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sábado, 26 de maio de 2012

REVANCHE DOS SUICIDAS




Assis Valente, aquele gênio nem sempre lembrado da MPB, era o ídolo e a inspiração deles. Tinha um quadro em lugar de destaque na sede da associação, da qual era patrono oficial.

Para quem não sabe, Assis Valente tentou suicídio em 1941, saltando do morro do Corcovado. Na queda, quicou na copa de uma árvore, frondosa o suficiente para amortecê-lo e livrá-lo do sono eterno. O ex-futuro morto teve que administrar o próprio chabu, que rendeu-lhe não mais que umas costelas quebradas. Foi um caso único no até então 100% fatal cartão postal do Rio. Não bastasse ser uma figura conhecida na cena carioca de sua época, ganhou as páginas dos jornais no dia seguinte como o único sujeito a escapar da morte pulando do famoso morro. Viveu mais algum tempo, o suficiente para legar à humanidade mais algumas dezenas de obras-primas. Após nova empreitada cortando os pulsos, igualmente fracassada, partiu para a terceira tentativa em 1958 - esta certeira, ao pôr do sol na Praia do Russel, se contorcendo sob o efeito de um gole de guaraná batizado com formicida.

Como o autor de "Camisa Listada", aqueles homens, ali reunidos, carregavam o infortúnio de terem tentado e não conseguido dar fim à existência. Dividiam o peso da humilhação suprema: retornar do gesto abominável com o rabo entre as pernas. Situação constrangedora. Não bastasse o fracasso na vida, tinham fracassado também na morte.

Era vergonha demais, precisavam lavar a desonra com sangue, mostrando aos amigos e parentes que não mudaram de ideia e não se acovardaram. Longe disso: eram duplamente corajosos para buscarem, outra vez, o tão sonhado paletó de madeira.

Naquela assembleia ordinária, deliberaram um revide à altura. E bota altura nisso: os 324 metros da Torre Eiffel. Partiriam em excursão para Paris, os 21 frustrados suicidas, e saltariam de algum ponto menos vigiado do monumento em 3 grupos de 7 - de mãos dadas e no melhor estilo "um, dois, três e já!". Só não teriam muito tempo para ensaiar a coreografia macabra, sob risco de descobrirem e interceptarem o seu intento com o ostensivo esquema de segurança da torre.

Seria o primeiro suicídio sincronizado da história. Os saltos seriam filmados pelo guia turístico do grupo, também simpatizante da prática suicida mas ainda não suficientemente apto à derradeira atitude. A este caberia, ao fim do espetáculo, entregar a filmagem à imprensa, bem como os 21 envelopes com as últimas palavras dos herois aos remanescentes da raça humana.

Porém, o destino foi de novo caprichoso. Ao se afastar andando para trás, procurando um melhor ângulo para a foto, o guia acabou despencando sem querer, antes dos 21. Pronto: soou a sirene, a polícia foi acionada e a turma toda convocada para interrogatório, no inquérito para apurar a causa do acidente. Ficou adiada a revanche, e com ela a lavagem da honra.

© Direitos Reservados



Em tempo: já que falamos dele, fica a dica para conhecerem a fantástica obra de Assis Valente. Um legado que vai muito além do "Brasil Pandeiro", sua música mais executada. Grande Assis. Imortal, ainda que suicida.



Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 19 de maio de 2012



Ilustração: Thiago Cayres




Passada a consternação que assolou o país com o desaparecimento de um dos maiores nomes de nossa música, a família de Wandu deu entrada na tarde de ontem ao processo de inventário, para a partilha do patrimônio do artista.

Na busca por bens e direitos do falecido em cartórios e juntas comerciais, apurou-se que, além de proprietário de duas linhas de telefone celular e do título do Clube de Campo Apogeu da Paz, Wandu era sócio majoritário de uma obscura e deficitária fábrica de giz em Mairiporã, na Grande São Paulo, da qual lhe eram creditados mensalmente R$ 1.230,14 a título de pró-labore até o mês de julho de 2009, quando cessaram tais provimentos.

Familiares do cantor afirmam que sua decisão em associar-se à empresa deveu-se a dois fatores. O primeiro, a diversificação estratégica dos seus investimentos pessoais (como ele mesmo dizia, "é preciso colocar os ovos em várias cestas"). O segundo seria prover o fornecimento de gizes coloridos e de boa qualidade para uso exclusivo em suas turnês, já que Wandu tinha por hábito escrever com giz as letras de suas músicas no chão do palco, para que não se atrapalhasse nas apresentações.

Como é de conhecimento público, o finado mantinha em sua posse uma extensa coleção de peças íntimas femininas, em especial as vulgarmente chamadas "calcinhas", que lhe eram arremessadas pelas fãs quando de suas apresentações Brasil e América Latina afora.

