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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

PERGUNTAS, PERGUNTAS E MAIS PERGUNTAS


Preencher formulário é tarefa invariavelmente entediante, dispendiosa e de finalidade discutível. Às vezes o ritual de preenchimento beira o insuportável, e o castigado leitor há de me dar razão. É quando somos obrigados, por exemplo, a garranchar aqueles malditos papéis de imigração nas viagens internacionais. Duvido que seja de menos de 90% o universo dos que deixam a tarefa para os últimos dez minutos de voo, duvido que a caneta (emprestada) não falhe bem na hora de assinar o bagulho e duvido que você e o sujeito do seu lado não usem como apoio a bandejinha de refeições (dependendo da companhia aérea, a mesma bandejinha) – o que coroa o desinteressante procedimento com uma nojenta mancha de gordura no formulário.

Mas o que mais irrita mesmo nem é tanto a falta de paciência e o excesso de má vontade nas respostas, mas a natureza astuciosa das perguntas. Não raro deparo-me, logo abaixo dos campos de nome, sobrenome, RG, tipo sanguíneo, coloração usual das fezes e se tive ou não pé chato em algum momento da vida, com questionamentos que tirariam até a Madre Teresa de Calcutá do sério. Tipo: a frequência com que aparo as unhas, a densidade por cm2 de pelos no antebraço e, ainda no âmbito dos membros superiores, a pior das indiscrições que um perguntador profissional poderia cometer: quantos dedos eu possuo em cada uma das mãos, e se todos eles constam como meus dependentes nas seis últimas declarações do imposto de renda.

A falta de cerimônia em vasculhar a vida alheia inclui perguntas escabrosas sobre segredos de alcova, como o material do puxador de cortina do meu quarto e se as cerdas de minha escova de dentes são macias, médias ou duras. Admito o fornecimento de informações úteis que não caracterizem violação de privacidade, coisas de menor importância e sobre as quais usualmente não se faz sigilo, como renda mensal bruta, posição sexual favorita, tamanho do pênis em repouso, em quem votei para presidente da república e outras amenidades de igual quilate.

Entretanto, a saia fica justa quando surgem especulações que devassam a vida do cidadão de maneira ostensiva e desrespeitosa. Dou exemplos. Se o botijão de gás da minha cozinha veste ou não capa florida; há quanto tempo ando afastado do confessionário e quais os motivos que me levaram a tal distanciamento; se me importaria em eventualmente substituir por H3O a costumeira H2O armazenada na moringa do criado-mudo em caso de racionamento de guerra ou outra circunstância emergencial; se tenho o hábito de separar o arroz do feijão no prato ou se disponho um sobre o outro, a fim de abrir mais espaço à mistura; dos sobrinhos do Pato Donald, qual o meu predileto e quantas pessoas de nome Onofre possuo na família; se porventura já me ocorreu a ideia de testemunhar o dia a dia de uma prisão turca; se faço ou não parte do rol de esquisitos que folheiam o jornal de trás para frente às terças e quintas, da frente para trás às quartas e sextas, aleatoriamente nos fins de semana e nunca às segundas-feiras; se a abolição do trema causou transtornos mensuráveis em minha rotina habitual e se a revelação de que o caqui engorda me fez consumir mais ou menos carambolas que a minha média diária; se o uso excessivo de ponto e vírgula prejudica ou não a fluência da leitura, e em que circunstância o seu emprego incomoda menos: nos clássicos da literatura, nas bulas de remédio ou nos folhetos de missa.


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sábado, 22 de janeiro de 2011

SEM AÇÃO


Ilustração: Thiago Cayres



Com o fim do viva-voz, os negócios na BM&F passam a ser integralmente realizados pelo chamado GTS (Global Trading System) – um sistema eletrônico que as corretoras acessam de seus escritórios e dispensa a negociação feita pelos operadores em pregão.
Último Segundo - IG



Lá se vão dois anos desde que o meu valor de mercado despencou a zero, da noite pro dia, igual ao crash de 29. Mas ainda acordo no meio da noite com a orelha encostada no ombro, como se estivesse falando em três telefones ao mesmo tempo. Os músculos tensos, as mãos afrouxando um nó de gravata imaginário, gritando para ninguém: “Eu compro!”, “Eu vendo!”, “Fechado!”. Esgoelo até ficar quase rouco e ser acordado pela patroa, essa coitada que só não me largou ainda por causa da igreja. E vai um tempo até que eu desabe do saguão da BM&F para essa desgraça dessa cama, que já nem se dão ao trabalho de arrumar mais porque não saio mesmo dela, com a síndrome do pânico empapando de suor frio esse meu pijama listrado.

