Não a geográfica, mas a desertificação humana mesmo. 

Devagarinho vamos tendo a nítida confirmação de que há, em nosso povo, uma espécie de predestinação ao não-acasalamento. O que não significa um comportamento assexuado, mas um conformismo em lidar com a libido sem a necessidade de outrem.

A estonteante oferta de pornografia na internet, para grande parte das pessoas, é um convite irrecusável à autossuficiência. Com tantas e cada vez mais realistas variações de bem-bom virtual, para quê complicações de relacionamento, DRs até tarde da noite, novas responsabilidades e contas a pagar, papel passado em cartório, sogras, cunhados e congêneres?

É nessa conveniência que está o maior perigo. Um casal precisa ter dois filhos para que a população permaneça basicamente a mesma. Isso é aritmético e incontestável. Se entretanto, esse suposto casal gere apenas uma criança, bastará uma única geração para que o número de habitantes do país caia pela metade. Caso o casal em questão opte por não deixar descendentes, onde haviam duas pessoas por domicílio passará a haver nenhuma, a partir do óbito dos cônjuges. 

A prosseguir, no ritmo em que se observa hoje, a opção pelo celibato e a indiferença à conjunção carnal, estima-se que em no máximo 60 anos não restará um único alonelandino sobre o nosso território. 

Ciente da ameaça, o governo já implementa ações preventivas para evitar o pior. 

Primeira medida: toda as formas de acesso à internet em Aloneland serão interrompidas às 19 horas, nos sete dias da semana. 

Segunda: a iluminação pública será cortada e o policiamento afastado em lugares ermos e propícios à intimidade.

Os clubes e demais locais licenciados para a prática de nudismo receberão incentivos fiscais dos municípios, além de autorização especial para que possam funcionar 24 horas durante todo o ano - inclusive no inverno, recebendo empréstimos estatais subsidiados para a compra de aquecedores. 

Outros expedientes emergenciais já estão em curso, sem o conhecimento da população e com o aval dos mais altos escalões governamentais. São procedimentos eticamente reprováveis, mas de alta eficácia para combater a míngua obstétrica que vivenciamos. Dentre eles, o que vem apresentando resultados mais significativos é a sabotagem nas fábricas de preservativos, com a incisão proposital de microfuros nos produtos. Já as pílulas anticoncepcionais de farinha e açúcar, fabricadas até recentemente com o conluio e o apoio logístico da nossa indústria farmacêutica, teve sua produção descontinuada devido ao vazamento da prática para a imprensa local e internacional. 

Uma alternativa em estudo consiste na abertura de fronteiras para imigrantes de países com o problema oposto ao nosso, ou seja, de alta densidade demográfica e crescimento populacional em progressão geométrica. A ideia é que esse contigente, trazendo consigo um histórico de maior assiduidade sexual, procrie com os nativos e colabore para minorar o déficit de nascimentos. 




© Direitos Reservados



sábado, 15 de julho de 2017

SEM PIZZA? SEM CHANCE!




Existe pouquíssima coisa melhor que pizza, embora ninguém possa garantir que essas pouquíssimas coisas sejam, de fato, melhores que ela. Mas, se existirem mesmo, seriam tão poucas que caberiam no espaço de meia pizza brotinho. Com folga.

Não havendo pizza, no mínimo três quartos dos motoqueiros também não existiriam ou estariam fazendo outra coisa na vida, pois não teriam o que entregar. 

Esse nosso mundinho, que já não é lá o melhor lugar da via láctea pra se viver, ficaria insuportável. Até o universo corporativo seria afetado. Os gráficos-pizza do powepoint precisariam se chamar gráficos-queijo, gráficos-torta ou coisa parecida. As esticadas de expediente, madrugada adentro, nas agências de propaganda e redações de jornal, resultariam compreensivelmente improdutivas sem a consoladora perspectiva da uma redonda crocante, de preferência com borda de catupiry ou cheddar, para tirar o estômago das costas e saudar o sol nascente. 

A vida noturna de Sampa seria no mínimo um terço menor, ou três fatias, supondo como analogia uma pizza de dez pedaços. Estatísticas do ano de 2013 dão conta de um total de 15.000 restaurantes e 4.500 pizzarias na capital paulista. Vai gostar de pizza assim lá na Itália, ô meu...

Pizzas coroam as grandes conquistas, arrematam com perfeição os momentos mais esperados, são o ápice da satisfação humana. Exagero? De jeito nenhum. O camarada se mata de estudar para ser um bom aluno e entrar numa faculdade bacana. Faz a faculdade bacana para buscar um bom emprego. Consegue, com o bom emprego, a realização na forma de um carro moderninho, de uma parceira interessante, de uma casa com projeto de arquiteto. Dentro da casa, o quarto. No quarto, a cama. E depois daquela coisa boa que se faz na cama, o que vem na sequência? Pizza. Para repor as energias e cogitar uma segunda rodada. Não necessariamente de pizza. 

