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sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

O ROBÔ VAI ROUBAR



Pasme, porque a coisa é séria e assustadora. Um pedreiro, daqueles de mão cheia, que trabalha rápido e bem, consegue assentar até 600 tijolos ao longo de oito horas de serviço. Isso em condições ideais de temperatura e pressão, contando que o sujeito irá pular da cama disposto e louco pra botar a mão na argamassa. O robô, já concebido e no aquecimento para roubar seu lugar, assenta POR HORA cerca de 1500 tijolos - milimetricamente aprumados, sem desperdício de material, sem cantoria de pagode, sem parar para começar outro serviço enquanto não termina o que está fazendo ou para chavecar a mulherada que passa em frente à obra, com o manjado "ô, lá em casa!". Mais: sem salário, sem nunca ficar doente, sem FGTS, sem INSS, sem décimo-terceiro, sem greve, sem panetone e sidra de fim de ano. O máximo que vai exigir é uma ou outra borrifada de WD40 de vez em quando. Esse é um exemplo, para ficar só na construção civil. Juro que não quero estragar o seu Natal, nem o espírito de harmonia e fraternidade reinante, mas o poder de destruição da Inteligência Artificial promete não deixar pedra sobre pedra. Vai virar tudo do avesso e passar a Makita em milhões de pescoços.

Tem jeito de evitar isso? Não. Tem jeito de evitar as consequências disso? Também não. Então, fazer o quê? Tentar deixar menos árdua a remoção dos escombros e a reinvenção da roda. Fóruns de discussão e congressos mundo afora debatem a possibilidade de uma giga-tributação sobre os robôs, como forma de inibir sua utilização desenfreada e o resultante desemprego em massa. Aí então teríamos robôs em oferta abundante e a preços módicos, mas não teríamos empresários dispostos a arcar com o ônus de utilizá-los. Logicamente, a produtividade e a diminuição de custos prometidas pela Inteligência Artificial, que trariam uma brutal redução nos preços de tudo, ficariam pra depois. Afinal, de que adianta o mundo a preço de banana, se não tiver ninguém empregado e recebendo direitinho para limpar as prateleiras?

Pessimistas mais radicais profetizam que a automoção e o autosserviço tomarão conta de toda a cadeia econômica, e que funções burocráticas e mecânicas serão rapidamente varridas dos comércios e das indústrias. Até mesmo contadores, engenheiros, nutricionistas, analistas de laboratório e adestradores de foca estariam ameaçados de extinção para darem lugar ao fantástico poder dos algoritmos. Tudo bem, novas funções surgirão, mas com um potencial de empregabilidade infinitamente inferior ao número de humanos tornados obsoletos da noite para o dia. Não é difícil imaginar o aparecimento de fábricas moderníssimas, cujas inteligências artificiais produzirão artefatos de Inteligência Artificial para controlar robôs artificialmente inteligentes que executarão miríades de tarefas antes a cargo do pessoal de carne e osso. E o Nosso Senhor lá em cima assistirá a tudo isso com um olhar complacente e um sorriso de canto de boca, como quem já sabe desde o início dos tempos qual será o final dessa novela. Que Ele nos inspire e nos abençoe.




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sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

IMPOSTO CELESTIAL




Aconteceu ontem, às 15h39 pelo horário de Brasília. E eu, como funcionário de carreira da Polícia de Fronteira da Nação Tupiniquim - PFNT - jamais publicaria esse relato se ele não espelhasse rigorosamente a verdade. 

Por uma manobra involuntária e desastrada do controle em terra, um dos nossos drones de vigilância atravessou uma espessa camada de nuvens e adentrou os domínios de uma colônia de desencarnados. Uma das hélices do aparelho rasgou a túnica de um anjo e depenou sua asa direita, o que provocou um alvoroço como não se via desde os tempos de Zebedeu. Milhares de outros anjos de diferentes escalões do paraíso foram cercando o drone, pálidos de espanto com a geringonça, como se presenciassem uma aparição de Nossa Senhora de Fátima. Foi daí que tivemos uma vaga ideia da imensa "extensão territorial" do pós-morte, ainda sem legislação que a regulamente e faça dela uma fonte de recursos para a União, os Estados e os municípios.

Assim, sugiro a criação, em regime de urgência urgentíssima, do ICEL - Imposto Celestial. Uma vez comprovada a vida após a emissão da Certidão de Óbito, como bem demonstrou o episódio do drone, o cidadão retoma automaticamente seus deveres de contribuinte, pagando pelo uso do espaço aéreo que lhe couber nos planos superiores. 

Não é porque morreu que se adquire o direito de não contribuir mais. Assim é fácil, certo? Basta o indivíduo se matar para não pagar mais imposto. Uma covardia com o erário público, quase um crime de omissão aos deveres cívicos e tributários. 

Se a moda pega, estamos falidos. A esfera pública e o mundo corporativo também. Outro dia mesmo saiu uma notícia dizendo que, em 2098, o número de perfis de mortos no Facebook será maior do que o de vivos. E aí, como fica? Será que a maior rede social do planeta deixará de existir por causa disso? Os mortos serão maioria, e o espertíssimo Mister Zucker irá rebolar mas encontrará um jeito de fazer dinheiro com o pessoal que não posta mais nada. 

Mas, voltando à ideia do novo imposto, há um único problema a ser contornado para regulamentar sua cobrança. Como ainda não há meios de instituirmos uma moeda oficial do Céu, por meio da qual o desencarnado recolheria o que deve aos cofres da nação, os herdeiros do mesmo ficariam responsáveis pelo pagamento, em terra e em reais, do ICEL em nome do finado - cobrando dele depois, se for o caso, da forma como julgarem mais conveniente. 




