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sábado, 29 de maio de 2010

ÁTOMOS DESEMBESTADOS


Podem tachar-me de saudosista, mas existem coisas que o chamado mundo moderno só fez involuir ao invés de aprimorar. E escrevo isso com as mãos trêmulas, os olhos saltando das órbitas e a justificada ira dos que se sentem logrados e cansados de levar gato por lebre. Não é a primeira vez que isso acontece no semestre, nem provavelmente será a última até que chegue a primavera por esses meridianos. Mas desta feita as consequências beiraram o intolerável.

Explico. Ainda anteontem, no meu costumeiro caminho de volta do trabalho para casa, apeei meu pangaré na venda do Agenorzinho Ulceroso a fim de repor uns gêneros de primeira necessidade em minha modesta e desfalcada despensa. Coisa trivial: três quartos de um queijo meia-cura, um palmo e dois dedos de fumo de rolo, grampos de cabelo para a patroa e um punhadinho de átomos para distrair a gurizada.

Já em casa, e desembrulhados os pacotes na mesa da copa, vi que estava tudo nos conformes com os grampos, o queijo e o fumo. Mas havia algo de muito estranho com os átomos. Pasmem: os elétrons de um dos ditos cujos giravam ao redor do núcleo em sentido anti-horário, ou seja, em absoluta não-conformidade com os dados técnicos informados no manual do fabricante. Ora, na escola rural aprendi que um elétron que gira ao contrário é energeticamente desequilibrado e pode provocar uma balbúrdia sem precedentes num lar pacato e cristão como o meu, com crucifixo na parede da sala e uma pá de santos espalhados pelos cômodos. Pois foi o que aconteceu. Até meu cachorro pôs-se a piruetar feito doido em volta do bidê ao estranhar (com toda razão que um ser irracional pode ser capaz de demonstrar) aquela aberração zombando da ordem do universo. Não foi nada fácil assimilar o engodo. Mal comparando, é a mesma coisa que comprar um teco de Molibdênio com peso atômico 94,95 e te enfiarem no embornal uma lasca de Zircônio cheirando a Césio estragado. Não obstante os nêutrons e prótons do referido átomo apresentarem boa aparência, elétrons enguiçados são pragas mais daninhas que pulgões no algodoeiro. Ô trem ruim.

O fato é que, minutos após aberto o saquinho pardo do empório, a roça toda entrou em colapso convulsivo. Os mal-formados átomos foram se multiplicando em outros ainda mais aleijados estruturalmente, e o desequilíbrio reinante dentro de casa logo tomou conta do terreirão, da tulha, do retiro das novilhas e das hortas suspensas de alface – não necessariamente nesta sequência. Os desastres se sucediam igual uma manta de crochê que se desmancha com a lã enroscada na pata de um marreco bêbado. A coisa foi indo até que o redemoinho de anomalias chegasse ao poço artesiano, quando a mutação atômica mergulhou na água e a transformou em H18O, uma geleca gosmenta que perfurava o fígado de quem tentasse matar a sede com ela.

Disse à meia voz aos meus botões: “Com mil batatas doces de quermesse, se não podemos confiar no bom funcionamento de um prosaico átomo à venda em qualquer birosca de arrabalde, que dirá quando precisarmos de uma molécula inteira?”
E olhe que não são raras as ocasiões em que precisamos de moléculas em bom estado e sempre à mão para qualquer eventualidade, como nas viagens ao litoral catarinense, ao alvejar roupa no tanque e mesmo nos estouros de boiada, onde são largamente empregadas para recolher pacificamente o gado ao seu confinamento.

Ah, meu pai, que saudade dos ioiôs de Neônio e os bilboquês de Silício. Tempo em que por aqui ainda se amarrava cachorro com linguiça.

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sábado, 22 de maio de 2010

ZEUS ASSIM O QUIS


(Pequeno exercício de escrita automática)

Zeus, num raro acesso de generosidade, resolveu dar permissão. Sim, o barbudão de pouca prosa e nenhum riso, imagine. Licença concedida, abrimos a golpe de faca o compartimento estanque, guardado a segredo de cofre e venerado feito sudário. De cara um fusca 74 nos esperava além de longe, desde meados de nunca. E esperava inerte qual relógio da matriz velha, com os dois ponteiros soldados pelo zinabre dos anos, aqueles da antitristeza das balas de coco geladas, da bola nova cheirando a couro e com a etiqueta de preço, do chenile do sofá na sala imensa de estar e ser, e estando lá, permanecer até o findar da tarde e o chegar do sono. A vizinhança toda em seu rodar de carrossel, natais se anunciando desde outubro com seus piscas, torresmos defumando vinte alqueires de sertões. E você lá, branca das parafinas de crisma e de primeira comunhão, crescendo a cinco centímetros por hora e tomada do desejo de correr países outros de fronteiras bambas, montada em bicho de zanga - belo e premiado produtor de estrume azul, uma coisa quase que da estimação do mundo de tão lindo que era. Aproveitamos a chance enquanto Zeus deixava. E Zeus deixou mais um pouquinho, porém não mais que o estritamente necessário.

