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sábado, 27 de outubro de 2018

URNAS ELETRÔNICAS - VERSÃO 2.0



Na iminência do segundo turno das eleições 2018, todas as atenções se voltam para o dia de amanhã, 28 de outubro. Ou quase todas: um grupo de três deputados do chamado Centrão vem se reunindo diariamente em Brasília para elaborar um projeto, por eles tido como revolucionário, de regionalização das urnas eletrônicas para as eleições de 2022.

A proposta se fundamenta na possibilidade de personalizar o burocrático retratinho que aparece no visor da urna, na hora de confirmar se é aquele mesmo o processado na justiça a quem você vai entregar seu voto. 

Isso faz todo o sentido em um país continental como o nosso, segundo o autor do projeto. De acordo com ele, um sujeito de paletó, gravata, abotoadura e sapato de pelica está para o agreste nordestino da mesma forma que um canguru está para o Cazaquistão. A ideia é ambientar o postulante ao Senado, à Câmara ou à Presidência a cada realidade específica.

Assim como nos comícios o candidato assume, natural ou postiçamente, um certo "sotaque" da localidade onde está armado o palanque, é justo e coerente que a mesma empatia possa se estabelecer também na cabina indevassável.

O projeto, em fase final de elaboração, prevê que determinado candidato presidencial, por exemplo, apareça na urna sorvendo uma fumegante cuia de chimarrão no sul, aboletado em um jegue na Paraíba, comendo biscoito Globo em Ipanema e quem sabe até como bonecão de Olinda - desde que a fisionomia do mamulengo seja suficientemente semelhante à do político, para que não haja o risco do voto ir para outra pessoa...

Em resumo, cairia a obrigatoriedade do plano fechado no rosto, podendo a foto do candidato ter toda a ambientação necessária à maior identificação deste com o eleitor da região. E mais: a customização do retrato poderia se dar de cidade em cidade, e não apenas de região em região. Ou seja, em Nhambiquara do Leste, o postulante ao Planalto poderia inserir, nas urnas eletrônicas do município, sua selfie com Véio Bié, o rei do espetinho de gato. Em Santo Inácio do Livramento, por sua vez, é quase certo que todos os concorrentes se estapeariam por uma foto abraçado à parteira Teófila, que trouxe ao mundo mais de metade da população local. 

Muitos parlamentares sustentam que a proposta é demagógica e alienante, e que sua aprovação no Congresso iria desgastar a imagem da classe política junto ao eleitorado mais crítico dos grandes centros. Já outros deputados e senadores, estes em maior número, não só se declaram entusiastas da ideia como propõem também a possibilidade de mensagens de vídeo dos candidatos em lugar da estática fotografia, numa derradeira tentativa de convencer – literalmente na boca da urna - o eleitor ainda indeciso. 



Esta é uma obra de ficção
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sábado, 20 de outubro de 2018

EM QUE POSSO AJUDÁ-LO?



- O senhor vai me desculpar, mas sem o carimbo do Moreira não tem jeito.
- E o Moreira não está?
- Não.
- E o carimbo dele?
- O senhor me respeite. Olha o desacato ao servidor...
- Vai me dizer que o Moreira leva o carimbo quando sai da repartição? Olha só, tem um carrossel lotado de carimbos aí do seu lado. Será que o do Moreira não está aí, não?...
- Bom, enquanto isso vamos vendo os outros documentos. Trouxe o DIRC atualizado da Paresp?
- DIRC da Paresp... DIRC da Paresp... Tá na mão. E quitado antes do vencimento.
- Só que tem uma coisa... esse adendo da minuta ainda não foi averbado na Junta.
- Não entendi.
- O Benê do guichê 11 vai explicar direitinho pro senhor. Mas já vou lhe adiantando que tem que voltar até o 8º Cartório e reconhecer de novo a firma do antigo proprietário. Essa aqui não vale mais. Então, é melhor fazer o seguinte: antes de ir pro guichê 11 o senhor vai até o terceiro andar e fala com a Wilma. Saindo do elevador, primeira à esquerda, primeira à direita, de novo à direita e o senhor vai dar de cara com uma salinha verde, que tem um bebedouro quebrado.
- Sei, debaixo de um calendário da Seicho-No-Iê. Estive lá na semana passada.
- Isso. É só pegar a senha e aguardar ser chamado.


II

- Eu vou lhe dar um protocolo da requisição. O senhor leva até o Denorf e solicita a emissão do Nada Consta da Delegacia Fazendária. Não demora muito, não.


