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sábado, 30 de junho de 2018

JOÃO DÁ BOBEIRA




- Tá gravando?

- Sim, podemos começar.

- Amigo ouvinte, estamos aqui com o empresário Diógenes Skrauts, dono da maior indústria de infláveis do país, que responde por mais de 80% da produção de joões-bobos brasileiros. Tudo certo com o senhor?

- Tudo bem. Satisfação enorme em participar do seu programa.

- Bom, minha primeira pergunta é sobre o carro-chefe da empresa. Sabemos que o boneco produzido por vocês é um clássico, porém levando em conta o perfil da crianças de hoje, é preciso admitir um certo envelhecimento do produto... A impressão que dá é foi-se o tempo.

- Correto. Tanto que a versão clássica nem existe mais. A crise e as mudanças nos hábitos de consumo nos levaram a novos públicos e nichos de mercado. Joões-bobos caracterizados de políticos, de Presidente da República, de Judas (vendas sazonais para sábados de aleluia), de jogadores de futebol decadentes, enfim... Produzíamos também um modelo em que você tinha a opção de colocar rostos de desafetos, para socar à vontade.

- E aí?

- E aí que foi um furo n'água. Ou melhor, no joão. Mas não nos demos por vencidos. Naquele mesmo ano de 2005, nosso Departamento de Marketing sugeriu o lançamento do Seguro joão-bobo, que garantia a manutenção e o conserto dos bonecos em caso de furos e cortes, pelo período de 48 meses. E sem taxa adicional. Era um plus, compreende? 

- Bom, imagino que isso tenha livrado vocês da bancarrota.

- Que nada, meu caro. Quanto mais usos alternativos nós concebíamos e implementávamos, maior o tombo mercadológico.

- A recessão parece ter nocauteado em cheio os bonecos... E depois dessa série de infortúnios, apareceu alguma ideia redentora que conseguisse reerguer a empresa?

- Pois é, foi quando nos ocorreu um caminho diferente, atrelando o joão-bobo ao processo educativo - mais especificamente às conjugações verbais, que é um verdadeiro "calcanhar de aquiles" pedagógico. Na embalagem de cada joão-bobo, a criança encontrava um livrinho de bolso com todas as conjugações dos principais verbos, para auxiliá-la na escola.

- Não sei, isso também me parece pouco atraente.

- É, tínhamos esse risco em mente. Afinal, uma criança recorre ao joão-bobo para se divertir, não para lembrar da escola... Mas decidimos arriscar, lançando o joão-sabichão. Óculos de fundo de garrafa, semblante inteligente, jeitão de CDF. Estampado nele, a conjugação de "joão-bobar" no presente do indicativo: Eu joão-bobo, tu joão-bobas, ele joão-boba, nós joão-bobamos, vós joão-bobais, eles joão-bobam.

- E deu certo a empreitada?

- Creia-me: foi um tempo de vacas gordas. Bem gordinhas. Na verdade, a venda para a criança, pessoinha física, não deslanchou. Porém, elaboramos um sofisticado sistema de proprinas com alguns colégios das redes pública e particular no Rio Grande do Norte, inserindo o joão-sabichão como recurso didático em sala de aula. Entretando, após um bom período de curva ascendente, as vendas foram minguando, a coisa deixou de ser novidade. Nossa mais recente investida foi lançar o joão-bobo à base de troca e o ecologiamente correto. 

- Fale mais sobre isso...

- No caso do joão à base de troca, o consumidor traz o seu joão estragadinho à loja e ganha um superdesconto na compra de um novo. Já o ecologicamente correto é produzido com material biodegradável, não agredindo o meio ambiente no hora do descarte. A ideia é introduzir nas lojas um joão de personalidade esperta, antenado nas novidades e na preservação dos recursos naturais... isso está na ordem do dia!

- Aí sim, heim...

- O slogan é "De bobo, esse joão não tem nada". Semana que vem, estaremos analisando os primeiros relatórios de vendas. Dependendo do desempenho, criaremos novos modelos ou encerraremos de vez a produção. 

- Boa sorte, e obrigado pela entrevista!

- Eu é que agradeço.




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sábado, 23 de junho de 2018

ALERTA: RICARDÃO À FRENTE





Pois então, veja como são as coisas. Eu era um daqueles sujeitos com colete refletivo e bandeira de advertência em mãos, à beira da rodovia, sinalizando desvio, obra ou acidente à frente.

Para quem gosta de trabalho metódico e 100% previsível, ganhar a vida fazendo o que eu fazia era estar no paraíso. Ou, pelo menos, na estrada que leva a ele. 

Mas nem tudo é perfeito. O movimento ininterrupto do braço direito chacoalhando a bandeirinha para cima e para baixo me presenteou com uma LER, depois de um ano e meio de serviço. Foram quatro meses de licença médica, e voltei à labuta com a recomendação do fisioterapeuta de não movimentar o braço, apenas deixá-lo esticado, pois o vento batendo na bandeirinha já bastava para a sinalização.

Um dia tentei variar o braço, empunhando a bandeira com o esquerdo. Mas aí me dei conta de que ficava de costas para os motoristas, o que me valeu uma senhora raspança do meu supervisor imediato. Disse na ocasião que a minha falta era dupla - de educação, por não ficar de frente para o usuário, e de amor à vida, já que não poderia enxergar e desviar a tempo de um carro que viesse em minha direção. 

Quinze dias depois, descobri o quanto aquela minha iniciativa de revezamento braçal tinha sido desastrosa. Era uma sexta à tarde, quando fui chamado ao RH.

