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sábado, 31 de janeiro de 2009

A SÓS

Olhares que se cruzam, dela e do cão. Do ponto de vista do cão, o olhar somente - o literal pousar de olhos sobre alguém ou alguma coisa. Para ela uma zona de conforto na arrumação de si, como se fosse possível um cessar-fogo entre os neurônios. Poderia não ser um bicho, mas uma xícara, um poste, o que via não era absolutamente o que enxergava. Não havia a consciência de olhar o cão, nem no cão a de saber-se observado. Cara a focinho, aquele era o tempo presente dos dois. A indolência que sentia lembrava talvez o fastio que se tem em casa de mãe após a janta generosa. Isso era nostálgico e reconfortante, a sensação do território conhecido, o nada além da posse precária daquele momento de pálpebras arcando. Vovó morta, envolta em seda, o coro de filhas de Maria na trilha sonora, entregando junto ao padre o corpo à terra. Vovó se foi, é fato, ficou o cão e a urgência do que fazer dele. Chove a fina e mesma chuva sobre finados e vivos, um bolero gira na vitrola arcaica. Delírios, xô que já é tarde. Deixem-na a sós com seu cão.

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sábado, 24 de janeiro de 2009

TREMA DESEMPREGADO, MATA-BORRÃO INVÁLIDO, DEDAL DESALOJADO



- Eu caí.

- Caiu onde, de que jeito? E nem tá machucado, do que tá reclamando?

- Não ouviu falar que acabou o emprego do trema? Então, estou na rua.

- Fica tranquilo, trema. Pra tudo tem solução nessa vida.

- Dedal, amigo velho, como é que eu posso ficar tranquilo se tranquilo não tem mais trema? Estou liquidado – e liquidado sem trema.

- Tem certeza?

- Tá na regra, pode conferir.

- Conforme-se, veja você o que fizeram comigo. Eu era encontrado em vários modelos nas boas lojas do ramo. Vivia nas mãos das moças mais lindas, que passavam o dia bordando e tocando piano. E hoje, olha minha situação. Se nem costurar mais se costura, quanto mais usar dedal. Meu caso é mais grave que o seu, porque minha obsolescência é em escala mundial. Você ainda pode se mudar pra Alemanha, por exemplo. O que tem de trema por lá não está escrito, todos muito bem empregados. Concorda comigo, Mata-Borrão?

- Eu acho que nesse caso tem que usar a criatividade. Se ao invés de deitado você ficar de pé, vira dois pontos. E até onde eu saiba, os dois pontos continuam em pleno vigor, certo? É o tal do jeitinho brasileiro, meu camarada. Eu mesmo, pra te falar a verdade, também não sei como fica minha situação, se fico ou não com o hífen. Também tanto faz, até porque ninguém mais escreve “Mata-Borrão”. Pior: não há quem escreva mais a mão, muito menos com caneta-tinteiro. Maldito computador, matou de vez todos os borrões! Agora, mudando de assunto, Dedal: eu nunca entendi o fato de você ter esse monte de furinhos se foi inventado justamente pra evitar os furos.

- É, acho que temos aí um paradoxo, Mata-Borrão.

- Chega de conversa mole, gente. Podemos, os três juntos, botar a cabeça pra funcionar e achar uma utilidade digna pra nós.

- O setor de brinquedos me parece um filão interessante. Brinquedo se compra por impulso, a meninada inferniza os pais até que eles entreguem os pontos. Como Mata-Borrão posso me transformar em gangorra para soldadinhos e índios de Forte Apache. E você, Dedal, pode virar copinho na mesas das casas de bonecas. O que acham?

- Péssimo, Mata-Borrão. Péssimo. Vai ver se a molecada de hoje brinca de Forte Apache, de gangorra e de casinha de boneca. Ficam direto na frente do computador, véio, se liga.

- Exatamente. Ficam batucando o dia inteiro no teclado, e o Dedal pode se arrumar aí. Poderemos lançá-lo com o pomposo nome de Protetor Articular para Digitação, prevenindo LER e tendinites diversas. Quanto a mim, saibam que minha despedida do mercado editorial será nos manuais que andam imprimindo agora, com a grafia antiga e a atual, depois da reforma. Tá certo que vou aparecer só na coluna da grafia velha, mas já é alguma coisa. A saideira, né...

- Você disse saideira, e me veio um insight redentor para o seu caso. É que saideira me lembrou bebida, que me lembrou Caninha 51, que me lembrou...

- Lembrou o quê, criatura?

