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sexta-feira, 26 de agosto de 2011

NASCE UMA HOLDING

Ilustração: Thiago Cayres




Seja no mercado corporativo, seja no residencial, a pujante indústria de monogramas (para quem não sabe, camisas e roupas de cama e banho com as iniciais do usuário) vive hoje uma fase áurea. A disseminação desenfreada do seu uso, especialmente dos modelos em letras góticas, traz alento aos tradicionais fabricantes e aguça os empreendedores que procuram oportunidades de fazer dinheiro rápido com risco zero.




Ainda que muito promissor, o segmento definitivamente não é para amadores e aventureiros do marketing. A empreitada exige ciência e faro, e não basta um portfólio com meia dúzia de pijamas bordados para transformar um reles auxiliar de costura num Christian Dior dos monogramas, com unidades fabris da China ao Cazaquistão.



Mesmo quem já está estabelecido e com sólida carteira de clientes sabe que o negócio não prospera sozinho, e que é imperioso inovar sempre - especialmente nos sistemas de gestão.



No intuito de reduzir custos, obter total controle da qualidade do produto final e concentrar os diferentes elos da cadeia produtiva de monogramas sob um único guarda-chuva, optamos pela criação da Holding Monograma Inc.



O Grupo compreende coligadas de administração autônoma, cada uma delas responsável por fomentar com seus insumos uma etapa específica do processo industrial.



MONOGRAMA FAZENDAS REUNIDAS

Área total de 20.634 hectares destinada ao cultivo de algodão, matéria-prima básica para as linhas de cores variadas e em sintonia com as últimas tendências dos mercados interno e externo.



MONOGRAMA BIOAGRÍCOLA S/C

3 plantas dedicadas à pesquisa, ao desenvolvimento e à formulação de defensivos agrícolas para aplicação nos algodoais. Todas em conformidade com a legislação ambiental vigente e regidas pelos mais modernos conceitos de automação e sustentabilidade.



VAD RETRÓS S/A

Empresa de sociedade anônima que reúne centenas de máquinas injetoras de plástico bioformulado, dedicada à produção dos retroses das linhas a serem utilizadas nos bordados.



NEEDLES & NEEDLES LTDA.

É a Metalúrgica do Grupo, responsável por suprir a manufatura de monogramas com dedais e agulhas de costura de variados calibres.



ETFMO - ESCOLA TÉCNICA DE FORMAÇÃO DE MÃO-DE-OBRA

Forma, capacita tecnicamente e disponibiliza programas de reciclagem aos nossos 37.871 colaboradores diretos, ou seja, o quadro de funcionários alocados na execução propriamente dita dos bordados - etapa final de um longo e dispendioso processo, recompensado pela incontestável e cada vez mais elástica liderança de nossa marca.



Concluindo, convidamos toda a população a participar do projeto "Monograma, minha gente!", a ser realizado no próximo dia 7 de setembro, no Estádio do Mineirão. Nosso objetivo é reunir um total de 65.000 pessoas para bordarem, simultaneamente e ao som do Hino da Independência, aquele que seria o monograma de Dom Pedro I, contemplando as iniciais de seus 18 nomes: Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. A empreitada, com duração prevista de 22 horas ininterruptas, premiará com um carro zero quilômetro a(o) bordadeiro(a) amador ou profissional que primeiro concluir a tarefa proposta. O evento será transmitido em rede pelos canais abertos de televisão, sem intervalos comerciais.



© Direitos Reservados



Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.


Blogs:

www.consoantesreticentes.blogspot.com (contos e crônicas)

www.letraeme.blogspot.com (portfólio)

Email: msguassabia@yahoo.com.br



sábado, 20 de agosto de 2011

RAINDROPS




A chuva mansa e criadeira me levou em correnteza à releitura de Herman Hesse, Machado e Florbela Espanca. Às vezes em pingos fortes, açoitando minhas janelas, chegava lembrando o medo das cucas e lobisomens, sentimento adormecido desde a época em que os lobisomens e as cucas existiam aqui de fato.







Serena mas decidida, faz serviço caprichoso de empenar as madeiras, traga os barcos de papel e os de verdade, encharca por onde passa. Tinge de musgo as pedras, provoca o estrago que quer. Perseverante, dura bem mais que os dois volumes capa-dura do Machado, do meu “Sidarta” já em frangalhos e da fininha antologia da Florbela. Finda a faina literária, me faz separar as roupas em uso das que não servem, erguer castelos de cartas, deletar e-mails lidos e um mundo de outras tarefas que jamais levaria adiante se sol houvesse, por tímido que fosse.






