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sábado, 28 de março de 2009

PROPRIEDADE


- Tem namoradinho rondando Lídia Isadora, moço bem apessoado.
- Quê?
- É o que lhe digo, não queria trazer preocupação para o senhor meu marido, mas...

Franzindo o cenho, o coronel tranca o ferrolho. Fecha questão em definitivo. É o sinal de que não pode, a filha envolta em vestidinho branco é imaculada até disposição em contrário e expressa ordem do dono, e essa ordem não virá. Filha da Igreja antes de ser sua filha. Essa não tem jeito, é prometida pra Jesus. Quase natimorta, escapou Deus sabe como. Fez promessa se vivesse, era dever cumprir. Nunca um desejo de carne havia de tirar o sossego desse corpo magro de menina. Não da minha menina, que essa é pra convento de clausura. Vai comer moela às vezes e jejuar quase sempre por amor de Nosso Senhor, assim seja e há de ser, ou não me chamo Juvenal.

De domingo, a imbuia dura onde ajoelha, veludo roçando a maçã lisa do rosto. A paz da capela, o padre escuta e não encara.

- Não que eu tenha pecado, padre, mas no descuido deixei entrar no juízo uns pensamentos descarados. Um moço vem querendo coisas, olha fundo no olho, se achega sem convite.
- Menina, você tão nova. Que mais?
- Não sei se conto ou não conto, não virou acontecência, ficou no quase. De todo modo...

Pai vem vindo, barulho de molho de muitas chaves. Coronel de porte e pose de dono de capitania. Pisa mais forte que o costume, sinal de que a vara de marmelo vai cantar.

Demorou nadica. Uma vergastada, duas, três. Acolhe calada o castigo, os olhos revirando sem chance de revide ou de explicação.

- E você, mulher, vigie de perto e me avise de abuso, que boto jagunço no rasto do desaforado.

Tem duas mães, a menina. A de verdade, zanzando desnorteada, sem ação de serventia. E tem a Dita, ama de leite cheia de simpatias e rezas, mãe postiça que não deixa ao deus-dará.

- Passa um bife, Dita, ela tem fome.
Trincheira providencial, a Dita, na hora de evitar surra de rabo de tatu. Se acontecia de não conseguir, vinha com a salmoura, junto com afago e colo.

Tirava o avental molhado e chegava acudindo de toalha felpuda numa mão e bacia de lenitivo na outra, e era bom ser filho de criação da Dita e estar inteiro sob a tulha de seus braços. Assim, nesses bocados, a sova ia caindo mais fácil no esquecimento. Lenta mágoa desmanchando pela noite na fazenda, também lenta, onde só grilo se escutava no adiantado da hora.

A toda purinha, atrás dos óculos de fundo de garrafa, pedia a Deus o perdão ao pai, defensor do feudo e da honra da família. Que dessa porteira pra dentro não passe nem a miséria, nem a desgraça, nem a tentação. Se a ira divina se abater sobre essa roça, que seja eu a levada para purgar o pecado que quase nem cometi.

Na varanda, o coronel não se ressente, fez o que pai que se preza tem de fazer nesses casos. Pica o fumo e balança na cadeira, pensando no preço da arroba do boi.

Assim acontecia de ser sempre, naquela lonjura que não se chega, margeando o cafundó.


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sábado, 21 de março de 2009

MUAMBEIROS UNIDOS JAMAIS SERÃO VENCIDOS!


Da Reportagem Local

A greve dos vendedores ambulantes prossegue em seu décimo sexto dia, sem perspectiva de consenso entre os representantes da categoria e as autoridades constituídas.

O sindicato dos muambeiros, camelôs, sacoleiras e similares reivindica a licença para a venda de produtos da chamada linha branca (assim denominados por não possuírem nome ou marca fantasia em suas etiquetas de identificação), a poda imediata de um abacateiro no meio do camelódromo, o aumento do número de banheiros químicos de 3 para 27 e a reintegração da “Banca do Lorpa” ao circuito alternativo de compras – banida recentemente pela Guarda Municipal por comercializar Viagra genérico e cartilagem de lambari como sendo de tubarão.