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sábado, 15 de maio de 2010

SALVE-SE QUEM PUDER


- Pronto, Centro de Valorização da Vida do Salva-Vidas – CVVSV. Por favor, seja breve pois nossas linhas estão congestionadas.
- Tô sem vidas pra salvar. Antes tivesse cem vidas pra salvar, tá me entendendo?
- Entendo sim. E como entendo. Você é o décimo sexto que liga hoje. Ontem foram trinta e cinco.
- Ninguém tá precisando ter a vida salva, moça. Mar calmo, banhistas felizes com Sundown 45 besuntado até no cofrinho, nenhum desavisado se debatendo na rebentação. Um tédio. Gosto de viver perigosamente, pra isso escolhi essa vida de salvar a vida dos outros.
- Relaxe, pense que poderia ser pior. E se tivesse que resgatar dez vovôs gordos e sem preparo físico se afogando ao mesmo tempo? Daqueles que levam melancia, torta de sardinha e papagaio pra praia, já pensou?
- Mas pelo menos eu me sentiria útil, ainda que conseguisse salvar um gordo só. Bem ou mal estaria honrando o salário no fim do mês. O duro é ficar tomando sol o dia todo naquela cadeira em cima da escada. Me sinto um usurpador, um verme sem serventia, um chupim do orçamento da prefeitura. A senhora, como contribuinte, não se sente explorada? Por favor, me ajude, faça alguma coisa.
- Meu amigo, por acaso a culpa é sua se está tudo bem? Você saberá cumprir o seu dever, caso aconteça alguma coisa. Por que você não faz um curso de aperfeiçoamento, um módulo mais avançado pra sua função? Sei lá, ou então abra-se a novas possibilidades de relacionamento... uma respiração boca-a-boca com alguém atraente do sexo oposto, sabe como é, salva-vidas também é gente.
- Sei, sei. Vem ver as coisas que me aparecem pra salvar, vem ver. Isso quando aparece, né. A praia aqui é de periferia, minha filha. É a maior relação dentadura por banhista da América Latina.
- Você também podia pedir transferência pra algum lugar com mar mais agitado, tipo aquelas praias de surfistas em Saquarema.
- Mais alguma alternativa?
- Temos sugerido com frequência a pintura de paisagens marinhas em aquarela. O único problema é o salva-vidas se distrair demais com o hobby e não prestar atenção ao serviço.
- Chega, essa foi sua última chance. Não me convenceu, o buraco no meu caso é mais embaixo.
- Pelo amor de Deus, mude de ideia. Se não por você, pelo menos por mim.
- Como assim?
- Nosso índice de reversão das tentativas de suicídio nos últimos seis meses é de apenas 4,9%. Caso não consigamos melhorar esta estatística, nossa equipe toda será demitida. Você não está mesmo querendo salvar vidas? Pois então, sua oportunidade é agora. Salve a nossa, moço!
- Jura que é verdade? Não está dizendo isso só pra dar uma levantada na minha autoestima? Este argumento está me cheirando a script decorado aí da equipe de atendimento.
- Onde você está no momento?
- Estou aqui, no meu posto de observação, falando do celular. Mas com um cano de revólver enfiado no outro ouvido. Tem até um pessoal lá embaixo olhando desconfiado pra mim.
- Calma, segura a onda.
- Bom, isso é tudo o que eu queria, se houvesse alguma pra segurar.
- Moço, olhe pra trás. Guardas-noturnos, ex-boxeadores, enroladores de bobinas de transformador, mulheres barbadas de circo e outros suicidas contumazes bem que gostariam de estar no seu lugar, só aí, de frente pro mar... considere-se um privilegiado.
- Poupe o seu latim para um caso menos perdido que o meu. Além do mais, meu crédito está acabando.
- Me dá seu número que eu ligo!
- Vai dar caixa postal.


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sábado, 8 de maio de 2010

FILHO DA MÃE


Começando do começo: sou eu a mãe daquele filho da mãe. E chamam-no assim de forma caluniosa e sem motivo aparente – embora o fato de ser filho da mãe, por si só, implique na constatação óbvia dele possuir uma genitora, coisa que qualquer ser humano tem ou teve um dia.

Mas vocês sabem muito bem do que estou falando, em se tratando do meu famoso e difamado filho, que começou no futebol de várzea e hoje honra os quadros da FIFA. Ao longo do tempo regulamentar o filho da mãe acaba virando filho de outra coisa, conforme os ânimos na arquibancada se acirram e a cerveja faça o seu maldito efeito.

Não é possível que essa injustiça se perpetue impunemente. É preciso que entendam que o que ele faz ou deixa de fazer dentro daquelas linhas brancas é problema dele, e não culpa minha. Meu filho é maior, vacinado e age de acordo com suas convicções, abalizadas logicamente pelas regras do esporte bretão. Só que existe uma coisa chamada julgamento subjetivo, e para isso inventaram o árbitro. Sua decisão é soberana, e se esta deve ser respeitada, por mais controversa que seja, porque não também a reputação de sua mãe, que nada tem a ver com a história e nem em campo está?