Mas, se tivesse mesmo que inexistir a partir de amanhã, que eu tenha a chance de guardar hoje uma última fatia na geladeira para degustá-la fria e com a mussarela plastificada, regada a um generoso fio de azeite. Ô, tentação deliciosa. Até abaixo de zero a redonda não tem rival.  

É preciso reconhecer que nem tudo, entretanto, estaria perdido num mundo desgraçadamente desprovido dessa maravilha. As maracutaias de Brasília, por exemplo, não mais acabariam nela. O que seria espetacular. 





© Direitos Reservados
Imagem: ebpembalagens.com.br

sábado, 1 de julho de 2017

A HORA E A VEZ DO PAMONHEIRO




Olha aí, olha aí freguesia
São as deliciosas pamonhas de Piracicaba
Pamonhas fresquinhas, pamonhas caseiras
É o puro creme do milho verde
Vamos chegando, vamos levando
Temos curau e pamonhas
Venha provar essa delícia
Pamonhas, pamonhas, pamonhas

Mais de 50 anos aguentando essa maldita fala em looping, com esse insuportável locutor, das sete da manhã às oito da noite. Na safra do milho e na entressafra. No começo, eu dirigia o carro - um Gordini já bem velho - e não tinha locutor nem gravação. Eu mesmo anunciava a pamonha. Ia com o vidro aberto e berrando feito louco no megafone. Voltava pra casa com a mão direita cheia de bolhas, de tanto ficar manobrando a direção com um braço só. Já o braço esquerdo retornava da labuta todo seco e descascado, porque o sol só batia nele.

Pamonhas fresquinhas, pamonhas caseiras
Vamos chegando, vamos levando
Venha provar essa delícia

Depois veio a fita-cassete. Play direto no tape TKR com amplificador Tojo, virando a fita a cada meia hora. Em cima do Corcel 2, uma caixa acústica gigantesca com a madeira infestada de cupins. Como nunca tive comissão nas pamonhas vendidas, rezava pra passar reto em frente às casas e ninguém fizesse sinal pra parar o carro e comprar a maldição. 

São as deliciosas pamonhas de Piracicaba
É o puro creme do milho verde
Temos curau e pamonhas 
Pamonhas, pamonhas, pamonhas

Foram bem uns 20 anos desse jeito. Custou pra chegar o CD e depois o pen-drive, que é o que uso até hoje. Completo 84 mês que vem e firme no volante, já que a aposentadoria não compra nem meio tacho de curau. 

Olha aí, olha aí freguesia
Pamonhas fresquinhas, pamonhas caseiras
Vamos chegando, vamos levando
Venha provar essa delícia

Antes, era só eu e mais um concorrente rodando na cidade. Agora tem uns quinze. A venda diminuiu muito e meu patrão já avisou que, se continuar assim, vai ter que me dispensar. Com essa história de computador e internet, qualquer um baixa a insuportável gravação, enche o porta-mala de pamonha e começa a vender por aí. A pamonha mesmo é feita sabe-se lá em que lugar e de que jeito. Vem de tudo quanto é canto, menos de Piracicaba. 

São as deliciosas pamonhas de Piracicaba
É o puro creme do milho verde
Temos curau e pamonhas 
Pamonhas, pamonhas, pamonhas

Chega! Pra mim deu, joguei a vida fora ralando de sol a sol, pra ganhar o quê com isso? Cadê o outro pen-drive... ih, será que esqueci em casa? Ah, não, tá aqui. Dane-se, agora vou pro tudo ou nada. Toma essa, patrão desgraçado! Dessa vez vou rodar bem devagarinho, pra cidade inteira escutar...

OLHA AÍ, OLHA AÍ FREGUESIA
SÃO AS HORROROSAS PAMONHAS DE PIRACICABA
PAMONHAS ENVENENADAS, PAMONHAS MORTÍFERAS
É O PURO CREME DO MILHO AZEDO
VAMOS COMENDO, VAMOS MORRENDO
TEMOS CURAU E PAMONHAS
VENHA PROVAR ESSA IMUNDÍCIA
PAMONHAS, PAMONHAS, PAMONHAS



© Direitos Reservados
Imagem: pt.petitchef.com
Esta é uma obra de ficção. As LEGÍTIMAS pamonhas de Piracicaba são ótimas!