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sábado, 29 de outubro de 2011

HAPPY FAMILY





A casa perfeita da família feliz recebia, de dois em dois anos, uma demão de tinta na parte externa e nos madeiramentos. A cada seis meses, dedetização e limpeza da caixa d’água. De 45 em 45 dias, o jardineiro para aparar a grama. Diariamente, a perua escolar e suas duas buzinadinhas regulamentares para buscar filhinho e filhinha.







Havia pichações por todo o bairro, menos no imenso muro caiado da casa feliz. Nem sinal de sujeira de pomba, fuligem de queimada ou formigueiro. Asséptica e harmônica em suas formas, a casa feliz era quase música, uma figura etérea em meio à feiúra do quarteirão. Tinha chaminé, cerquinha, floreiras nas janelas e o caminhozinho sinuoso que saía da porta em direção à rua.






Como de hábito, após dar lustro à coleção de miniaturas papai colocava os planos familiares em planilhas do Excel. Ali ficava horas com seus cálculos e projeções. Mamãe evocava a proteção divina em preces e cânticos. Depois, recolhia as roupas do varal com altivez de matriarca honesta, realizada por dar conta do seu fardo. No armário, as camisas polo de filhinho eram empilhadas por cores, em nuances que iam do vermelho vivo ao bege claro. As pretas e as brancas ficavam em gavetas separadas. Papai mantinha a caixa de ferramentas providencialmente organizada, com um sortido estoque de brocas e buchas. Sobre o rack, o controle do som, o controle do vídeo e o controle da vida ao alcance da mão. No lavabo e nos banheiros as toalhas eram rosa, com monogramas bordados.






As fotos da família feliz eram acondicionadas em compartimentos, de acordo com o tipo de comemoração: casamento, batizados, formaturas, aniversários, natais e férias. Ao lado da caixa de retratos, canhotos de talões de cheque acumulados desde 1981, recibos de contas pagas, cópias de declarações de imposto de renda, boletins escolares.






Era com nítido orgulho que filhinho se projetava alistando-se aos 18. Filhinha, por sua vez, gastava folhas e mais folhas de papel vegetal a desenhar grinaldas e buquês de noiva. Na casa perfeita, ao romper da aurora, a família fazia seu desjejum com farinha láctea, mel e mamão papaia. Verduras hidropônicas e legumes sem agrotóxicos faziam as delícias do almoço e do jantar. Mais ou menos por essa época, filhinha foi debutante e filhinho escoteiro.






A felicidade, ali, se alastrava como fogo em mato seco. Vizinho nenhum jamais ouviu um palavrão saído de dentro daquela casa. Nem um “cala a boca”, um “anda logo”, um “caramba” ou coisa assim. O carro estava sempre limpo e a mecânica em ótimo estado. Todas as revisões feitas nas quilometragens e prazos recomendados pelo fabricante. Dizem as más línguas que um dia, em outubro de 1993, papai esqueceu o guarda-chuva em casa. Mas um boy da firma logo apareceu para buscar.






Por volta das três – com margem de tolerância de cinco minutos, para mais ou para menos, filhinha sentava-se ao piano e interpretava com doçura e sentimento uma peça de Clementi. Não constam registros de estouros de champanhe, gritos de gol ou fumaça de churrasco vindos da casa perfeita da família feliz. Eram três, e não mais que três, as ocasiões semanais em que todos saíam juntos: para o culto dominical, para a visita aos pais de mamãe e para divertirem-se a valer vendo os aviões pousando no aeroporto.






No aconchego daquelas quatro paredes, os narizes eram assoados silenciosamente, o piso era encerado com regularidade monástica, os travesseiros exalavam a alfazema mais pura desse mundo. As contas nunca eram pagas na data de vencimento - no mais tardar dois dias antes. Os vestidos de mamãe eram todos 4 dedos abaixo do joelho. Os cachimbos de papai eram escovados e acondicionados em saquinhos de veludo. Filhinho não sabia o que era cotovelo ralado. Filhinha não sabia o que era amasso no portão. Mamãe era professora mas não exercia a profissão. A família feliz sabia que roupa suja se lava em casa, mas nunca havia roupa suja para se lavar. Papai e mamãe não se esqueciam e se saudavam mutuamente no aniversario de noivado. Com menos entusiasmo que no aniversário de casamento e mais calorosamente que no aniversário de namoro. Por sua conduta exemplar, papai foi várias vezes convocado a compor júri no fórum. Era sócio benemérito do conselho para o bem-estar comunitário. Mamãe colaborava com as obras do berço.






