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sábado, 25 de julho de 2015

GRANDE É PENSAR PEQUENO



Telescópio: Veja bem, microscópio (veja bem é ótimo, não?)... Você deveria ter inveja de mim. Fica aí de cabeça baixa, no seu mundinho minúsculo, como que olhando para o umbigo, enquanto eu vagueio noite adentro por desavisadas janelas abertas, na busca de mulheres sem roupa. Uma melhor que a outra, você nem imagina. Pô, mas que falta de educação, levanta esse pescoço enquanto eu falo com você, caramba!

Microscópio: Pois é, primeiro o prazer, depois o dever. Ou melhor, as fatais obrigações da paternidade responsável. O sujeito te usa sim, telescópio, se deleita com as beldades horas sem fim. Até que o instinto faz com que ele não se aguente e bata à porta de uma delas. Papo vai, papo vem, rala e rola, ele faz um filho nela. E quem é que enfia a cara nas hemácias, bastonetes, glóbulos brancos, células epiteliais e não sei mais o quê, tanto da mãe quanto do pimpolho? Pois é, eu mesmo, né? Depois da farra, do casamento não planejado e do parto, vem a rotina doméstica e você fica definitivamente esquecido. Anos e anos. Isso até que o pimpolho - se for macho - te descubra escondido num fundo de armário e, naquela mesma janelinha indiscreta de outrora, demonstre que herdou o velho vício do pai...

Telescópio: Concordo, meu colega de lente, concordo. Mas, convenhamos: que vidinha melancólica é esta sua. Só te procuram nessas horas. Pra ver se tem doença, confirmar diagnóstico, que horror. Prefiro ficar socado num fundo de armário anos a fio e ser procurado movido pelo instinto e pela curiosidade do que ser usado todo dia por motivações tão frias. E muitas vezes mórbidas.

Microscópio: Tudo bem. Sua opinião não altera em nada a minha visão de mundo.

Telescópio: Nas escolas, me usam para estudar os planetas, asteroides e galáxias. E você, pra ver célula de cebola. Umas porcarias de células de cebola. Isso é vida?

Microscópio: Não se esqueça que a felicidade está nas mínimas coisas. De que adianta se meter a desvendar o universo sem se conhecer primeiro? Mais vale a humildade da minha cabeça baixa do que a arrogância do seu nariz sempre empinado, apontando o tempo todo para as estrelas.

Telescópio: Eu não sei por que ainda insisto em discutir com você.. Não adianta, você nasceu pra pensar pequeno. O mundo inteiro conhece as grandes descobertas de Kepler, Copérnico, Galileu Galilei. Mas será que alguém sabe o nome do descobridor do citoplasma?

Microscópio: Só que é sabendo o que sabe sobre o citoplasma que a ciência garante razoável sobrevida à legião dos distraídos e lunáticos astrônomos, essa turminha que vive te manipulando. Pode ver: qualquer resfriadinho põe os seus amigos todos de cama. Não fosse por mim e minhas lâminas, até hoje milhões de seres humanos estariam morrendo de tuberculose, febre amarela,tifo, caxumba, rubéola...

Telescópio: No seu lugar eu me sentiria um capacho, um subalterno de quinto escalão. Não te chateia gastar a vida entre hamsters de laboratório? Não se envergonha da biografia mesquinha que vai legar à sua prole?

Microscópio: De jeito nenhum. Da minha prole eu tenho orgulho. Na condição de microscópio, posso escolher qual dos meus espermatozoides vai fecundar o óvulo da minha senhora. Um privilégio para poucos, meu querido telescópio. Agora, se me der licença, eu tenho muito resultado pra entregar. 


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sábado, 18 de julho de 2015

CASTIDADE VIOLADA

Imagem: www.psychologytoday.com/blog/you-it/201205/the-truth-about-chastity-belts



- Quando fechamos negócio, o senhor me jurou que dava garantia.

- Eu disse que garantia o produto contra defeitos de fabricação, o que não inclui avarias provocadas pelo mau uso. O cinto de castidade que eu lhe vendi foi violado, eu poderia jurar que usaram um pé-de-cabra para arrebentar a fechadura.

- Desculpa, mas um produto dessa natureza e com essa finalidade, só tem serventia se for comprovadamente inviolável. Cadê a fiscalização do Inmetro numa hora dessa? A minha noiva desacordada na cama, todo aquele sangue escorrido... Ah, se o senhor visse...

- Bom, pela minha prática eu arriscaria três hipóteses para o fenômeno. A primeira: a própria mulher ou alguma outra pessoa provocou ferimento nas partes baixas ao forçar a abertura, aí acabou sangrando. A segunda: a mulher menstruou e, incomodada com o sangue melecando a virilha, abriu a gaiola genital para se limpar. Não sei como, mas abriu. A terceira, que o amigo vai custar a admitir mas que costuma ser a mais provável: o sangue é da perda da virgindade. Consentida ou forçada.

- Ela não faria isso. A minha noiva não!

- Pois é, mas o senhor se lembra que não foi por falta de aviso. Se tivesse levado o modelo com quadrichave e senha digital, poderia ter evitado todo esse aborrecimento. Até hoje não conheci ninguém capaz de violar um genuíno quadricinto de castidade.

- Ponha-se no meu lugar. Se a noiva fosse sua e tivesse acontecido isso, o que pensaria?

