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sábado, 30 de abril de 2011

CASAMENTO IRREAL





O organista da Abadia entrou em pânico. Taquicardia. Suores frios nas mãos. Como que tomado de repentino e incontornável Mal de Parkinson, encarou cego de nervosismo o teclado do grande órgão de tubos e esbarrou numa nota errada logo no primeiro acorde. Desconcentra, para, não consegue mais mover um dedo. O cerimonial do Royal Wedding havia desconsiderado um plano B, tamanha a notoriedade e a fleuma do instrumentista, cuja frieza rivalizava com a British Royal Guard. Não consta dos anais de Westminster que o homem tivesse sequer titubeado antes, em 27 anos de ofícios religiosos. Foram meses de preparo com o coral e o regente, ele sabia todo o repertório de cor e por segurança ainda tinha as partituras de cada parte da cerimônia à sua frente, para a eventualidade de um improvável branco. Dois bilhões de telespectadores esperam o desenrolar do impasse. Muvuca em torno do órgão. Massagem nos ombros, água com açúcar, gravata afrouxada, calmante sublingual e nada. O estado do sujeito é de pré-apoplexia. A realeza se entreolha com cara de “what is happening?”.

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O rígido protocolo inglês pode prever e administrar tudo, menos o que é por natureza imprevisível e inadministrável: o tempo em Londres. Um vento noroeste, mais insidioso que todos os tabloides ingleses juntos, entrou traiçoeiramente sabe-se lá por que porta da Abadia e armou um mini-ciclone embaixo da túnica de um dos sub-auxiliares de celebrante. Ainda que de baixa graduação na hierarquia de Canterbury, o dito cujo estava posicionado frontalmente à câmera naquele momento. A versão sacra da cena de Marilyn Monroe no bueiro do metrô revelou que o religioso guarnecia as partes baixas com uma calcinha amarela de cetim, repleta de detalhes de strass e lantejoulas na região da virilha, adornada por coraçõezinhos com as letras W&K. A realeza se entreolha com cara de “what is happening?”.


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O cocheiro Edward estava com a bexiga mais cheia que a cara do Príncipe Harry em sábado de balada. Mas a consciência do dever tinha de ser mais forte que a necessidade fisiológica, por menor que fosse a velocidade daquele maldito coche 1902 State Landau e por maior que fosse a distância entre ele e uma das 39 privadas dos serviçais de Buckingham. Como nem tudo depende do esforço e da boa vontade humana, um dos cavalos da carruagem real perde a ferradura. O animal torce a pata e amontoa bem no meio do Mall que leva ao lar, doce lar de Elizabeth. Kate desmancha o sorriso, ajeita a tiara emprestada pela rainha e retoma a interminável sequência de adeusinhos à multidão, mesmo com o trole empacado. William desce e troca um parecer com o chefe dos guarda-costas. O cavalo acidentado é desatrelado dos arreios. O príncipe coça a careca de padre. Nem todo o ouro da Casa de Windsor compraria um fim rápido e digno para o embaraço. Um outro animal assume o posto, mas é marrom e não branco. Esteticamente comprometido, o cortejo ainda assim seguiria em frente rumo ao palácio, não fosse um sósia do Primeiro Ministro se postar à frente do triste séquito com uma metralhadora de brinquedo na mão e uma foto de Lady Di com um bigode feito com caneta esferográfica na outra. A realeza se entreolha com cara de “what is happening?”.


© Direitos Reservados










Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
Blogs:
www.consoantesreticentes.blogspot.com (contos e crônicas)
www.letraeme.blogspot.com (portfólio)
Email: msguassabia@yahoo.com.br

sábado, 23 de abril de 2011

ROBERTO CARLOS 70




ILUSTRAÇÃO: THIAGO CAYRES












Digamos que minha celeste obsessão começou no berçário da maternidade. Entre um arroto e outro da primeira mamada, eis que avisto um par de sapatinhos azuis que uma tia de Lady Laura tinha tricotado para colocar na porta do quarto. Sapatinhos azuis, e não marrons. Azuis como todos os sapatinhos, sapatos, tênis, pantufas de vovó, botas de lavrador, galochas, chuteiras e assemelhados deveriam ser. Ainda empapado de resíduos placentários, olhei para o adorável parzinho de lã, sorri marotamente e dei uma piscada, já ensaiando os flertes que teria mais tarde com as garotas de Cachoeiro. Todas, coincidentemente, de olhos azuis. Melhor dizendo, escolhidamente – ainda que nenhuma das mulheres com quem casei tivesse olhos desta cor. Ninguém é perfeito, nem mesmo as boas esposas. Mas são os desígnios do Senhor, e ao Senhor só rendo e componho louvores.

O resto é história, que vocês já estão cansados de saber. São sete décadas de adoração a essa cor que inspira e eleva. Eleva tudo mesmo, já que aquele comprimidinho milagroso, não por acaso, é azul. Mas não nego que vivi também momentos que preferia esquecer, como as inverdades que a imprensa marrom se esmerou em espalhar. Boatos, intrigas, coisas que nunca disse, casos que não tive, emoções que não vivi. Aliás, imprensa ruim, irresponsável e maledicente tinha mesmo que ter esta cor. E pensar que ao longo de anos e anos tive aqueles cachimbos, todos marrons, grudados à boca o tempo todo. Era uma brasa, eu pensava, mas como estava cego...

De ruim teve também, é claro, o episódio do trem. Se fosse o Trem Azul, do Lô Borges e do Ronaldo Bastos, certamente ele não teria passado por cima da minha perna. Nem eu teria, injustamente, mandado o maquinista para o _______, aquele lugar que não posso dizer o nome e que fica abaixo do paraíso e do purgatório.