Um belo dia papai reuniu a família feliz, pegou os 20 metros de pisca-pisca natalino guardados numa gaveta da edícula, dividiu-os em 4 partes de 5 metros, distribuiu uma parte para cada um. Foram os quatro encontrados na sala de estar, os corpos dispostos de maneira simétrica e em ordem cronológica decrescente.














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sábado, 22 de outubro de 2011

RELATOS LITERAIS: COR DE BURRO QUANDO FOGE




Ilustração: Thiago Cayres

Reconheço de antemão que a comprovação de qual seja fielmente a cor do burro foragido continuará sendo uma das grandes interrogações do homem contemporâneo, de demonstração tão complexa quanto o último teorema de Fermat. Não é justo, entretanto, que me furte a trazer aos cativos deste espaço dois experimentos que se propõem, cada qual a seu modo, a elucidar a questão e quiçá lançar uma pá de cal sobre o assunto. Julgo, todavia, que ambos nunca estiveram tão longe da verdade, como perceberá o leitor no breve relato que se segue.



O primeiro é um tanto quanto frágil no tocante à metodologia científica adotada, pois se baseia meramente na acuidade visual dos investigadores.


Sustenta este grupo de nefelibatas, composto por pesquisadores do Alabama, que o ato da fuga enrubesce o animal devido ao esforço físico exigido, o que confere momentaneamente ao mesmo uma coloração que varia entre o rosado e o vermelho-vinho, passando pelo magenta queimado. Esta elástica paleta de cores, convenhamos, continua a deixar a questão sem resposta. Vale notar que argumento semelhante rendeu defesa de tese há cerca de 12 anos na Universidade Quincas Borba, cuja banca examinadora era encabeçada pelo laureado professor Demóstenes Benz, sobrinho-neto da mundialmente famosa Mercedes. A discutível validade dos achados, somada à suspeita de plágio que paira sobre os autores, me autoriza a desconsiderar a pesquisa na fundamentação de qualquer investigação rigorosa que se empreenda sobre o tema, aqui ou no exterior.


O segundo experimento levanta a hipótese de que a cor do burro em desabalada carreira se manifestaria em sua epiderme. Sendo o bicho coberto por espessa pelagem, seria logicamente impossível um flagrante fidedigno. Assim, procedeu-se à realização do teste em uma área previamente raspada, próxima à crina do quadrúpede.


Expoentes diversos do setor de medicina veterinária julgaram o resultado cromático obtido na empreitada como inconclusivo, uma vez que refere-se especificamente a um burro estudado, e não ao conjunto de burros fugitivos espalhados pelo planeta. Argumentaram que a amostragem só ganharia lastro científico se contasse com pelo menos cinco grupos de controle, formados por burros de cada um dos cinco continentes.


Outras contundentes objeções também não faltaram a este estudo, consideradas impeditivas para a exatidão dos laudos apresentados:


. O grau de inclinação do terreno onde se realizou o galope;


. A natureza do solo, sua porosidade e o coeficiente de resistência entre este e as patas do animal;


. A quantidade de feno consumida desde a véspera pelo burro-cobaia, bem como o total de líquido ingerido e o número de horas dormidas na noite imediatamente anterior aos testes;.


. A raça, a idade, o peso e as variantes de temperatura, pressão arterial e batimentos cardíacos do dito cujo.


Finalizando, podemos categoricamente afirmar aquilo que já tinha-se como comprovadamente constatado, ou seja, a cor de burro quando foge é da cor do burro quando foge.






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sábado, 15 de outubro de 2011

CAMINHO DE SANTIAGO EXTRA PRIME


Ilustração: Thiago Cayres


Tragam-me uvas frescas e tâmaras secas, imediatamente. A um estalar de dedos, quero caviares russos recém-embalados, trufas brancas de Piemonte e leite de cabra para hidratar os pés.



Alguns condenam-me pelo excessivo fastio nessa empreitada onde deveria prevalecer o sacrifício. Respeito, mas contesto. Afinal, o próprio Santiago foi um VIP. Quer existência mais VIP do que ser um dos eleitos de Jesus Cristo, predestinado entre milhões para entrar na história do mundo como um dos 12 apóstolos? O homem foi escolhido a dedo pra subir aos céus sem escala, com toda a pompa que os mártires merecem.