É engraçado e revoltante. O irmão caçula dele também é juiz, só que de Direito. Nunca, ao anunciar uma sentença, alguém no tribunal se levantou para, aos berros, questionar a conduta moral e sexual desta que vos fala. Até porque, se o fizesse, seria metido imediatamente atrás das grades por desacato à autoridade. Mas o destino, com seus caprichos insondáveis, quis que eu fosse ao mesmo tempo meretriz e mãe de meritíssimo. Vai entender.

Domingo, dia 9, tem jogo. E ouvi dizer que o meu filho, em minha homenagem, combinou com a emissora de TV que vai cantar antes da partida aquela musiquinha que fala do “avental todo sujo de ovo”. Já estou até vendo, vai ser mais ovo em cima de mim. Chega. Pelo amor de suas mãezinhas, trégua!

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sábado, 1 de maio de 2010

SERAFIM E QUERUBIM


- É, Querubim. Esse negócio de aquecimento global é o assunto da vez lá embaixo. Agora mesmo passou uma onda de rádio de raspão na minha nuvem, falando disso de novo.
- Ainda se o problema fosse só deles, mas sobra pra gente também. O calorão bate primeiro aqui, no nosso costado. E costas de anjo, convenhamos, são bem mais sensíveis. Lá na Terra até vale a pena ter as costas quentes, mas em âmbito celeste não tem serventia nenhuma.
- Um bloqueador com fator de proteção solar de 350 seria o céu pra gente.
- Ô. E nem precisa tanto, viu. Um bom guarda-sol já ajudava. É engraçado, Serafim, a gente sofrendo aqui e aqueles terráqueos imbecis com uma ideia totalmente deturpada a nosso respeito. Quando eles dizem que estão nas nuvens, é porque atingiram o auge da felicidade. Só a gente pra saber que a nossa vida não é tão molinha assim.
- É que eles não viram o estado de nossas túnicas com fumaceira do vulcão da Islândia. Lá é fácil de resolver, eles cancelam os voos e pronto. Mas aqui não tem como escapar.
- E nada de chover pra tirar o grosso da sujeira. Essa é outra desvantagem de viver em cima, e não embaixo das nuvens. Você bem que podia usar o seu poder de influência e fazer alguma coisa pra tirar a gente dessa. Vamos lá, Serafinzão, mexa os pauzinhos...
- Realmente, nós Serafins impomos respeito e conquistamos merecida admiração. Tanto que tem muita gente que se chama Serafim lá na Terra. Já Querubim, não me lembro de ter nascido ninguém com este nome.
- Tudo bem, mas nem por isso todos os seus xarás são anjinhos. Conheço muito Serafim traficante de droga, sequestrador, estelionatário...
- Veja lá como fala. Na hierarquia dos anjos, você está abaixo da minha autoridade. Comporte-se.
- Que é, vai me prender? Serafim que seja delegado pra mim é novidade. Mas tudo bem, xerife, não abro mais minha boca.
- É bom mesmo, porque para o meu gosto e pelo seu pouco tempo aqui, você anda pondo muito as asinhas de fora. Se continuar vai ter que rezar dez mil Pai-Nossos e vinte mil Ave-Marias.
- Isso pra anjo não é castigo.
- Mas você ainda não é um anjo no sentido pleno da palavra. Se fosse, não cometeria o pecado de falar comigo desse jeito. Fique sabendo que perto da minha ficha de bons serviços prestados você não passa de um noviço, um reles calouro nos domínios de São Pedro.
- Dá um desconto, chefe. O senhor tá acostumado, deve ter uns quatro ou cinco séculos montando guarda no pedaço. O problema é que é cansativo ficar deitado eternamente nesse berço esplêndido de flocos. É claro que com o que é bom a gente sempre acostuma, mas às vezes dá um tédio que não tem jeito. Tirando as nossas aulas de harpa às terças e quintas, não sobra mais nada pra fazer de prático.
- Prático tem que ser o pessoal lá do vale de lágrimas. Nossa missão é outra, temos que ficar nos louvores e na vibração positiva. Entenda uma coisa, meu questionador Querubim: esse seu desejo de sentir-se útil é herança dos círculos inferiores e típico de quem ainda não tem o domínio da função. Com o tempo você se adapta e passa a tomar gosto pela adoração e pela vida contemplativa.
- Pois é, mas ainda se houvesse algum programa de integração, tipo “Conheça seu companheiro de trabalho”. Ou de descanso, no nosso caso... sei lá, mais anjos pra trocar uma ideia, entende, fazer novas amizades.
- Minha companhia não basta?
- Espera aí, não foi isso que eu quis dizer.
- Contenha a sua insubordinação, ou terei que relatar seu caso a outras instâncias.
- Calma, Serafa, calma...
- Calma coisa nenhuma. Providenciarei agora mesmo um relatório bem detalhado. Aí sim, quero ver chover na sua nuvem.

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