É, bicho, mas tirando estes poucos infortúnios eu não posso me queixar da sorte que a cor azul sempre me deu. E essa sorte eu quis dividir com o meu amigo Eduardo Araújo, quando ele fez aquela música chamada “O bom”. Ele mostrou a canção pra mim em primeira mão e perguntou o que eu achava. Disse que era bacana e que tinha tudo pra estourar nas paradas, mas que eu trocaria a parte que fala “Meu carro é vermelho, não uso espelho pra me pentear” por “Meu carro é azul, não uso espelho pra me pentear”. Ele manteve a letra daquele jeito e a música até que fez sucesso na época, mas também depois... não emplacou mais nenhuma, mora? Não foi por falta de aviso.

O que eu queria mesmo era comemorar silenciosamente estes 70 outonos aqui na minha casa da Urca, sozinho com meus fantasmas e minha imagem de Nossa Senhora, assistindo “Avatar” no home theater. Aquele adorável filme que mostra um maravilhoso mundo de seres azuis. Um manifesto ao extermínio do racismo, já que brancos, negros, vermelhos e amarelos não existem. Só os essenciais azuis, a cor que importa. Roberto Carlos Braga é, na verdade, Roberto Colour Blue. Mesmo aos 70, ainda é tempo de mudar o meu registro no cartório e envelhecer em paz com o azul do céu e dos oceanos. Amém, bicho.



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sábado, 16 de abril de 2011

ROCKABILLY

ILUSTRAÇÃO: THIAGO CAYRES


Vou te ver de Lambretta, aconteça o que acontecer a este esquisito que chamam de Marco Antônio. É, de Lambretta! Sábado agora, pode esperar, na mesma bat-hora este repetente mascador de chiclete aparece com a mesma bat-jaqueta. Fiquei com aquela branca e azul piscina, igual a que te mostrei anteontem na rua. Brilhando como está, de longe você reconhece quando estiver estacionada na sorveteria da praça. Melhor assim, Diana, território neutro. Meio caminho entre minha casa e a sua, pra evitar diz-que-diz-que se virem a gente em algum canto mais afastado. Depois sim, de Lambretta, aí a gente se embrenha onde o desejo mandar e a cidade não veja. Mas relax, eu vou saber esperar seu tempo, cheirosinha, vai acontecer e vai ser bom e gostoso como andar de Lambretta nova. E ela vai ter o seu nome, vou decalcar um “Diana” em letra manuscrita na carenagem do lado esquerdo, onde fica o coração, olha só que romântico. Dianinha, a filha do delegado, comigo. Minha, escoltada pra baixo e pra cima pelo maluco aqui. Bacana isso. É pra que todo mundo saiba que tem dono, essa Diana deusa da caça, linda de tranças. Estou com o exame médico vencido, se não ia te ver no clube antes de sábado. Mas tudo bem, enquanto isso amacio pra você a minha, quer dizer, a nossa Lambretta. Manera com esse biquíni, não sou só eu que gosto dele. Usa aquele maiô preto quando não estiver comigo e tem dó de mim tendo que escutar essa seleção de marchinhas dos tempos de nem sei quando que o vô põe na radiovitrola. É só vir chegando o carnaval que começa esse suplício, estourando os falantes. De Lambretta vai ser diferente, vamos juntos ouvir a melhor música do mundo, a do vento zoando no ouvido. Em jukebox nenhuma tem um hit como esse. Você agarrada na minha cintura e eu acelerando até o talo quando a gente passar pelo convento, acordando as pobres das freiras na terça gorda, a caminho do mato. E as ovelhas desgarradas de Nosso Senhor na esfregação e na cheiração de lança, aproveitando o aval da carne enquanto a quaresma não vem. Não vão conseguir pegar a gente, nem chamando a viatura da rádio patrulha. Eles trabalham na quarta de cinzas, depois do meio dia. Eles não sabem do vento no rosto. Eles não têm Lambretta, baby. © Direitos Reservados

sábado, 2 de abril de 2011

SABOTAGEM


ILUSTRAÇÃO: THIAGO CAYRES



Eu trabalho enrolando cubanos. Não, não é falsificando vistos e passaportes para moradores da Ilha que, disfarçados de gringos fazendo turismo, queiram fugir para lugar melhor. É na manufatura de charutos, mesmo. Enrolando largas e secas folhas de fumo, sempre no mesmo sentido sobre uma pedra de mármore, com a mesma apurada destreza para que saiam perfeitos, das 8 às 22, há 34 anos.


Puros, hechos a mano. Amo o que faço. Fabrico a morte dos que podem mais, e isso me excita e me vinga. Pagam dezenas de dólares por um único Castrovilla, que eu de caso pensado manipulo com as mãos besuntadas de fezes e catarro, sem que o inspetor de qualidade perceba. Fezes e catarro que dão liga às folhas que fazem este fálico objeto de desejo. Entre um gole e outro de licores finos, os poderosos enchem suas bocas bem cuidadas com meus excrementos. Antes que morram hão de saber da verdade, e tentarão com seu dinheiro extirpar seus pulmões e implantar outros novos, rosadinhos, sem a merda e sem o catarro que tantas vezes inalaram.


O que há de mais imundo em mim viciando o ar das reuniões sigilosas e dos conchavos secretos. Meus dejetos sacramentando o jantar dos deuses - nos transatlânticos, nos cassinos, onde houver luxo e cobiça. Que mais um pobre nativo, sem berço e sem dinheiro para o caixão, poderia querer da vida?



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