Contadas e catalogadas, as referidas peças somaram um total de 78.288.935 (setenta e oito milhões, duzentas e oitenta e oito mil, novecentas e trinta e cinco) unidades - de cores, formatos e modelos sortidos, algumas inclusive do tipo comestível.

Não havendo nenhum herdeiro legítimo ou requerente legalmente constituído que se habilitasse a ficar com o lote, o Estado determinou encaminhá-lo a instituições de caridade voltadas ao público feminino, de creches municipais a presídios federais, procedendo antes a uma triagem para separar as peças íntimas por faixas etárias: 0 a 7, 8 a 19, 20 a 48, 49 a 62, 63 em diante. O Ministério Público, no entanto, solicitou que do gigantesco montante fossem separados ao menos uns sete ou oito contêineres de calcinhas para doação a universidades e centros de pesquisa, por constituírem valioso material de estudo fúngico-bacteriológico pelas áreas de urologia e ginecologia.

Some-se a estes fatos a descoberta de um testamento, lavrado há cerca de três anos no 2º Cartório de Jacarezinho, que pode trazer novidades ao processo de divisão do espólio do cantor. Seu teor diz respeito especificamente ao bem de maior valor arrolado no inventário, ou seja, os direitos autorais da canção "Moça" - sucesso de 1975 executado até hoje nos mais distantes rincões deste país continente. Consta do documento que a citada "Moça" que dá título à composição existe de fato (ainda que, passado tanto tempo, poderia atualmente ser chamada "Velha", isso se ainda estiver viva). O nome da dita cuja, seu RG, CPF e título eleitoral estão discriminados no testamento, sendo que a beneficiária deverá apresentar-se à justiça para que se proceda à aferição dos seus dados e lhe sejam concedidos os royalties doravante arrecadados pela obra.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 12 de maio de 2012

ENSEBADO




Google Imagens


Troco numa boa mil megastores de livros novos com cybercafés por um sebo mal arrumado e labirintuoso. Daqueles encravados nos centrões das metrópoles, com as paredes caindo aos pedaços como os volumes que abrigam. Até meados dos 80, nos sebos a gente só encontrava livros e revistas. Hoje tem vinis, CDs, fitas de vídeo e até DVDs. Muitos têm brinquedos usados, jogos de tabuleiro, vitrolas. Outros dividem espaço com brechó. Mas sempre sebos, honestos sebos, sem nenhum vendedor chato querendo te empurrar os últimos lançamentos.

O que frequento é muito grande, Pra dar uma espiada rápida em tudo vai pelo menos uma semana. Sério. Como a empreitada é longa, pelo comprido galpão há banquinhos espalhados pro pessoal se acomodar, além de umas duas ou três poltronas. Velhas, com o estofamento puído, mas um oásis pras suas costas depois de algumas horas naquela babel.

Embora o habitué do sebo seja, ou quase sempre aparente ser, muito tímido, nem todos têm o perfil do rato de biblioteca. Há o frequentador funcional, rápido e rasteiro. Esse tipo é pragmático e não gosta de antiguidade, vai lá porque é mais barato, geralmente está atrás de um livro específico pra faculdade ou coisa assim. “Tem? Vou levar. Não tem? Tchau”. Pronto. Sebo nas canelas.

O silêncio impera nos sebos, e isso às vezes é constrangedor. Dá pra escutar a respiração da pessoa na prateleira ao lado. E a consulta aos volumes vai aproximando fisicamente um freguês do outro. Aí a situação fica insustentável, parecida com o “efeito elevador”. Um dos dois acaba cedendo, indo ciscar em outras paragens até o outro desocupar.

Uma vez comprei um livrinho impresso em 1912. O carimbo da livraria, de Campinas, mostrava um número de telefone inacreditável: 27. As ligações, na época, inclusive as locais, eram via telefonista. “Senhorita, por favor, me liga no 36”. Parece morador de prédio falando no interfone com o porteiro.

Imagino a peregrinação daquele volume com o passar dos anos. Pode ter sido dado de presente pra filha mais nova de algum barão do café, que passou pro filho dela, que o doou a uma escola pública, que o emprestou a um aluno, que ficou com ele até vendê-lo ao sebo, em meio a um lote de outros 163 volumes. Quis o destino que estivesse agora aqui, a poucos metros das minhas fuças. E daqui a 100 anos, onde estará?