Sem querer insultar o santo, como quase todo VIP o nosso herói de Compostela soube se promover e atrair para si os holofotes da época. Reza a lenda que o glorioso Santiago quis que seus ossos fossem descobertos, após séculos esquecidos numa arca de mármore. Para tanto, patrocinou noites e noites seguidas de chuvas de estrelas, no Bosque de Libredón, onde foi enterrado. Alguém contesta que isso é gostar de aparecer? Entendo que, se ele permite que eu complete meu caminho com todas essas regalias a que me entrego, é porque o procedimento não destoa do seu código de conduta enquanto santo de primeiro time. Caso contrário, faria recair a ira divina sobre minha carcaça.


O que importa é concluir a jornada, seja lá como for. Se o faço com banquetes a cada quinhentos metros, é porque Deus me julga abençoado e concede-me a graça de que assim seja. Os que se penitenciam passando sede, fome, cãibras e dores no corpo de caso pensado, assim o fazem provavelmente por terem a consciência pesada e por saberem que devem se sacrificar para alcançar a misericórdia divina. Não é o meu caso. Sou um homem justo e de consciência limpa. Pago religiosamente sete nonos de um salário mínimo a cada um desses serviçais que me transportam na liteira e me abanam com plumas de avestruz, em turnos de 16 horas com 30 minutos de merecido descanso para um naco de goiabada. Nem Salomão dispensaria melhor tratamento a seus escravos.


Quando me enfastia ficar deitado entre linhos e sedas, apeio do meu dossel ambulante e caminho uns três minutos, não sem antes cobrir-me com o véu antimoscas, calçar meu tênis com quatro exclusivos sistemas de amortecimento simultâneo e levar comigo um razoável estoque de Perrier a -3ºC. Compreendam que uma empreitada de 800 quilômetros para purificação do espírito não pode levar à destruição do corpo. E sendo ele a morada da alma, deve ser tratado a pão-de-ló. Agora, se me dão licença, é hora de aparar minhas cutículas.


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sábado, 8 de outubro de 2011

AMOR INTERGALÁTICO




Ilustração: Thiago Cayres

"Imagine dois jovens gêmeos idênticos. Um deles é recrutado para ser astronauta e fazer um voo experimental em uma nave capaz de atingir 50% da velocidade da luz. Ele parte, vai até Alfa Centauri (a estrela mais próxima do sistema solar) e volta, numa viagem de 16 anos. Quando retorna, a surpresa: seu irmão gêmeo já é um idoso, à beira da morte, enquanto ele envelheceu apenas o tempo da viagem".



(Superinteressante, Ed. 265, maio/2009, pág. 20)






- Não tem trocado, moço? A passagem é R$2,50 e não tenho troco pra R$100.


- Eu acerto com você na volta, então. Tudo bem?


- De jeito nenhum. Quando o senhor voltar eu vou estar mortinha da silva há muitos anos.


- Ah, é. Tinha esquecido deste detalhe.


- E vai que a nave desembesta e atinge a velocidade da luz... aí o senhor vira luz também. E luz não paga o que deve pra ninguém. Nem conta de luz.


- Faz sentido. E pra falar a verdade eu tô embarcando justamente pra escapar de uns credores que andam me enchendo a paciência. Uns três ou quatro anos de viagem, a uma velocidade beirando aí os duzentos e noventa mil quilômetros por segundo e pronto. Quando fizer o retorno a dívida já vai ter caducado há décadas. Fora que eu vou estar só com um pouquinho mais de idade e perfeitamente apto a galinhar as bisnetas dos caras que estão me cobrando hoje.


- Pensou em tudo, heim?


- E outra: supondo que os meus credores de hoje fiquem com o meu patrimônio, vou recuperar tudinho e muito mais casando com uma das bisnetinhas.


- O que é a tecnologia, não?...


- Bendito Albert Einstein e sua Teoria da Relatividade. Aposto que ele não tinha atinado com este maravilhoso desdobramento enquanto se matava de trabalhar enunciando suas descobertas.


- Pro senhor ver.


- Bom, voltando ao nosso teórico e relativo impasse. Não tem mesmo troco pra 100?


- Não tenho. Se tivesse a gente não ficaria aqui perdendo tempo, o senhor já teria embarcado e, quando voltasse do seu passeio intergalático, eu, coitadinha, já estaria comendo grama pela raiz. E vale-transporte, o senhor não tem nenhum aí? A gente aceita.