- O trema permanece em Müller e em outros nomes próprios. O fabricante da Caninha 51 chama-se Companhia Müller de Bebidas. Pronto. Você será impresso nos rótulos de milhões de garrafas de pinga, e ainda vão te mandar pro mundo inteiro. Tá empregado, é só enviar seu currículo com foto recente pra verem que você é o trema mesmo.

- É... boa ideia (sem acento agudo).


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sábado, 17 de janeiro de 2009

EM BRANCO


Só sei dizer que a carta veio parar na minha mão sem remetente nem destinatário. Mas estava, que diabos, na minha caixa de correspondência. Abri e encontrei três folhas sem nada escrito. Dei de ombros: não sabia de quem vinha, também não era para mim, que importava? Poderia ser um código de alguém para outro alguém, uma senha que significasse alguma coisa que só a ambos faria sentido. Mas por que na minha porta, se não era eu nem uma nem a outra parte interessada? Outra hipótese seria uma espécie de intervenção urbana, obra de teor filosófico e performático de algum artista underground, querendo dizer que nem tudo tem de ser de alguém para alguém e com algum propósito específico. Um manifesto pelo resgate do nada às nossas vidas, nesse mundo over de informação. Passei cola novamente no envelope e coloquei a carta na primeira caixa de correio que vi na rua.


Ao trabalho, ao trabalho. Três reuniões naquele dia, duas delas sem previsão de término nem de conclusão prática. Quando Daniel explicava os dezesseis gráficos de pizza no flip-chart, Letícia adentrou à sala e me entregou um envelope, branco como a maior parte dos envelopes, mas de uma alvura já minha conhecida. Não havia dúvida: era a mesma carta. De novo. Reconheci pelos sinais da recolagem e pela re-absurda falta de remetente e destinatário. Como, de volta para mim? Eu lá tenho cara de posta restante dos Correios e Telégrafos?


Roí as unhas e parte dos dedos, ansioso para o fim da reunião. Parti como um raio à sala de Letícia, para saber quem tinha entregue a carta a ela. Foi embora mais cedo. Indisposição. Joguei a carta no lixo, mas antes marquei com a caneta um x no canto inferior direito do envelope, na parte do remetente. Assim poderia identificá-la irrefutavelmente, caso o milagre voltasse a ocorrer.


E ocorreu. Findo o expediente, no caminho para o estacionamento algo me chamou a atenção. Na vitrine da loja de departamentos, a TV transmitia ao vivo o sorteio de uma promoção qualquer. Uma loira de pernas de fora retirou uma carta da montanha. Lá estava ela. A câmera deu um zoom no pequeno x do canto do envelope, como se quisesse mostrar a mim, e só a mim, que a coisa era mesmo indestrutível. Vi a mulher lendo e os lábios se mexendo, anunciando o nome do contemplado ao lado do auditor do concurso. O ruído do trânsito não me deixou ouvir o nome que só eu desconhecia, o mistério que só a mim parecia ser mistério.


Um drink para arrumar as ideias e adivinhar uma lógica para aquilo. O garçom me trouxe, junto com o segundo uísque, um envelope que a pessoa da mesa oito pediu para me entregar. Olho para a mesa oito. Ninguém. Só a carta, a mesmíssima, de novo no meu colo. Ok, eu a levaria para casa. Não dava mais para fugir um do outro. Guardei-a com cuidado dentro da Bíblia, no hall de entrada do apartamento. A página com o Salmo 91 estava em branco, assim como as outras. Na estante, os demais livros todos em branco. A agenda, ao lado do telefone, em branco. Os álbuns de retrato em branco. A certidão de nascimento e a identidade em branco. Então olhei pela janela e vi o néon com o nome da companhia de seguros ficando ininteligível. Percebi que as coisas escritas se extinguiam, sem função. Até mesmo os nomes nas folhas de cheques e as marcas nas portas dos refrigeradores. Me ocorreu que Letícia poderia estar morta e eu não ficaria sabendo, pois no dia seguinte os jornais provavelmente não trariam obituários. Nem qualquer outra notícia.

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sábado, 10 de janeiro de 2009

VOYEUR


De novo a música recorrente, a de costume em ziguezague na cachola.Você e seu rosto de quem só acalenta bons presságios, não deixa margem pra que se enxergue um primeiro anúncio de ruga, sua carne de pêssego se decompondo um dia é coisa sem cabimento. Afago uma outra chance de te ver no desaviso, sem que saiba que te espio entre lençóis, tão você mesma. É assim que gosto, devassar você no quarto. Você zapeia a TV e eu te zapeio aos centímentros, sem controle. Dias de vinho e rosas como os que tivemos e guardamos escondidos da razão, como se guarda borboleta ou selo raro, quando outra vez?


