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domingo, 30 de junho de 2019

HOJE, À 1H40, SEM FALTA




Todos os dias, precisamente à 1h40 da madrugada, todos os retratos em preto e branco do mundo ganham cor e vida própria. Desde que não haja, claro, nenhum humano vivo presenciando o fenômeno. 

É uma concessão dada aos mortos retratados, uma espécie de alforria temporária da prisão da moldura e da fria imobilidade do papel fotográfico.

Aos poucos, vão abandonando paredes, álbuns de recordações, mesas, consoles, criados-mudos e prateleiras onde dormem, esquecidos ou bem cuidados, com o pó espanado diariamente. 

Não ocorrendo nada que force os encarnados de determinada casa a permanecerem alertas durante a madrugada, a brincadeira dura em torno de três horas. Em geral sorridentes e dispostos, antes de saírem mundo afora eles se alongam e bocejam, ajeitam seus óculos, apertam os nós de suas gravatas, retocam sua maquiagem e penteiam seus cabelos.

Então saem como os pequeninos da "Terra de Gigantes". Sendo foto de família, se confraternizam e se abraçam antes de partirem para o passeio costumeiro pela casa. Quando casais, muitas vezes se beijam e transam loucamente por ali mesmo, escorados na moldura do porta-retrato. Há os que, no tour doméstico, observam a si próprios com a carne de agora - pois grande parte dos retratados continuam vivos, embora mais velhos. Entram nos quartos onde, devido ao adiantado da hora, normalmente dormem. Seguem nas pontas dos pés até se enfiarem nas cobertas que envolvem as versões gigantescas de seus corpos.

Nessas três preciosas horas, nada pode dar errado. Nenhum pequeno incidente deve resultar na desgraça de serem vistos pela face colorida e animada do mundo. 

Enquanto se divertem, ou tentam se divertir, permanecem nos álbuns, paredes e estantes os papéis fotográficos em branco - casas vazias aguardando a volta dos perpétuos moradores.




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sábado, 22 de junho de 2019

TERAPIA DE VIDAS FUTURAS




É de praxe que todo analista tenha, ele mesmo, um colega que o analise para manter em condições razoáveis sua saúde mental e emocional. Foi numa dessas sessões profiláticas que o Doutor Zózimo relatou o absurdo.

- Estou com um problema gigantesco no consultório. 

- Grande novidade. Estranho seria se não tivesse, eu tenho vários aqui no meu. Chora aí.

- Uma paciente, já tem uns seis meses que está comigo. Quando eu boto ela em regressão, vai direto pro futuro ao invés de voltar. Te juro pela minha mãe, sério mesmo. 

- Explica melhor isso, por favor.

- Terapeuticamente, faz todo sentido o paciente voltar ao que já viveu, para tentar sanar o que tá lá atrás, mal resolvido. Independente de se acreditar ou não em reencarnação. Agora, ir daqui pra frente, não tem serventia nenhuma. Pelo menos para mim, que tenho como abacaxi  pra descascar a pessoa que está aqui e agora no meu divã.

- Discordo. Você ouvindo e anotando tudo o que ela disser que está vivendo lá na frente, vai te ajudar muito a corrigir rotas na conduta terapêutica que você adota hoje. Imagina ter acesso agora ao resultado do seu trabalho. Isso é maravilhoso, pensa bem!

- Deixa ver se eu entendi o seu raciocínio. Se a minha analisada parecer feliz lá no futuro, eu não mexo no time que está ganhando. Mas se estiver com uma pedra pendurada no pescoço, pronta pra se jogar das Cataratas do Niágara, eu posso pelo menos procurar impedir que isso aconteça. 

- Bem por aí. Ao invés de regressão a vidas passadas, progressão a vidas futuras. Olha que maravilha...

- Não brinca com coisa séria.

- Ninguém tá brincando, colega. Bem que eu queria ter na mão um paciente assim. Que experiência fantástica. E o que rola nesses relatos futuristas?

- É cada coisa que nem te conto. Foguetinho nas costas movido a urânio, bundas perfeitas, ereções perpétuas, jantares e almoços em pílulas, jornadas de duas horas de trabalho por dia, quatro ou cinco robôs dentro de casa, corações de aço inox...

- Tá de sacanagem...

- Tsc tsc. Tô não. Mas parece que tudo isso não dá conta do vazio na vida das pessoas, sabe? O mundo virou uma Noruega, um imenso Canadá, qualquer Zé Mané tem tudo. Aliás, não existe mais Zé Mané e ninguém precisa batalhar pra conseguir porcaria nenhuma. O Estado provê. O dia a dia é previsível demais, sem sal, um tédio. 

- E ela continua em tratamento, em 2.120 ou sei lá quando? Digo isso porque, com coração de inox e tudo mais, é provável que vocês dois ainda estejam em plena forma.