Engrossando as estatísticas de 14 milhões de desempregados, me vi sem eira nem beira e muito menos acostamento. Desorientado, batendo perna a esmo atrás de colocação ou trabalho temporário, dei com uma placa de "Contratamos" na fachada de um velho galpão, onde antigamente funcionava uma fábrica de espoletas.

Ironia do destino: o barracão tinha virado uma indústria de "ricardões", aqueles bonecos que substituem os sujeitos que fazem o que eu fazia. Alguns empunhando binóculos, outros com bloquinhos de multa e boa parte deles com a maldita bandeirinha cor de abóbora, que ao ser despedido jurei nunca mais querer ver na frente. 

Não sei dizer se minha experiência anterior à beira da estrada colaborou para que conseguisse a vaga, mas o fato é que no dia seguinte estava a postos na linha de montagem de ricardões rodoviários, réplicas mal-acabadas de mim mesmo.

Até que ontem me apareceu para produzir um ricardão-supervisor, com roupa idêntica e fisionomia parecida com o carrasco que me colocou na rua. 

Não pude disfarçar um esgarzinho de satisfação no canto da boca. Tentei despedi-lo da minha cara, mas ele se recusa a ir embora.


Imagem: http://reflectivevestsindia.blogspot.com
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sábado, 9 de junho de 2018

Ó DE CASA!





A labuta acontecia no aconchego do lar, gostava e nem se lembrava mais do tempo em que não era assim. Full-time home-office, desde 1996, no quartinho de empregada promovido a escritório. 

No começo passava por fax os cálculos, análises, avaliações, laudos e relatórios, depois via email, skype, messenger e whatsApp. A cadeira veio da Etna, a mesa da TokStok, o computador do Submarino, o telefone sem fio da Americanas ponto com.

Visto em público pela última vez em novembro daquele remoto 96, quando consultou um médico para examinar umas estranhas brotoejas no pescoço, justificou a saída em seu diário como se fosse uma falta grave a ser redimida.

Pedia as compras de mês pelo Extra Delivery, os remédios pela Ultrafarma, uma faxineira a cada 20 dias pelo diaristaonline. Por se tornar inútil, vendeu o Escort XR3 que tinha com um anúncio no Mercado Livre. 

Uma máquina de cortar cabelo chegou pelo shoptime em meados de 2012, eliminando do rol de despesas mensais fixas o cabeleireiro em domicílio.

Sempre adorou cães, e os adotava vendo suas fotos nos sites das ONGs protetoras de animais.

Ano passado teve um mal súbito cardíaco, muito provavelmente por não ter descoberto a tempo um plano de saúde que incluísse consultas e exames domiciliares.

Foi enterrado no quintal, com todas as honras humanas e caninas, ao lado do Acerola, do Tarzan, da Belinha, do Sunny, da Lililica e do Scooby. Pichuca, a poodle toy que tinha quando se foi, urinou nas flores sobre a sepultura, provavelmente intuindo que assim homenageava o dono.  

Antes da missa de sétimo dia, encomendada por telefone pela esposa e divulgada por post no facebook, chegou um pacote da Amazon com o livro sobre comunicação com os mortos - lido e relido pela viúva na rede da varanda e praticado regularmente na mesa da sala de jantar. 

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Imagem: www.tudopracarro.com.br





PS: Ninguém compareceu à missa de sétimo dia, nem mesmo a esposa. Todos elevaram seus pensamentos e fizeram suas preces de casa mesmo. Como o próprio finado costumava dizer, "o que vale é a intenção".

sábado, 2 de junho de 2018

REZADORES



Se há carpideiras, por que não há rezadores?

Desde que executada com a responsabilidade e o respeito que todas as religiões merecem, e desde que também aceita de boa vontade pelas diferentes esferas da corte celeste, talvez a ideia vingasse nesse estranho mundo de meu Deus.

O ofício dos rezadores (pelo menos o que imaginei) se aproxima muito do das mulheres carpideiras, pagas para chorar os finados - sem que tenham nutrido por eles a mínima simpatia ou tido, em vida, vínculo de parentesco ou ao menos de vizinhança.  

Os rezadores fariam as vezes de quem teria que rezar, cumprindo  a obrigação de outro. Seja uma penitência estabelecida por padre no confessionário, seja simplesmente para fazer a reza no lugar do freguês, em intenções diversas designadas por ele.

Dois fatores se somam para que os rezadores já chegassem se apossando de um contingente enorme de interessados nos seus préstimos. Por um lado, temos a escassez de tempo das pessoas. Por outro, o interesse cada vez maior delas por espiritualidade, esoterismo e derivações correlatas. Se não conseguem se livrar das agruras desse mundo, sabem também que dele nada se leva, e querem garantir um cantinho com algum conforto lá no andar de cima. 

A aferição da qualidade do serviço seria feita por fervorômetro, aparelho desenvolvido em start-up de ponta com aportes de investidores internacionais. Como o nome diz, o aparelho mediria o fervor da prece, com base na variação do campo magnético na aura do rezador. Os relatórios e gráficos de performance seriam enviados em tempo real para o cliente.

Dependendo da necessidade e da urgência, o contratante poderia adquirir os serviços de mais rezadores. Os módulos abrangeriam de um a milhares deles, que iriam se alternar em turnos de oração ou rezariam simultaneamente, conforme o pacote escolhido. 

Sendo o serviço desvinculado de qualquer religião, este teria de ser prestado em espaço neutro e ecumênico. Call-centers de grandes multinacionais, vazios devido à crise, certamente estariam sendo locados para os ofícios de prece coletiva.

Não aprovaria, intimamente, a novidade. Mas não me espantaria se a visse, amanhã mesmo, posta em prática. E logo ali, na esquina.


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