Detida para averiguações, algemada por mim. Vamos à reconstituição do crime que cometemos ao deixar que houvesse entre a gente distância e compostura em demasia, o trato cerimonioso que se impôs a contragosto. Retomemos o que foi, vestidos de nudez. Andiamo via, na asa dessa aragem que vem agora da janela.


E nesse assédio à intimidade alheia, que é impróprio chamar de alheia em se tratando de você, quero ficar até render-me pasmo e adormecer, pele na pele, mãos nas mãos. Discreto e insuspeito como um voyeur que faz bem feito o seu serviço, mas zeloso e sentinela, atento aos cães rondando a madrugada. Durma. E saiba que não quero para você só os sonhos que pediu a Deus, mas os que Deus pediria a Deus se houvesse um Deus acima dele.


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sábado, 3 de janeiro de 2009

DO PAU OCO


Já não foi a primeira vez que a câmera de segurança da fábrica de santos e anjos de gesso flagrou o inspetor de controle de qualidade e uma loiraça gesseira, toda coberta de pó branco, fazendo o que estava no Gênesis em posição ainda não catalogada pelo Kama Sutra. Espionando diariamente os dois excomungados, em serões que se estendiam das seis e quinze da tarde às nove e tanto da noite, Genaro, do serviço terceirizado de circuito de TV, junta mais um flagrante ao gordo dossiê e aguarda o momento certo: a nomeação do inspetor a gerente, “pela conduta irrepreensível no exercício de suas funções”.

Mas Genaro estava longe de ser a única testemunha da sacrílega safadeza. Das estátuas, todas viram. Exceto 16 São Judas que ainda estavam sem os olhos.


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- Eu quero entrar pro ramo, Pai Zóim. Diz aí com quanto é que eu tenho que morrer pra abrir uma tenda com tudo nos conformes, daquelas de cair o queixo.

- Aí já começa mal, fio precisa entender que dinheiro vem sozinho, por merecimento. Não tem que correr atrás dele. Sejamos simples de coração...

- Que é, meu pai, tá com medo da concorrência? Sou pequeno, não nasci pra Pai Zóim...


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Temos em estoque e para pronta entrega ampla gama de bolas de cristal nos diâmetros de 9 a 25 polegadas, com ou sem efeitos luminosos, estrelas e luas holográficas, 100% transparentes e com mecanismo giratório discretamente acoplado debaixo da mesa do vidente. Funcionam com quatro pilhas, não inclusas. Mas tome cuidado para que os clientes não vejam o “Nadir Figueiredo” na base da bola, fatal indicativo de que a mesma não é exatamente de cristal.


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Cortamos um zero na mensalidade dos cursos por correspondência de numerologia: de 99,90 por 9,90, em 3 vezes de 3,30. É sua chance de começar o ano com o pé direito e muito dinheiro no bolso. Faça de 2009 o seu número de sorte.


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O que se observa é o que podemos chamar literalmente de círculo vicioso. O fabricante do baralho dissemina, querendo ou não, a maldição do jogo. Perdendo o que tinham e o que não tinham nas mesas de pano verde, os desesperados procuraram uma saída com as videntes do tarô, cujas cartas são fabricadas pelo mesma empresa do baralho. É ganho na diversão e no arrependimento. A coisa toma outro rumo nos tempos de bonança econômica. É quando pouca gente joga e consequentemente quase ninguém corre depois atrás do tarô. Aí o jeito é alocar o parque fabril à produção de baralhos de mico preto, para as raríssimas crianças que se dispõem a trocar o Playstation 3 por esse passatempo idiota.


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Se existe alguém que mereça respeito e medo nesse mundo, esse alguém é o dono da fábrica de patuás. Por maiores que sejam seus calotes, desvarios administrativos, apropriação indevida de verbas trabalhistas, ninguém quer correr o risco de uma maldição ou “coisa feita” em represália. E assim, entre falcatruas mil e respeito nenhum a quem quer que seja - funcionários, fornecedores, leis e poderes constituídos - , ele amplia mês a mês o volume produzido e diversifica o seu mix, que já inclui figas de madeira de reflorestamento e galhinhos de arruda cultivados em hortas hidropônicas.


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Novas seitas pululam descontroladamente, fora do alcance da razão e sobretudo do fisco em suas instâncias diversas. Com elas surgem inovações tecnológicas que jamais passaram pela cabeça de Matuzalém, Barnabé, Zebedeu e seus contemporâneos, como a maquininha coletora de donativos por transferência de titularidade, ou seja, basta que o fiel insira o cartão de crédito ou débito para assegurar em suaves parcelinhas o seu pedaço de céu.



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