Agora o telefone toca de verdade. Um outro ex-operador, dos áureos tempos da ciranda financeira, me convidando para uma pescaria. Eu digo que sim, mas pesca me lembra rio, que me lembra Vale do Rio Doce, que me lembra o que nem preciso mencionar pra não começar a suar frio de novo. Desligo, faço de conta que caiu a ligação.

Maldita internet, malditos Home Brokers. Agora qualquer Zé Arruela administra, deitado na cama como eu, a sua carteirinha de ações. Se acham muito espertos e quebram logo a cara, lógico, porque não têm o jogo de cintura e a astúcia do papai aqui. Sou do tempo da Bovespa pré-painel eletrônico. Tinha uma lousa enorme e o pessoal, com giz e apagador, ia atualizando as cotações na munheca. Se contar ninguém acredita. E a grana pingava direitinho, tão constante e farta que eu nunca me preocupei pensando que um dia a fonte pudesse secar. Torrava o que vinha na farra regada a Chivas. Ganhava na corretagem e reinvestia boa parte na própria bolsa, comprando na baixa e vendendo na alta. Às vezes jogava tudo no papel mais azarão, e nunca dei com os burros n’água.

Volto aos jornais do dia, esparramados no lençol. Laboratório farmacêutico procurando voluntários pra teste de remédio contra a síndrome do pânico. Interessa. Vou lá conferir, pagam bem e ficam monitorando as melhoras e os efeitos colaterais. Serão dez anos fazendo parte de um grupo de controle, e tenho que assinar uns papéis isentando o laboratório em caso de óbito ou danos irreversíveis a essa carcaça velha. Tudo bem, não tenho nada a perder. Mas, antes, vou dar uma de operador Home Broker desconfiado e checar na bolsa a saúde das ações da tal empresa. Vai que... nossa, nem pensar. Olha o suor frio de novo.



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sábado, 15 de janeiro de 2011

INSTANTÂNEOS CONTEMPORÂNEOS


Não faz muito tempo, fotografar custava caro e dava trabalho. Exigia empenho e planejamento. Tinha o filme de celulóide. A revelação do filme. A ampliação da foto. A ocasião tinha que valer o investimento de tempo e dinheiro. Hoje, a câmera na mão não exige necessariamente ideia na cabeça. A foto nada diz, mas pelo custo zero não se espera dela que diga sempre alguma coisa. Se o negativo era o registro eterno, o JPEG não a contento é deletado sem piedade. Fotografemos, pois.

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Olha só essa aqui. Em macro superclose, parecem até dois montes Fuji siameses sem neve. Na realidade são dois formigueiros, um ativo e outro que acabava de ser exterminado com um bule de café fervente entornado pela Paulinha, em mais um costumeiro exercício de sadismo contra o reino animal.

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Nesta outra vemos um copo com a água pela metade deixado em cima da mesa de centro pela minha madrinha, quando de sua visita à nossa casa para parabenizar-me pelo trigésimo sexto ano de Crisma. Reparem no copo a marca de batom, cambiando entre o bordô e o marrom claro, deixado pela tiazinha querida. Resquícios de uma tarde memorável onde, além da água quente da torneira, tivemos a ventura de partilhar um mingau de maisena polvilhado com canela, cuja foto segue na próxima página do slide show.

