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sábado, 28 de março de 2015

MAKING OF COM MICHELANGELO



Vaticano, quarta-feira, por volta de duas da tarde. Michelangelo dá início ao mais célebre dos afrescos: o monumental teto da Capela Sistina. Um Cardeal, muito próximo do Papa Julio II, acompanha o trabalho.


- Deus sabe que estou pegando esse serviço a contragosto. Meu negócio é escultura, Roma inteira sabe disso.
- Então serão anos de penitência. Começando agora, em 1508, o senhor deve terminar lá para 1512.
- Anos de penitência e de torcicolo. Muito torcicolo. Mas encomenda de Papa não se nega, né? Vou encarar esse inferno para tentar garantir um lugarzinho lá no céu.
- Desculpe a indiscrição, mas como você combinou o pagamento? Por dia ou empreitada?
- Por empreitada. Por dia, nem a Igreja Universal aguentaria pagar.
- Lá isso é.
- Multiplique 365 por 5 e vê só onde é que iria parar essa conta...
- Se me permite o comentário... esse tom que o senhor deu na unha do profeta isaías. Parece que tá com micose, tem amarelo demais...
- E essa cor aí, da sua batina... Tá meio pink, não tá não? Para um cardeal honorável como o senhor, não pega bem. 
- Que heresia! Isso é desacato à autoridade eclesiástica. Eu só estou querendo ajudar. Papa Julio provavelmente vai reparar nessa unha esquisita, e é melhor dar uma garibada agora do que ter que refazer o trabalho depois.
- Tá bom, daqui a pouco eu cuido disso, Cardeal.
- Michelangelo, eu vejo que você pincela direto no teto. Não tem um esboço prévio. Os rostos dos personagens bíblicos vão surgindo na sua cabeça?
- Não é bem assim, não. No caso do pessoal ficha limpa como Noé, Moisés, Isaac e mais uma pá de gente boa eu coloco rostos de amigos meus. Agora, quando é o capeta, o Caim e outros da galerinha do mal, esses ganham rosto de credor, de cobrador de imposto, de gente metida que não me olha na cara quando me vê na rua, de uns e outros pra quem eu fiz retrato fiado e nada de pagamento até hoje.
- Mas vai que um belo dia  eles se reconheçam na pintura, depois de tudo pronto? Entram com um processo na justiça e você perde todo o serviço. Fora a multa por danos morais.
- Sei...
- Bom, outra coisa: você solicitou ao setor de compras um estrado de cama de casal e quatro rodinhas. Não tenho a menor ideia do que isso tem a ver com seu trabalho.
- O estrado é para colocar em cima do andaime, para que eu possa trabalhar deitado. As rodas são para movimentar o andaime com mais facilidade. Caso contrário, a cada meio metro de pintura pronta eu teria que descer do andaime, empurrá-lo um pouquinho para a frente, escalá-lo de novo e continuar a pintura. Essa sacada quem teve foi o meu amigo Leonardo, um cara muito engenhoso. Não demora muito pra que toda loja de material de construção só venda andaimes assim, já com as rodinhas incluídas.
- Está bem, vou providenciar.
- Ah, tem um detalhe importante: o estrado precisa ter um buraco no meio. Essa também foi meu amigo Leonardo que sugeriu. A gente instala um sistema de cordas e roldanas que leva bebida e comida aqui de baixo lá pra cima. Dessa forma eu não preciso ficar subindo e descendo a toda hora. Pelo mesmo buraco pode passar também a comida e a bebida depois de processada, se é que me entende...
- Assim seja, Michelangelo. Só avisa o empurrador de andaime quando vier número 1 e número 2 lá de cima, pra ele ficar esperto. Misericórdia, não há cristão que mereça um castigo desses. 

