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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

BIANCA



Imagem: wikimedia commons




I
Bianca, a mais do que muito séria, fizera filho no banco da frente do Dodge emprestado, as costelas raspando no volante, de longe se via o carro chacoalhando. Fosse de fato séria a fama de séria, ela não chegaria a tanto, não a ponto de esfregar-se em pelo, unhas e secreções a céu aberto e justo com aquele um, o primeiro que se achegou no começo da quaresma.


II
Nunca a tão fêmea Bianca pareceu tão pálida e tão perdida, quando chamou num canto a mãe para uma dura conversa. E lhe falou do filho vindo, ia assumir o mau passo. Era uma quinta esquisita, onde se via uma lua de estranhíssimas crateras.


III
A doce e insensata Bianca, ainda que poucos soubessem, era valise sem dono. De tão distraída que era, nem se lembrava com quantos tinha dormido e acordado sem que adivinhasse o nome e sem que soubesse que aquilo não era coisa que se fizesse. E foi assim que o filho, de pai com ficha na polícia e feito às pressas num Dodge, cresceu um moço perverso, maldizendo o berço infame e os tropeços de Bianca, sua mãe, a bem nascida.


IV
Bianca, a mais linda ainda que mais velha, passou a trazer na pele um bocado das crateras da lua de outros tempos. Enclausurou-se e deixou que a vida lhe vincasse num convento – que acabou sendo invadido por um moço de capuz, condenado a 30 anos pelo estupro de uma freira.



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 16 de fevereiro de 2013

DORIVAL NÃO ERA ASSIM




imagem: wikimedia commons



- Estou lhe dizendo e tenho como provar. Fui o personal trainer do Dorival Caymmi de 1976 até o dia do desencarne. Ele fazia a vida toda o marketing da preguiça baiana, essa é que é a verdade. Ninguém chegaria aos 94 se entupindo de vatapá, espraiado na rede e só saindo dela para ficar se lamentando de saudade da Bahia.

- Mas nenhum baiano fez isso tão bem quanto ele.

- Lógico. Quem sou eu pra questionar? Mas se tinha tanta saudade assim da terra dele, porque não voltava logo de uma vez pra lá? Podia morar onde bem entendesse, o homem era mito, monstro sagrado. Ele não queria era sair do Rio de Janeiro, da academia de ginástica particular que tinha em casa, das doses cavalares de Mega Mass.

- Você é um caluniador, está chutando cachorro morto. Cometa suas infâmias com quem é vivo e pode se defender. O que você quer é difamar o bom nome do ícone da letargia soteropolitana. A malemolência malandra do brasileiro deve muito ao sábio sedentarismo de Dorival.

- Pois eu lhe digo que o homem puxava ferro como ninguém, meu amigo, das quatro às sete e meia da manhã, inclusive aos domingos. E depois dos aparelhos de musculação vinham as sessões infindáveis de abdominais e bicicleta ergométrica na carga máxima. Aí quando chegava a imprensa ele escondia tudo, me dispensava mais cedo e vinha com aquela conversa que não fazia esforço pra não gastar o corpo, que esse era o segredo da longevidade, a baboseira toda que você já conhece e que a mídia só foi ajudando a espalhar. Baiano esperto, espertíssimo. Aquele andar moroso era cansaço físico. Era fadiga muscular, ligamento estirado e outros transtornos de quem pega pesado demais na malhação. E o Brasil inteiro pensando que o homem ficava ensaiando três dias antes de se levantar pra fazer xixi...

- Mas e a barriga? Quem faz tanto exercício assim fica lisinho de abdômen.

- Já viu alguma foto dele de barriga de fora?

- Não.

- Pois então. O que parecia ser barriga debaixo da camisa era enchimento, e enchimento de chumbo - o que ajudava ainda mais a manter a forma enquanto ele ia pras gravações, programas de auditório e coletivas de imprensa. Uma vez, quase que um paparazzo deu um flagra. A cortina da sala tinha ficado um pouco aberta e ele estava em pleno trabalho de tríceps, com a toalha em volta do pescoço e mamando isotônico de canudinho. Foi depois disso que eu disse a ele pra trocar o squeeze por um coco verde de plástico com revestimento térmico.

- Sei, sei. Você quer é ganhar holofote e dinheiro com essa história. Aposto que já tem um livro pronto, coisa de jornalista decadente e endividado que aparece do nada com biografia caluniosa não autorizada, feita pra criar polêmica e arrumar encrenca judicial com a família do morto.

- Olha, esse desaforo eu vou fingir que não escutei, tá certo? Outra falácia foi o que alegaram como sendo a causa mortis do Dorival: um câncer renal. Faz-me rir, se soubessem o quanto eu alertei o Caymmi pra pegar leve... mas ele era teimoso e dizia que ia fazer só mais um pouquinho de exercício. E aí era mais uma série de 100 flexões, no outro dia mais 200, depois 500 a mais do que o recomendado pra idade dele. Não demorou muito para o dia fatal. Ele tinha terminado o step e foi direto pro halteres, começando com 150 quilos. Fez 22 levantamentos consecutivos, depois 40 minutos de esteira a 25 km por hora. Quando ia sair para se abastecer de anabolizante, a máquina finalmente entrou em pane irreversível e o maior atleta baiano de todos os tempos foi encontrar Mãe Menininha.

- Sei... aquela que todo ano vencia a maratona de Nova York, né?



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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

IRA DE ZEBEDEU










É claro que estou no céu, junto dos meus dois célebres filhos: João e Tiago, ambos apóstolos de Jesus Cristo. Moro no paraíso mas minha autoestima há mais de 2000 anos vive nos quintos dos infernos.