- Eu sou autônomo, quisera eu ter um patrãozinho pra me pagar a condução. E por favor, não me chame mais de senhor. Falando comigo desse jeito, me sinto mais velho que o Einstein naquela foto com a língua de fora. Olha, acho que o destino tramou para que você não tivesse troco. Seria uma tristeza voltar dessa viagem sem graça e encontrá-la na sepultura... que desperdício, imagina só.


- O senhor está sendo um tanto precipitado. Nos conhecemos agora e o senhor - quer dizer, você - tinha outros planos em mente, muito mais audaciosos. Pra quem imaginava um golpe do baú espacial você está se contentando com muito pouco. Se eu te mostrar o meu salário e a pindaíba em que vive a minha família, você muda de ideia já.


- Então vamos fazer o seguinte: enquanto eu fico aqui resolvendo o que fazer, você cobra as passagens de outros viajantes e arranja troco pra minha nota de 100. Daí, quando acabar o seu expediente, a gente toma uns drinques e de repente você decide ir comigo. Afinal de contas, você não vai querer ficar a vida inteira trabalhando de cobradora de foguete, certo?


- Mas antes você se casa comigo?


- Ô louco. Depois eu é que sou precipitado... vamos com calma, pra isso tem tempo.


- Todo o tempo do mundo, meu senhor. Quer dizer, meu amor.






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sábado, 1 de outubro de 2011

MORTOS DE RIR


O Willy não precisava ter ido tão cedo. Não precisava mesmo. Uma desatenção nossa e olha ele aí, finado. Ainda se tivesse procurado o fim – tomado veneno de rato, dado um tiro na têmpora, um enforcamentozinho. Mas assim, pego de surpresa, ver-se defunto da noite pro dia e a contragosto, não deve ter sido fácil.







Bom Willy, tão viciado em vida e de repente nessa situação. Em quase todas as sepulturas do cemitério, a estrelinha e a cruz, a data da morte e o dia do nascimento. Com estrela você combina, mas cruz não é o seu estilo.






Prometo que, tão logo o padre encomende sua carcaça, cairei fora desse latifúndio de esqueletos e entrarei no bar mais próximo para beber à nossa saúde. À minha aqui embaixo e à sua aí em cima, seu desalmado. Embora beba quase nunca, farei isso por você.






Aguardo, sua besta, você numa noite dessas pra me puxar as pernas, fazendo gracejo das coisas sagradas. O céu nunca mais será o mesmo depois da chegada de “Aero Willy”, o querubim gozador. Tô até vendo você tentando empurrar uma rifa pra cima de São Pedro ou convencendo Santo Expedito a ser seu fiador numa confortável nuvem de dois dormitórios.






Quero que fique em relevo no mármore branco e no granito preto desses túmulos um pouco dos melhores momentos que tivemos. Um dia, querendo ou não, a vida vai me mover um processo de desapropriação e virei também morar por essas bandas. Seremos vizinhos de novo, como éramos de rua.






Agora é essa serra azulada circundando o campo santo. Deixar você assim desamparado, no meio de tão desanimadas companhias, é de cortar o coração. Sinto um espírito me soprando ao ouvido: “escreve aí no seu texto pra cuidarem mais da gente. Só lembram que a gente existe dia 2 de novembro, isso é uma desumanidade”. É justo. Inexistente também existe. Não é porque morreu que deixou de merecer consideração.






Assim como os vermes daqui a uns dias avançarão com menos apetite sobre os seus restos, as lembranças suas também irão perdendo o brilho e a nitidez, sei disso. Sei do inevitável disso. E deixo subirem à mente as pipas todas que soltamos e milhões de bolhas de sabão, da época em que a gente tinha o tamanho dos anjinhos tocadores de trombeta, iguais a esses da tumba aqui do lado.






- Acorda aí, palhaço. Que cara de sonso é essa...


- Willy, é você? Eu tava sonhando ou é você que veio me buscar?


- Dá um cigarro, vai. Anda.


- Tá, mas primeiro me conta o que é que está acontecendo.


- Calma, tudo a seu tempo. E tempo a gente tem de sobra daqui pra frente.






Caímos na gargalhada. Acesso de riso no cemitério, coisa mais sem cabimento. Rimos tanto que apagamos as velas com as nossas risadas. Ao fundo, a trilha de Nino Rota para “Oito e Meio”. O coveiro passa por nós, mede a dupla de cima a baixo e faz um “tsc-tsc” de desaprovação.










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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.



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