Jorginho Bicicreta, há doze anos estabelecido ao lado da referida banca, falou à reportagem. “O Lorpa é gente boa que só vendo, tem um filho com problema, uma mulher que costura pra fora e uma sogra que nem o tinhoso merecia. Se a situação continuar desse jeito, ele disse assim que volta lá pra Três Corações. O camelódromo sem a Banca do Lorpa não é mais o mesmo, é uma loja âncora, chama gente pacarai (sic)”.

A Guarda Municipal, por sua vez, argumenta que a idéia era lacrar a barraca até que se concluísse o processo investigatório, que comprovaria ou não as irregularidades. De acordo com o Capitão Xexéu Vieira, a lacração não foi possível pelo fato do estabelecimento não possuir portas, paredes, tapumes ou qualquer outra estrutura física que lograsse o intento. Então a alternativa foi o recolhimento das instalações desmontáveis e a apreensão dos lotes do Viagra meia-bomba e das cartilagens de tilápia. Questionado pelo nosso repórter Paranhos se as cartilagens não seriam de lambari, conforme noticiado extra-oficialmente, o Capitão esclareceu que o exame microscópico revelou serem as mesmas de Tilapia Galilaea, até porque os lambaris não são dotados de cartilagens em sua constituição.

Caso não tenham atendidas as suas reivindicações, os autônomos não-estabelecidos ameaçam com a legalização plena de suas atividades e mercadorias comercializadas, emitindo as respectivas notas fiscais em três vias e procedendo ao recolhimento de todos os tributos em vigor nas esferas municipal, estadual e federal. Jorginho Bicicreta argumenta: “Aí é que eu quero ver a porca torcer o rabo. Que pai de família hoje consegue comprar DVD, pen-drive, notebook, carregador de pilha e boneca que faz xixi com o preço incluindo tudo quanto é imposto? Heim, me fala??? Nós cumprimos uma função social. Veja bem, o muambeiro e a sacoleira hoje precisam os dois serem ambos igualmente valorizados”.

Ao tomarem conhecimento da greve, ambulantes de várias cidades da região desembarcaram em massa na estação rodoviária e começaram a ocupar os espaços deixados pelos camelôs grevistas. Um deles, que não quis ser identificado, pronunciou-se: “Precisamos aproveitar rapidamente esse nicho de mercado. A população pode ficar tranquila que continuará tendo o que tinha antes, com maior variedade e preço ainda mais baixo. Essa greve dos camelôs locais mostra a força do cartel da muamba, que só quer defender seus privilégios e impedir a livre concorrência”.


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sábado, 14 de março de 2009

AD ETERNUM


Eis que de novo me deparo com a nada consoladora ideia de que o sistema solar é espantosamente semelhante a uma estrutura atômica, e que a diferença não passa de uma questão de proporção e de velocidade. E se a Terra for um dos elétrons de um dos milhões de átomos de uma ponta de lápis sobre a mesa de um escritório, numa outra e gigantesca Terra?


Largo Newtons, Galileus e Sócrates deitando postulados pelos cotovelos e me agarro ao manto de Abraão e ao cajado de Moisés, no pasto verde das verdades simples. Ovelha, deixo que me conduzam por dogmas que se bastam, convertido ao fato de que existem mesmo as moradas celestes, onde nem traça ou ferrugem, epidemias ou bandidos roubariam o sossego dos descendentes de Adão. Onde, indefinidamente vivos, habitaremos gratos. Cada família em sua casa de grossas paredes fincadas no éter. Mansões onde, após banquetes generosos, tem-se o sagrado direito à sobremesa predileta, que por também ser eterna se reconstituiria a cada mordida, para a glória das gulas.


Pais e mães tomando perpetuamente conta de seus rebentos, com muitas rugas a menos por saberem que suas crianças serão poupadas no juízo final, mesmo porque o juízo final não será tão final assim. A vida se espreguiçando infinito afora, o beijo mais sorvido se alongando até a exaustão, se exaustão houvesse no mundo lá de cima. Todos volitando com trechos de salmos impressos nas túnicas, Beethoven escorregando num tobogã clave de fá, nenhum passarinho preso, sinos aos montes dobrando e marcando a hora de lembrar que nunca é tarde.