III

- Bons antecedentes, ok... Certidão Negativa de Débito, ok... habite-se, registro do inventário, 2 fotos 3x4. Mas eu preciso também do requerimento da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido e os últimos cinco boletos do ISSQN, comprovando o recolhimento. É que antes da homologação do prontuário, o DPTS pede o formal de partilha em duas vias. Até julho do ano passado podia fazer por procuração, só que agora o cartório está exigindo a presença da pessoa.
- Mas ele mora em Muzambinho...


IV

- Aparentemente só estão faltando o número do PIS Pasep do inventariante e uma cópia frente e verso autenticada do ITBI pra poder dar baixa. Caso contrário não é possível correr com a papelada.
- Mas quando eu vim aqui da outra vez aquele senhor de óculos ali me disse que uma segunda via da...
- Não, não. De jeito maneira. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. A petição tá certa, mas precisa constar uma ressalva prevendo o usufruto da viúva.
- E essa instrução normativa para unificação de cadastro?
- Isso aí pode levar embora porque não vai servir pra nada. O senhor me providencie um termo de responsabilidade, com assinatura de três testemunhas. É só disso que eu preciso, trazendo até segunda-feira pra mim tá bom. Agora, veja bem, isso aqui é a minha parte, entendeu? No guichê 14 vão informar ao senhor como dar entrada no pedido pra saber em qual jurisdição do CASP esse DERC deve ser encaminhado.


V

- Meu amigo, eu não estou autorizado a emitir o TCF sem a apresentação do canhoto do D.O.R. Além disso, olha só, tá faltando a rubrica do perito técnico. Outro dia mesmo apareceu um cidadão aqui com um caso parecido com o seu.
- Bom, resumindo...
- Só na Secretaria, das quinze e trinta às dezesseis e quarenta. E traga também um atestado de saúde.
- Ah, isso com certeza não precisa. Se eu não morri até agora correndo atrás disso tudo, é sinal que a minha saúde tá ótima.
Estava enganado, coitado. Cinco minutos depois, enquanto corria ofegante do guichê 7 para o 18, teve um mal súbito e morreu. O sub-escrevente adjunto adiantou-se e proclamou:
- Ninguém faz nada, ninguém toca no morto enquanto não sair o Alvará de Liberação do corpo. Mas já vou avisando que o Edmilson, que cuida disso, está de licença-prêmio e só volta daqui a seis dias.



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sábado, 13 de outubro de 2018

CACHORRO COM LINGUIÇA




Ninguém aguenta mais tanta carestia, onde é que esse mundo vai parar? O preço da linguiça está pela hora da morte, e daqui a pouco não teremos mais como amarrar nossos cachorros. A guia da Lilica, que chegou a ter 15 gomos no tempo das vacas gordas, diminuiu para 12, depois para 10 e agora está com 7 míseros nacos de linguiça toscana. Não demora muito e terei que andar curvado quando for levá-la para passear!

Aí, no futuro, sei que vocês usam essa expressão "do tempo em que se amarrava cachorro com linguiça" quando querem se referir a uma época de bonança e fartura sem fim, em que todo mundo confiava em todo mundo, em que não havia maldade entre as pessoas, em que tudo era bom, fresquinho e a preço de banana - inclusive a banana, que no futuro eu estou sabendo que custa os olhos da cara. 

Mas, por favor, não diminuam o nosso infortúnio, dizendo que aqui nesse retrógrado passado era tudo maravilhoso. Não era. Quer dizer, não é, porque eu ainda vivo aqui e falo com conhecimento de causa. Fora que o uso veterinário desse embutido seboso pode trazer funestas consequências para a saúde dos animais. Loucos por linguiça, não são poucos os casos de canjiquinha, ou neurocisticercose, acometendo os cães quando da ingestão da carne de porco crua. 

Na eventualidade do cão ser bem comportado e indiferente à linguiça, ele pode, quando preso, sofrer ataque de vira-latas famintos, que se regalam com a iguaria ao mesmo tempo em que libertam o totozinho para os perigos da rua.

Não é exagero dizer que o hábito, tido como nostálgico por vocês, é na realidade causa de transtornos sociais para nós. Assim, peço que parem de afirmar asneiras, chamando de bom e saudoso um contexto tão problemático e cheio de perigos, tanto para os cachorros quanto para seus donos. Aproveito para deixar sugestões que substituam a expressão por outras com o mesmo sentido, porém menos mentirosas: "Bons tempos em que só a pedra era lascada", por exemplo.  



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