Esta é uma obra de ficção

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sábado, 9 de dezembro de 2017

POR FIM, A SALVO



Do tijolo maciço, também chamado de tijolinho, surgiu a ideia. O dia passava sem pressa nem novidades, quando reparou, numa construção perto de casa, que os tijolos possuíam gravados o nome da olaria que os produziu. Ali estava o que há tempos andava buscando. A obra perene, construída agora para consagração futura.

Cada tijolo conteria uma frase, cuja continuidade estaria no tijolo seguinte da fiada. Cada capítulo corresponderia a um cômodo da casa. As janelas e portas, com seus vãos abertos na alvenaria, seriam as divisões em parágrafos, os respiros de leitura ou reviravoltas da trama. 

Deixaria instruções detalhadas, para quando chegasse a hora, sobre onde começar a escavação e resgatar com segurança o original, numa sequência lógica iniciada pelo prefácio - nos baldrames de alicerce, até chegar ao epílogo - no sótão. A remoção do reboco teria de ser feita com técnica e cuidado de arqueólogo, para que nenhuma palavra se perdesse e comprometesse o sentido da sentença. Sim, estava decidido. Escreveria o livro-casa. Ou construiria a casa-livro? 

Uma obra meticulosamente pensada, de conteúdo e forma irrepreensíveis e atemporais, já que não permitiria uma edição revista e atualizada. Assim teria de ser, caso contrário nem começaria a empreitada. Concluído o manuscrito em papel, na sua versão perfeita e definitiva, contrataria a produção cerâmica necessária. Teria de escrever sobre argila fresca, o que limitaria a produção a algumas dezenas de tijolos por dia. Trocaria a digitação no computador pelo trabalho artesanal na olaria. 

O papel esfarelar e apodrecer, o notebook enguiçar, as nuvens de dados explodirem: tudo o que pudesse acontecer não atingiria a obra final e perfeita de sua vida, a salvo para sempre, a menos que houvesse demolição ou terremoto. 

Começou. Mas em pouco tempo percebeu que o que julgava definitivo há três ou quatro dias, carecia na verdade de alguns reparos estilísticos, substituições de palavras, eliminações de advérbios e outros acertos. Isso implicava na destruição, a golpes de picareta, de metros e mais metros já rebocados e secos. E em pontos diversos da construção, dependendo do trecho que queria alterar. O cronograma da obra, previsto inicialmente para dois anos e meio, acabou se estendendo por dezessete anos e onze meses.

Quando, entretanto, chegou ao sótão, percebeu que o livro ainda estava inconclusivo. Por mais que aumentasse o tamanho desse último cômodo, mais o ponto final da trama se distanciava. Até que o sótão acabou por se tornar mais alto que a própria casa, criando um verdadeiro monstrengo arquitetônico. A solução seria erguer um "puxadinho", que acomodasse os capítulos excedentes e não programados no projeto original. Concluído o "puxadinho", ele partiu para uma edícula, depois para uma área de lazer com piscina, sauna, churrasqueira e forno para pizza. Um total de 1.348 metros quadrados de área construída, que armazenam em suas paredes um livro de 427 páginas. No momento, a obra aguarda liberação do "habite-se" na Prefeitura Municipal. 





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sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

PRATIC CHRISTMAS



O Menino Jesus de poliestireno injetado, cheio de rebarbas plásticas no rostinho angelical. Parecem cicatrizes de um parto traumático. A etiqueta de preço ainda resiste na nuca do neném, onde se vê perto da orelha esquerda o vírgula noventa e nove da oferta.

A árvore já vem montada, com bolas inquebráveis em lugares fixos. Nada de ficar espetando aquela galharia no caule do pinheirinho sintético, e depois ficar prendendo os adereços todos com ganchos de nylon. Um trabalho do cão, que iria te roubar umas boas horas de facebook e snapchat. Ao fim do Dia de Reis você pode fechá-la como um guarda-chuva, para ocupar um espacinho de nada no armário embutido.

Cartõezinhos dobráveis com estrelinhas cintilantes para preencher com nomes dos participantes do amigo secreto. Rolo de 50 metros para empresas e de 1,5 metro para famílias. Desconto adicional de 7% nos fardos de 20 unidades, para grandes grupos multinacionais ou famílias numerosas. Frete a combinar. 

Etiquetas com mensagem “Topa trocar?” para quem tirou inimigo no amigo secreto. Como a saída desse artigo é enorme, estão disponíveis no varejo em contêineres de duas toneladas. Pedidos em quantidades maiores, apenas sob encomenda.

Rena natalina falante, funciona com uma minúscula bateria de níquel-cádmio de longa autonomia. O espevitado quadrúpede galopa sobre a mesa da ceia, repetindo a surrada infâmia: É pavê ou pacumê? É pavê ou pacumê? É pavê ou pacumê? É pavê ou pacumê? 

Papai Noel de marshmallow, tradição das vovós, receita original do século 19. Composição: estabilizante mono e diglicerídeo, gordura vegetal hidrogenada, espessante carragena, citrato de sódio, aromatizante, flavorizante P4s903, antioxidante, modificador de viscosidade e textura, umectante, ácido tartárico e edulcorantes classes III e IV. Contém glúten. Grátis, 35 metros de pisca-pisca Merry Xing já desembaraçados, para decoração em área interna ou externa. 



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Imagem: www.qrcodematrix.com/christmas-kitsch