Tempo e espaço se liquefazendo, Van Gogh de velocípede a ziguezaguear por latifúndios de girassóis. Cada um se lambuzando de sua Pasárgada privativa, desobedecendo zombeteiramente as recomendações médicas, sem noção de comedimento e sensatez, metendo os pés pelas mãos, fazendo tudo o que faltou ser feito quando envolto pela carne. Se convencer de que a Terra é plana, de que aconteceu o dilúvio, de que tudo foi criado em exatos 6 dias, sem nenhuma hora extra ou percalço que desanimasse o Maioral. Ter a confiança dos que se sabem amparados, e saltam sem se preocupar se o paraquedas vai abrir.


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sábado, 7 de março de 2009

CACA - CENTRAL DE ATENDIMENTO AO CONSUMIDOR ALVORADA


Ficamos gratos pelo contato estabelecido através do “Fale com a gente” do site alvoradaonline.com.br. É graças a manifestações sinceras e isentas como a sua que podemos aperfeiçoar os nossos produtos e corresponder às expectativas de uma extensa e cada dia mais diversificada legião de consumidores.

O senhor queixa-se da aspereza e consequente desconforto ocasionado pela nossa versão standard, comercializada exclusivamente em fardos de 32 unidades e à venda nos atacadões Kiprecinho e Valemax, nossos distribuidores autorizados na Serra da Bocaina, região em que o senhor reside.

Quanto à aludida fricção entre o produto supracitado e a parte anatômica tão reiteradamente mencionada em sua reclamação, lembramos que um nível de abrasividade mínimo é indispensável para que as suas necessidades sejam atendidas sem perda de performance – entendendo-se, no caso, o termo “necessidades” em ambos os sentidos.

Em nosso setor de pesquisa e desenvolvimento, nos balizamos por um coeficiente de atrito adotado mundialmente pelos melhores fabricantes e homologado como parâmetro pela Organização Mundial de Saúde.

Lembramos que também disponibilizamos em nossa linha as versões de folhas duplas, extra macias, absorventes e com essência de lavanda, nos modelos “Light Pétala”, “Veludão” e “Carícia”, todas com o selo AA (Anti-Assadura) da Sociedade Brasileira de Estudos Avançados em Dermatologia.

Passemos à sua próxima queixa, esta um pouco mais técnica mas igualmente infundada. É preciso esclarecer que a perda resultante da porção de produto que permanece aderida ao cilindro de papelão está dentro da margem tolerada pelo Inmetro, como estabelecido na norma 186.450/78B. Sugiro que compare os nossos índices (20 a 22,5 cm) aos da concorrência e tire suas conclusões. De antemão, podemos afiançar que a nossa marca é a que oferece a mais vantajosa relação custo-benefício.

Lembrando suas próprias palavras, de que a porção de produto entre um picote e outro “não dá nem para o começo”, vale ressaltar que tal medida atende aos requisitos do cidadão médio, em condições normais de uso e sem alterações significativas em seu metabolismo. Nada impede que se lance mão de duas, três ou mais porções a cada utilização, sem que tal fato fira as normas do Código de Defesa do Consumidor ou represente abuso de poder econômico.

No campo “Críticas e Sugestões” o senhor lança a ideia de colocarmos no mercado uma categoria de produto com histórias em quadrinhos, segmentadas por assunto, público e faixa etária, tendo em consideração o arraigado hábito da leitura no banheiro. Sua sugestão é válida e aparentemente inédita em âmbito mundial, merecendo cuidadoso estudo de viabilidade pela área competente. Contudo, a estratégia de “continua no próximo rolo” seria melhor aplicada a contos e romances, já que uma história em quadrinhos com mais de 30 metros, e ainda mais com continuidade, seria demasiadamente enfadonha para o usuário, ainda que este sofra de constipação intestinal crônica.
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