- Não sei. Até tenho curiosidade de conduzir a paciente por aí, pra ver se descubro alguma coisa. Mas ao mesmo tempo dá medo, né? Tô sabendo lidar, não. Se me descubro morto, mesmo que em 2.120, não vai ser propriamente uma experiência inspiradora. 

- Já eu não tenho medo. Se puder, pede pra sua paciente me mandar notícias minhas.

- Então, como te disse, não me interessa saber o que me espera nem na próxima meia hora. Mas de você, lá no futuro, eu já descobri alguma coisa.

- Conta!

- Nem sob tortura. Eu respeito o sigilo profissional. 




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domingo, 9 de junho de 2019

DIÁRIO DO NÃO VIVIDO



Se fosse só registrar em um diário o que aconteceu, para que conseguisse me recordar depois, seria fácil. O problema é que, ao ver o registro dos fatos, aquilo não passa de um amontoado de palavras sem sentido ou correspondência com a realidade. Com a minha realidade, pelo menos. A intenção de anotar para lembrar se perde.

Seria preciso conceber algo que me lembrasse de lembrar que o que escrevi no dia anterior realmente aconteceu, por menos que me recorde de ter vivido o relatado. Ocorre que, conforme vou relatando, ao mesmo tempo já vou esquecendo o que escrevi na linha imediatamente anterior. A perda da memória faz apagar não só as recordações mais antigas, mas some igualmente com o minuto que acabou de passar.

A inclusão da data, com o dia do mês e da semana, também de nada adianta. Isso porque ao ler, por exemplo, a anotação "Quarta-feira, 23 de setembro de 1987", me pergunto o que vem a ser "quarta-feira", "23", "setembro" e "1987". Ainda que, no meio desse vácuo, às vezes ocorram alguns instantes de lucidez, onde recordo que "23" é um número que sucede o 22 e precede o 24, que "setembro" é um mês do calendário e que "1987" é o ano seguinte ao fiasco mundial da passagem do Cometa Halley pelos arredores do planeta. Esse momento, em que tudo se esclarece e ganha significado, dura coisa de 15 segundos ou menos, até que a mente volte a cair no branco anterior, no vácuo permanecendo pelas duas ou três horas seguintes.

Esses três parágrafos foram redigidos em um lapso de lucidez, e sei de antemão que daqui a pouco não significarão mais nada. Ajude-me, se puder.






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domingo, 2 de junho de 2019

DEU PAU NA IMPRESSÃO!




Embora ainda em fase de pesquisas, a próxima novidade tecnológica da impressão 3D promete revolucionar o que entendemos como vida e seu até agora inexorável processo de nascimento, desenvolvimento e decadência: uma impressora que, a partir da amostra de DNA, reconstituirá entes queridos e animais de estimação já falecidos. 

Se concretizada a novidade, prevê-se que cada vivente traga de volta pelo menos quatro defuntos mais chegados e dois ou três gatos e/ou cachorros. Como consequência, cemitérios serão extintos e em seu lugar poderão ser erguidos milhares de empreendimentos imobiliários.

Já conhecedoras das novidades no horizonte, marcas de renome da construção civil realizam testes com impressoras de enormes proporções, capazes de erguer um prédio comercial moderno e sustentável em apenas dois dias e meio. O maior empecilho até o momento é que, para imprimir um prédio de 20 andares, por exemplo, a impressora precisa ser dez vezes maior que a obra a ser impressa - o que significa a necessidade de desapropriação de bairros inteiros para acomodar a geringonça, inviabilizando o empreendimento. E mais: ainda que houvesse área suficiente para estacionar a impressora junto ao canteiro de obras, como fazer para transportar esse colosso até lá?

Ciente da limitação, o governo norte-americano acionou a NASA para que avalie a possibilidade de estabelecer, em Júpiter, um polo avançado de fabricação de impressoras 3D de grande porte e livres da ação da gravidade, de tal maneira que possam flutuar acima da obra, da fábrica de automóveis ou seja lá o que for que estejam construindo ou produzindo. 

Ainda no que diz respeito aos setores da construção e da produção industrial, chefes de estado e analistas econômicos profetizam um paradoxo de difícil solução. O processo de ressuscitação de mortos acarretará um impressionante aumento demográfico, e o uso extensivo das impressoras como substituta do ser humano trará um surto de desemprego como jamais visto. Em decorrência, morrerão de fome tanto os desempregados quanto os mortos ressuscitados - que baterão a caçuleta pela segunda vez. E os cemitérios, recém-desativados, terão de ser reinaugurados ou implantados em outros lugares, uma vez que a área onde se encontravam já estará ocupada pelos empreendimentos. Como se vê, um problema maior que as gigantescas impressoras que a NASA estará produzindo em Júpiter.




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