Não raramente se encontra, como marcador de página, algo devastadoramente íntimo. Veja esse bilhetinho, que veio no meu “Sagarana” de sebo:
“Pedro querido,
Às vezes dizemos besteiras sem pensar. Magoar você é a última coisa que quero nesse mundo. A comida está na geladeira, é só esquentar. Depois conversamos melhor.
Sua esposa, que muito te quer,
Odila Maria”

Odila Maria. Quem será, ou seria? Qual o motivo daquela briga, o que aconteceu e quando? Como era sua vida, a cor dos seus olhos e cabelos, onde morava? A vida lhe deu filhos ou acabou se separando do Pedro pra virar freira? Pode ter morrido tragicamente num acidente de carro, dias depois.

Dedicatórias de Natal, de aniversário, formatura. Páginas com anotações do leitor a lápis, trechos sublinhados. Às vezes umas manchinhas. Goiabada, purê de batatas, misto quente, bobó de camarão?

Na última visita levei 14 vinis. De “Vida Bandida”, do Lobão, até uma coletânea de Ismael Silva. Total de 53 reais. Faz por 50? Faço, claro. Se preferir tem redeshop. É, sebo hoje trabalha com débito automático e cartão de crédito. Mais: há grandes sebos de São Paulo e do Rio com portinha aberta na web. Tudo separado por assunto, descrevendo o estado do livro e ano da edição. E dá pra dar zoom na capa. Você escolhe, compra e entregam em casa.

Mas aí também não tem graça. O legal é banhar-se naquele mar de ácaros e escancarar os pulmões à deliciosa poeira. E foi entre um espirro e outro que pincei um DVD de “As Invasões Bárbaras”, Oscar de filme estrangeiro em 2004. No estojo alguém escreveu, em esferográfica verde: “ L’ Amitié. Notre chanson”. Pesquisei no You Tube. Apareceu uma espécie de clipe em preto e branco, de 1965 e produção rudimentar, onde Françoise Hardy canta “L’Amitié”, uma romântica canção que embala a cena final do filme de Denys Arcand. Acesse e emocione-se. Se for alérgico a ácaros, tudo bem. Pelo menos por enquanto eles não vêm pela internet.




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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 5 de maio de 2012

ANÁLISES CÍNICAS







I

Não tenho nada a perder, daqui a pouco vou dar um basta definitivo na minha vidinha sem parasitas, vírus, fungos e meningococos. O negócio agora é bagunçar esse coreto arrumadinho de tubos e lâminas, botar desordem na casa. É minha forma, ainda que um tanto sinistra, de deixar minha marca por onde passei. Gastei décadas nesse insípido cenário branco e esterilizado, onde se coletam temores e esperanças da vida lá fora. Se não posso mudar meu destino, mudarei o dos outros. De desconhecidos outros - para melhor ou para pior. Perdoem-me, tenho que fazer isso.


II

Misturando a amostra da Denise com a do Tácito Luiz... isso, lindo blend, a coloração tá ótima. Nunca se viram e firmam agora um pacto de sangue, quem diria. A hepatite dele passa a ser dela, a anemia dela também é dele. É bacana essa fraternidade, essa solidariedade mórbida me deixa com lágrimas nos olhos. Cada um entrou aqui com uma doença e voltarão os dois com dupla enfermidade. Agora, ao microscópio. Olha como tá de micose essa lâmina, Deus do céu. Mas como é difícil de tratar mesmo, digo no diagnóstico que não tem nada - assim o velhinho não perde tempo nem dinheiro tentando à toa acabar com esses fungos. Parece tão boa gente, não merece essa esfrega. Além do mais, disso ele não vai morrer mesmo.


III

Carcinoma hepatocelular, isso já deve estar em fase de metástase brava... deixa eu ver no facebook o perfil desse infeliz. Festa, churrasco, pescaria, ê vidão... deve enxugar uma cana lascada pra ter o fígado nesse estado. O laudo vai desenganar o cara, e não vai ter tratamento que dê jeito com a situação nesse pé. Tantos amigos e solicitações de amizade, que judiação. Não sou eu que vou estragar o seu restinho de tempo por aqui. Então vamos lá, meu camarada... "Aspecto benigno, não observados indícios de neoplasia". Só aquele alívio na hora de abrir o envelope já é meio caminho pra melhorar muito o ânimo desse coitado. De notícia ruim já chega o Jornal Nacional. Maravilha, perfeito... agora o face... vou pedir pra me adicionar. Pode até não me aceitar como amigo, mas com certeza sou o melhor que ele já teve.

IV

Quintana Rubininsky... tinha um escroto no colégio com esse sobrenome. Se for parente, aí vai a maldição - tasco-lhe um positivo para HIV, tá bom pra você, querido? Vida louca, sem juízo dos infernos, se não tivesse má conduta o seu urologista não pediria o teste para afastar a suspeita. Aí vai, com toda a minha gratidão. É preciso que entenda que não é por mal, só estou fazendo minha parte pra tornar o mundo um lugar melhor.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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