O chumbo do céu chuvoso, convite mais que aceitável ao nada pra se fazer. Céu que me ilha e me avisa que é inútil tentar sair, tão cedo não irá ceder esse concerto de trovões. E dá-lhe água despencando.






Fechadas as portas que dão pra fora, a chuva me ordena a olhar pra dentro, para o que havia de seco e há muito pedia uma rega farta e recompensadora. Ao longo desses dias tão iguais, ela foi moldando minha carcaça no aconchego da poltrona, me trouxe de volta ao piano que há anos nem abria. E reparei naquele Mi desafinado desde nem sei quando. A chuva que também é uma nota só e que marcou novembro em Andante Cantabile, atravessou dezembro em Allegro Moderato e ao, que tudo indica, encerrará janeiro em Presto Molto Vivace.






De garoa a tempestade, a chuva me botou em posição de lótus, com a espinha ereta e o coração tranqüilo como o Walter Franco naquele disco anos 70, a Revolver fantasmas. Me deixou menos urbano e instalou narina adentro o pasto e o estrume de vaca, mais raros e intraduzíveis que o mais fino dos Chanel. A chuva tem sido tamanha que borra as letras dos livros mofando nessas estantes. Não autorizou a fazer nada do que havia planejado, mas me mostrou que as urgências não eram assim tão urgentes. Que espera é maturação, que tempo tinha de haver pra escutar sua cantilena.






Deito, durmo e sonho aos pingos, enfronhado nos torós. Enquanto os móveis de casa bóiam na enchente insana, eu vazo por todos os poros, choro água da borrasca, viro bica como tudo à minha volta.






E o barulho da chuva, que me trouxe o pesadelo, é o mesmo que me desperta. Vejo o bolor nos rejuntes e cogumelos multicores fermentando no quintal. Ela, que impacienta as crianças e apascenta os velhos. A chuva que cai sobre os recém-defuntos, coada por 7 palmos de terra. Criando adubo, abrindo poças e transbordando poços nas chácaras que se estendem pra além do alcance da vista. A chuva que não para e que, reinando feito déspota, quer que o assunto seja ela e nada mais.






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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.



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sábado, 13 de agosto de 2011

ELE


Imagem free: Stock Xchng


Esse era o quarto dele. Ainda é, quando acontece de vir até aqui ver essa velha que Deus insiste em não querer levar. Rústico desse jeito, pé direito alto e esse exagero de janelas. Ele, menino, ficava brincando de acender e apagar a luz, com esse interruptor do lado da cama. Falava de cinema, gostava disso. Godard, Fellini, Antonioni, gente assim. Tá tudo como era, só a lâmpada que desde 1965 trocamos umas vezes. Mas não muitas, umas quatro. Pra você ver como o cômodo de lá pra cá ficou mesmo abandonado. Certa ocasião, em campanha, Antônio Carlos ficou hospedado aqui. De noite, nessa cama, ele ficava pensando. Tô falando dele, não do Antonio Carlos.







Esse vidro de Hellman's aí em cima do criado-mudo tem a camaleoa que um dia ele raptou numa moita da pracinha e resolveu conservar no formol. Tá mais pra iguana, porque camaleão é bicho que não tem na Bahia. Não se desfez do pobre, disse que dava sorte. Mas também não levou pro Rio. Então fica aí, fazer o quê.






Eu, você sabe, é de casa pra igreja e da igreja pra casa. E quando estou no meu canto, é o dia inteirinho abrindo a porta a quem bate pra conhecer o lugar onde ele nasceu. Não é difícil chegar carro apinhado de gente, mas nunca falta uma cajuína geladinha com tapioca pra servir.






Sei dizer que, com aquela história toda de misturar Chacrinha, Vicente Celestino, um tal de Oswald de Andrade, Beatles, parangolé, ditadura e o que mais estivesse sob o sol nas bancas de revista, ele foi indo e ficando conhecido, nada no bolso ou nas mãos. Pelo menos no começo, antes das câmeras, porque depois o bolso não ficou mais vazio, muito pelo contrário. Mas nem por isso o deixei de fora das minhas orações, achava aquilo tudo um endoidamento passageiro, coisa de cabeludo de um tempo conturbado. Quando eu tinha, sei lá, uns sessenta e ele uns vinte ou um pouco mais, cantando aquela música das Cardinales bonitas.