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Ah, essa é uma das minhas favoritas. Enfim, os cinco dedos do pé esquerdo reunidos. Todos juntinhos em instantâneo para a posteridade! Em sentido horário: o dedão, o que fica ao lado do dedão, o que fica ao lado do que fica ao lado do dedão e na sequência os dois menorzinhos. A pequena marca cor de ferrugem no calcanhar não é micose, e sim um fiapo de meia que se meteu de bicão junto aos “rapazes” na hora do clique. Aquele negócio redondo, que aparece desfocado ao fundo, é o potinho de ração da Flofy.

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Continuando com a série “família reunida”, perfilei os últimos oito tacos que se soltaram do chão da sala. Assim, soltinhos, eles parecem mais descontraídos – quebrando um pouco a rígida simetria que os torna tão iguaizinhos e sem personalidade quando assentados.

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Flagrante da geladeira da casa da Anna Bárbara, em 23-05-07, às 22h31. Da esquerda para a direita: leite de soja em embalagem longa vida, Becel sem sal, pires com asa de frango, meio tablete de fermento. Espremidos na prateleira de baixo: penca de bananas, farofa de bacon e passas, pernil na marinada e 11 Bavárias que, segundo ela, estão lá desde a passagem de ano de 2002.

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Foto “antes e depois”. Antes da sessão diária de esteira e depois do vômito causado pelo esforço aeróbico excessivo, que revolveu as entranhas e de lá desalojou a feijoada completa com creme de abacate consumidos anteontem.

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Na sequência, o vômito propriamente dito, brilhantemente capturado pelas lentes de uma Nikon com zoom óptico 12x. Além de todos os pertences do porco e do abacate envolto por alguns traços de bílis, enxergamos nitidamente ao fundo uma salsinha do então irresistível vinagrete.



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sábado, 8 de janeiro de 2011

TUDO SERÁ COMO SEMPRE


Sucedeu que ele acordou com aquela ideia na cabeça: fazer tudo diferente do que estava acostumado. Tirar a vidinha do piloto automático. Lembrou daquele famoso pressuposto da programação neurolinguística, que aprendeu num curso rápido sobre o assunto: SE VOCÊ CONTINUAR A FAZER O QUE VEM FAZENDO, VAI CONTINUAR A OBTER O QUE VEM OBTENDO. A afirmação era óbvia, tão óbvia que parecia estúpido levá-la a sério. Até que caiu a ficha. E ele resolveu que aquele era o dia da guinada.

Começou na cama mesmo. Absteve-se da interminável sessão de bocejos e espreguiçamentos e de um salto pôs-se de pé. Fez trinta flexões, bem mais que as cinco de costume. Inverteu a ordem dos remédios - primeiro o da pressão, depois o complexo B.

Escovou os dentes começando pelos do fundo e terminando pelos da frente, exatamente como nunca tinha feito. Não se barbeou. Vestiu um terno verde e uma gravata prateada. Sentou-se à mesa, na cadeira da outra ponta. Ao invés de colocar na xícara bastante leite e um pouquinho de café, pôs muito café e quase nada de leite. Despediu-se da esposa com um beijo no rosto, e não na testa.

Quando saiu já ia fazendo o caminho de costume, mas a tempo pegou outro rumo.
Ligou o rádio do carro. Tirou da CBN e sintonizou num programa sertanejo. Parou no semáforo e dessa vez comprou as balinhas que o garoto ofereceu. Passou em frente à igreja e não fez o sinal da cruz. Estacionou o carro na vaga do chefe (ele nunca estava mesmo). Subiu pela escada, não ia se repetir tomando o elevador. Decidiu que não responderia nenhum e-mail, por isso nem abriu sua caixa de mensagens. Trocou o mouse pad, limpou o monitor com álcool, mudou o protetor de tela e as cores do Windows.

Na hora do almoço, aproveitou para não almoçar. Foi ao cabeleireiro. Abriu a Veja no lugar da Caras. Folheou de trás pra frente. Pediu para o cabeleireiro repartir o cabelo do outro lado. Retornando ao trabalho, "matou" uma tia velha e disse que precisava ir ao velório em Barbacena. Foi à sauna, depois ao cinema. Nenhum drama de consciência ao fazer isso em plena terça. Voltou pra casa duas horas mais cedo que o costume. No horário de sempre se recusara a voltar. Antes, comprou rosas para a esposa. Abriu a porta e flagrou a mulher com o seu chefe, que calçava os seus chinelos e bebia o seu conhaque. Os dois ajoelhados no chão do quarto, levando chicotadas do vizinho do 206, travestido de mulher-gato.