Que não existam muitas pessoas que se chamem Judas, Herodes ou Pôncio, vá lá, justifica-se. Mas a que se deve a ausência de Zebedeus nas certidões de nascimento pelo mundo afora? Meu nome é tão bíblico quanto os nomes de meus filhos, embora meus dois rebentos apareçam mais vezes que eu nas Sagradas Escrituras.


A propósito, pai de santo (não confundir com a autoridade da Umbanda), e no meu caso de dois santos, deveria com toda justiça ser tratado como santo também. No entanto, milhões pessoas se chamam João e outras milhões são batizadas como Tiago. Mas por acaso alguém conhece outro cristão, além de mim, que se chame Zebedeu?

Uma explicação para essa repulsa talvez esteja no fato de que Zebedeu é quase um anagrama de Belzebu. Sim, é uma hipótese. Assim como é provável que muitos desistam de criar xarás deste que vos fala porque a criança seria a última a constar nas listas organizadas por ordem alfabética - ficando à frente apenas de improváveis Zildas, Zoroastros e Zulmiras. Outros podem alegar que o nome simplesmente é feio que dói, mesmo que este seja um critério subjetivo.

É bom lembrar ainda o desserviço que prestam alguns dicionários, ao definirem "Zebedeu" como burro, palerma ou abestalhado, disseminando mais e mais a maldição zebedêutica. Oh, Senhor dos Aflitos, o que será que fiz de errado para merecer tanta e tão injusta humilhação? Mais triste ainda é ver aqueles que recebem meu nome como apelido infame, muitas vezes horrivelmente grafado como "Zé Bedeu". Também já me impuseram a vergonha de associar minha sagrada pessoa a grupos de forró, blocos carnavalescos e duplas sertanejas de mal afamado repertório, o que é ainda mais grave e ultrajante para quem sempre andou na linha enquanto esteve na Terra.

Fosse meu nome mais bonito, certamente a Igreja há séculos já teria me canonizado. Mas não, fui sendo posto de lado e vendo, com indignação, gente bem menos santa sendo elevada à santosfera sem maiores embaraços teológicos ou burocráticos.

Chega, é hora de reabilitar minha moral na praça, custe o que custar! Para isso, deixo desde já bem clara a minha intenção de abençoar pessoalmente e proteger cada passo da vida do sujeito que batizarem com meu nome. Será coberto de bem-aventuranças e terá minha intercessão exclusiva em favor dele junto à alta corte celeste. Isso eu juro, ou não me chamo Zebedeu.


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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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sábado, 2 de fevereiro de 2013

EVOLUÇÃO DO HOMEM - A ERRATA



Imagem: wikimedia commons



A ciência acaba de comprovar, agora oficialmente, aquilo que todas as evidências demonstravam: o homem não é o macho da mulher, da mesma forma que a mulher não é a fêmea do homem.

Passado o espanto inicial da descoberta, é preciso reconhecer que isso explica muita coisa. Para começo de conversa, chegou-se à conclusão de que o
que ocorreu na verdade foi a extinção ou o não-desenvolvimento, ao longo da escala evolutiva, do macho da mulher moderna. Um descompasso onde notou-se fantástica evolução do gênero feminino, num dado período de tempo, concomitantemente a uma inexplicável involução do bicho homem.

Trocando um pouco mais em miúdos e em linguagem leiga o longo e minucioso estudo, podemos dizer que o homem das cavernas teve a sua mulher das cavernas, o pitecantropo teve a sua pitecantropa, o neanderthal teve a sua neanderthala, o homo sapiens teve a sua fêmea sapiens e daí em diante deu-se o surgimento da espécie que o estudo denomina mulieris modernensis - que continuou se acasalando com o velho homo sapiens por absoluta falta de opção, já que este ficou marcando passo física e intelectualmente. A causa do ocorrido, entretanto, ainda é um mistério para os cientistas.

Daí tantos divórcios e casamentos fracassados, a ponto da separação tornar-se praticamente a regra dos matrimônios. O que leva a crer que os raríssimos casamentos que dão certo se devem a um destes fatores: ou homens um pouco mais evoluídos que a média, ou mulheres menos.

Algumas peculiaridades nos caracteres sexuais secundários e nos hábitos observados ofereceram valiosos subsídios para que a ciência chegasse à conclusão ora divulgada. A densa pelagem masculina, a maior truculência nos gestos e atitudes, a proeminência do pomo-de-adão, a rudimentar mania de deixar toalhas de banho molhadas sobre a cama e o fanatismo por esportes violentos são alguns dos indícios a sustentar a tese de que o homem está mais próximo do orangotango do que de sua própria esposa. Uma vez que estes e outros fatos e comportamentos não encontram correspondência na fêmea humana, a óbvia conclusão é de que homens e mulheres são espécies diferentes.

Mantida em sigilo até o momento pela comunidade científica, a pesquisa antropológica e seu contundente resultado pode determinar uma convulsão social sem precedentes. Alguns grandes expoentes do meio acadêmico sugerem que dificilmente o documento será visto com apatia ou indiferença, especialmente pelos movimentos feministas. As mulheres podem reivindicar - e com abalizada razão - a soberania sobre os desígnios do mundo e o domínio sobre o sexo masculino, mantendo os homens cativos ou na condição de animais domésticos. Já os homo sapiens, que de sapiens têm na realidade muito menos do que supunham, provavelmente se organizarão num grande levante mundial contra a dominação feminina, lançando mão de tudo o que estiver ao seu alcance - de armas bélicas as mais diversas até esquecimentos coletivos de aniversários de casamento.

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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
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