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sábado, 21 de março de 2015

DESCARTE PROGRAMADO



"Espanhol cria lâmpada que não queima e sofre ameaça de morte

É possível fazer produtos que durem a vida toda? Benito Muros, da SOP (Sem Obsolescência Programada), diz que é possível. Por isso está ameaçado de morte. O conceito de obsolescência programada surgiu entre 1920 e 1930 com a intenção de criar um novo modelo de mercado, que visava a fabricação de produtos com curta durabilidade de maneira premeditada, obrigando os consumidores a adquirir novos produtos de forma acelerada e sem uma necessidade real. A lâmpada criada por Benito tem durabilidade prevista de mais de 100 anos". (Fonte: mundogump.com.br)



Materiais baratos e de baixa qualidade irão produzir lâmpadas que duram muito menos que as mil e cem horas previstas para os modelos incandescentes. 

Lâmpadas que equiparão faróis de eficácia duvidosa em carros projetados para sofrerem pane, amassarem fácil, enferrujarem logo  e moverem a tentacular engrenagem dos serviços de reparo e de reposição. 

Carros inseguros dirigidos por motoristas que no trânsito pilotam telefones celulares com baterias programadas para deixá-los na mão quando mais precisarem. 

Baterias que eles nunca irão trocar, pois valerá infinitamente mais a pena substituir os celulares ao invés delas. 

Capas protetoras de celular feitas de silicone rigorosamente testado para ressecar e rachar em um mês e meio, quando muito. 

Com capa de silicone e tudo, cada aparelho jogado fora irá fomentar uma cadeia de centenas de fornecedores que continuarão abastecendo fábricas prontas a produzir celulares mais modernos, mais rápidos, mais leves e mais propensos a sucatearem o quanto antes. 

Sucata que, reciclada, voltará à ciranda do consumo na forma de outros bens mal produzidos, embalados em plástico-bolha cujas bolhas são mais frágeis que bolinhas de sabão.

Sabão que fará a roupa desbotar irremediavelmente após a terceira lavada, e a tinta solta na máquina manchará outras roupas que também serão perdidas e virarão panos de prato. 

Panos que enxugarão louças da loja de um e noventa e nove, lascadas precocemente e trincadas pelo calor do microondas comprado ontem via web.

Microondas que ontem mesmo foi reembalado no plástico-bolha que nada protege e levado às pressas para a assistência técnica, porque apresentou defeito no seletor digital.

Digitais que não serão reconhecidas pelo leitor biométrico do caixa eletrônico, ensebado pela gordura deixada por milhares de dedos de milhares de pessoas que buscam milhares de notas para pagarem as milhares de prestações pela compra de milhares de inutilidades. 

Pessoas que precisam ter sua expectativa de vida reduzida de maneira drástica, já que a alta longevidade elevará perigosamente os índices demográficos, congestionará os hospitais e comprometerá o sistema previdenciário, que não terá como arcar com uma sobrevida maior que a prevista pelo Ministério da Saúde.


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sábado, 14 de março de 2015

FECHADO PARA BALANÇO



1
Aquelas tantas luzinhas que enxergamos ao apertar os olhos com força. Foi nessa hora que te vi dourada e escorregadia, pelo menos assim você me parecia deslizando pelo túnel das córneas, sorrindo e vertendo mel. Estamos os dois a passos muito largos para sabe Deus, em vias de virar xepa de estranha feira, tiozão e tiazinha alçando o gozo das cinzas. O tempo parece que cisma de desnortear ponteiros. Agora, só reencarnando.



2
Parem as máquinas que eu quero o viço dos azuis multipiscinas, bolo-mármore perfumando meus quintais, a ânsia de escalar painas - os anos verdes, enfim. Esconde-esconde de nada que me subtraia esses dias: respondo em todas as instâncias pela vida em que me meti. Dispenso os atenuantes por todo o errado que fiz, do que podia e não foi, esses dilemas de antanho. Um zero de serventia. Não tiro meu corpo fora: zona de conforto é puteiro com colchão d'água.



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