Não fez ruído nenhum. Do mesmo jeito que entrou, saiu. Ia deixar tudo como estava. Caso contrário perderia a mulher, teria que arrumar outro emprego e sairia nos jornais como assassino de traveco. Voltou para a empresa. As flores deixou com a Laura, recepcionista. Com um cartãozinho discreto, confirmando o motel para depois das seis e meia. Como sempre.


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sábado, 1 de janeiro de 2011

PRONUNCIAMENTO DUÑESCO DE ANO NOVO


“Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Melhor o meio termo, ou seja, a lama. A do Dalai ou a de Araxá, que tem poderes comprovadamente rejuvenescedores para a pele e reabilita em oito meses a função do apêndice”. Ante olhares pasmos de alguns poucos criadores de bichos-da-seda e de quatorze mochileiros que por ali colhiam cogumelos, assim iniciou sua preleção o Venerável Duña, em aparição relâmpago ocorrida ontem, por volta das nove da noite, no cume de uma montanha mantiqueira.

Teólogos e teóricos das mais díspares correntes esotéricas concluem que o inusitado pronunciamento revela um Duña menos extremado em suas exortações, um líder messiânico mais disposto a valorizar o equilíbrio e a ponderação em detrimento do fundamentalismo inflexível de algumas seitas – que caracterizaram inclusive a sua própria Ordem em outros tempos.

“A segunda década do século 21 que ora iniciamos será certamente marcada pela concórdia entre os homens. E isso não é sandice profética ou retórica de ocasião. Tomem como exemplo a questão percentual do dízimo. Um fiel que, por liberalidade, queira destinar mensalmente à nossa seita doze por cento ao invés dos dez regulamentares, não merece ser discriminado pelos demais seguidores. Até porque essa participação mais generosa ao erário sagrado não implica necessariamente na aquisição de um quinhão maior no latifúndio celeste. Há que se ter tolerância e compreensão aos que voluntariamente optam por oferecer mais”, disse o sacerdote supremo, enquanto de suas têmporas pululavam raios ionizantes de cor violeta.

Ajoelhando-se, o Iluminado prosseguiu:

“Fazei com ambas as mãos a caridade que deveis praticar. Ajudai os coxos a atravessarem a rua utilizando ambas, degusteis o desjejum, o almoço e a janta usando ambas, digitai em vossos laptops empregando indistintamente ambas e, para que a discórdia não se instale entre ambas, que ambas depositem oferendas igualmente generosas sempre que se proceda à passagem da sacolinha nos cultos sagrados.

Caso não seja do tipo meia-cura, separai o queijo da goiabada como quem separa o joio do trigo, pelo fato de ser impossível o convívio pacífico entre a velha e boa goiabada de tacho à moda mineira e queijos dos tipos parmesão, gruyère, prato, fresco, provolone, gorgonzola e todos os demais produzidos com leite de vaca, ovelha ou cabra.

Lembrai que os doze mil Oráculos, que peregrinam em trabalho missionário pelo planeta, são a representação carnal do Excelso Ser Duñesco, sendo por ele investidos de plena autoridade para dirimir desavenças entre torcidas e arbitrar soberanamente sobre demais litígios – sejam eles de natureza desportiva, culinária, sexual, filosófica ou fitoterápica. Contai com seus sapientes conselhos ao longo de todo o ano de 2011.

Orai e vigiai para que a dama de incisivos proeminentes, que doravante vos governará, mantenha os subsídios federais à produção e importação de velas, incensos, indumentárias e demais paramentos necessários aos nossos rituais litúrgicos.

E a vós, que aqui presenciais esta minha aparição, sugiro que deixeis de criar bichos-da-seda e de colher cogumelos, pois tais afazeres não vos levarão a parte alguma. Muito menos à salvação eterna”.




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