O irmão mais velho dele mexia com pirógrafo, fazia coisas em madeira pra turista levar de lembrança da cidade. Esse meu menino vive até hoje comigo. Daqui a pouco ele chega e eu te apresento. Não é a cara dele, como a irmã, mas também não é o avesso do avesso do avesso do avesso.






Numa tarde assim, que nem essa de hoje, ele chegou pro irmão, enrolando os caracóis dos cabelos, e falou: "Eu vou escrever aqui uma coisa sonora e linda, tão sonora e linda que é bem capaz de dar filme ou quem sabe música um dia, quando daqui partir pro sul. E é bom que escreva a fogo pra ser difícil de esquecer.






E grafou com o pirógrafo, numa letra um pouco trêmula, uma frase na cuia do berimbau: "Existirmos, a que será que se destina?".






Acontece que hoje, a bem dizer, ele está sabe Deus onde, segue de hotel em hotel, entende como é? Ao léo e sob o mesmo sol nas bancas de revista, só que agora estampando as capas. Ele e a irmã, tão longe e tão daqui, continuam meninos novos correndo no quintal, na minha teimosia de mãe velha. Penso nele, espero tocar o telefone, olho pro retrato dele da época do exílio. E vamos vivendo, com a bênção de Santo Amaro. Quando a saudade dói muito, uma canção me consola.






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sábado, 6 de agosto de 2011

RELÍQUIAS



Ilustração: Thiago Cayres







Com inenarrável satisfação, comunicamos aos amigos, frequentadores e à comunidade em geral que, no recente ranking publicado pela Associação Mundial dos Leiloeiros, ficamos posicionados pelo quinto ano consecutivo em terceiro lugar, atrás apenas das casas de leilão Sotheby’s e Christies.


Queremos dividir esta representativa conquista com todos os que prestigiam o nosso trabalho, e aproveitamos para informar as próximas raridades a serem leiloadas por nosso intermédio, detalhadamente descritas a seguir.


- Pequeno frasco contendo aproximadamente 7ml de água colhida na torneira do quintal da casa habitada por Neneco, baterista do lendário "Sambalançando", 3 meses antes do mesmo tornar-se celebridade nos palcos de Osasco e Guadalajara. Em poder da faxineira que prestava serviços à época, na residência de Neneco, o item possui Certificado de Autenticidade, lacre com holograma antifalsificações e assinatura de perito juramentado. Deusdinéia de Jesus afirma ter acompanhado, enquanto regava as plantas, vários ensaios dos futuros ídolos das gafieiras dos anos 50 e 60. Antevendo o sucesso que em breve fariam, a profética serviçal desviou um balde cheio até a boca da referida água, tendo comercializado, quando do estouro da banda, milhares de frascos a peso de ouro – que renderam à doméstica três apartamentos duplex e um triplex no bairro de Perdizes. Este último frasco remanescente, que irá a leilão em novembro próximo, contém as derradeiras gotas da aquosa preciosidade.


- Uma folhinha de grama do tipo Esmeralda, muito provavelmente pisada por um ou mais membros do "Formidable's Summer Trio", quando a caminho do palco, no show que fizeram dia 03/11/2005, por ocasião da Feira Agropecuária e Industrial de Formosândia. Análise microbiológica da relíquia detectou fragmentos de borracha vulcanizada que coincidem com o tipo de sola do calçado utilizado pelos integrantes do conjunto, que alçou o estrelato pelas mãos do saudoso maestro Luiz de Arruda Paes.


- Prova, contendo erro crasso de revisão, da página 72 do livro “Marimbondos de Fogo”, obra que rendeu ao ilustre ex-presidente José Sarney uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.


- O quarto e mais valioso item encontra-se em exposição provisória na antecâmara do nosso recinto de leilões, sob uma redoma à prova de balas. Transportado em carro blindado com escolta de 12 viaturas, o artefato fez parte do acervo pessoal da soprano Maria Domitila Ferraz Gotlieb, que notabilizou-se como a mais esplendorosa Vanusa cover de Sorocaba e região. Trata-se de um guardanapo folha dupla, medindo 42x42 centímetros quando aberto, com marcas de batom da artista misturadas a resquícios de espaguete à bolonhesa, prato servido à diva cover e sua trupe após show no Clube Athlético "Afufe o Fole", com sede na estrada vicinal que liga Agudos a Agudos Mirim. A renda obtida pelo leilão deverá ser revertida a oito diferentes entidades assistenciais de Morrinhos – GO, conforme prevê o testamento deixado pela artista.




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