- Eu não pensaria nada, pois teria optado por um cinto da linha Quadrichave Ultra Security para não ter dor de cabeça. Se a questão é prevenir, vamos fazer a coisa direitinho.

- Mas dizendo isso o senhor deprecia o seu modelo básico. Por uma questão ética, não poderia vender um modelo com chave comum e risco de violação, concorda?

- Olha, vamos parar com essa discussão. Eu conheço muito bem e respondo por toda a minha linha de produtos, tenho um bom nome na praça e a consciência tranquila. Já o senhor, eu não sei se está tão seguro quanto ao caráter da sua noiva.

- Escolha bem as palavras quando se dirigir a mim, seu maldito insolente. A família dela é respeitada em todo o reino, é gente que honra o brasão da família!

- Então por que comprou o cinto?

- Ferreiro desgraçado! Seu pós-venda não vale nada, é um case de marketing sobre o que não se deve nunca fazer e dizer ao cliente! Vou postar hoje mesmo essa história toda nas redes feudais. Seu negócio será reduzido à produção de ferraduras pra jumento, e olhe lá.

- Bom, pelo menos de fome eu sei que não vou morrer. Jumento é o que não falta nesse feudo...




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quinta-feira, 9 de julho de 2015

O FRIO DE FORA E O DE DENTRO



Que coisa chata amanhecer no domingo com chuva e frio fustigando a janela. Um dia desse jeito é meio perdido, mal resolvido e defeituoso, meteorológica e produtivamente falando. O que influi no meu humor. Melhor dizendo, no mau humor.

Tem quem goste, achando que dias assim convidam à introspecção, balanço da vida, essas coisas. Outros se sentem mais dispostos para o trabalho. Esse negócio de frio tem sim, seus poucos momentos compensadores. Mas são delícias fugazes, que não pagam as penas de sair do banho tiritando, de pular da cama de má vontade e de espaçar, muito compreensivelmente, as ocasiões para a prática daquela milenar e prazerosa modalidade.

Imagina o inverno pra turma do circo. O vento a 80 por hora arriando a lona. A agonia dos faquires, na gélida cama de pregos. A responsabilidade dos trapezistas e atiradores de faca, tendo que manter a precisão com as mãos trêmulas. 

E limpar gaiola de passarinho? Primeiro tem que lavar no tanque aquele fundo de zinco, cheio de caca. Empedernido pelo vento impiedoso, o dejeto só sai com palha de aço ou espátula. Pior é quando você roeu todas as unhas na véspera, deixando as cutículas em carne viva. Aí sim, fica gostoso mesmo. 

Gosto de tomar um uísque no fim de semana. Não mais que uma dose - cavalar, é verdade - o suficiente pra relaxar sem ficar xarope. E uísque sem gelo, não dá. É mais uma triste limitação do inverno, essa estação odiosa. Tendo que renunciar ao meu trago domingueiro, comecei a fuçar nuns álbuns de fotos, do começo dos 90. Umas férias onde estou de passageiro num barco, passeando pela baía de Camamu. Olho as fotos e, claro, acesso o registro correspondente na cabeça, ele existe, está lá. Porém é tão frio quanto o dia lá fora. 

O fato sobrevive em linhas gerais, mas sem as sensações correspondentes. A foto não me traz de volta a brisa no rosto, o barulho do motor da embarcação, o azulado da água, o que sentia e pensava naquele instante.E assim acontece com outras coisas. Passo em frente de uma casa onde morei por cinco anos. E nada, só um flash nebuloso e em preto e branco vem à mente, condensando meia década num impreciso borrão de lembranças. Em seguida bate aquele paradoxo existencial - viver pra quê, se o que se vive agora será esquecido daqui a pouco? Você comenta com um amigo sobre isso e ele vem com a máxima, presente em 10 entre 10 manuais de auto-ajuda: "viva intensamente cada momento, como se fosse o último. Preste atenção ao presente, sem se agarrar ao passado ou se preocupar com o futuro. Assim você estará mais receptivo a reter o que acontece agora".

Pior ainda é constatar que a sua memória recente também é uma retardada, incapaz de lembrar do que você jantou ontem. Livros às centenas, filmes aos milhares. Não os reconheço, nem pela caixinha e nem pelo conteúdo. Para mim são eternos lançamentos. Olho para a estante, leio os títulos nas lombadas, sei que um dia os devorei a todos. Atenta e silenciosamente, a cada um deles dediquei dias e mais dias. Pra chegar agora e não lembrar de nada - nem da história, nem do assunto, nem dos nomes dos personagens, nem de coisa nenhuma. Dizem os psicólogos e neurologistas que é o consciente que não lembra, e que o subconsciente guarda tudo em detalhes. E é aí, inclusive, que eles entram com suas ferramentas e terapias. Penso: é a idade. Errado: aos 14 já era assim. Chego a aventar a hipótese de distúrbio cognitivo. Herança genética? Talvez. Meu avô estacionava o carro e esquecia os vidros abertos, a chave no contato e - inacreditável - o motor ligado.

Mas por que é que eu vim parar aqui mesmo? Sei lá. Esse frio deixa a gente meio assim, de miolo duro.


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sábado, 4 de julho de 2015

CORCOVADO DE NOTRE DAME




Ser corcunda não é fácil. Até a palavra soa pejorativa. Muita gente não sabe, mas corcunda é o mesmo que corcovado. E foi assim, consultando um dicionário para saber um pouco mais de mim mesmo - um corcovado de nascença, que me veio a ideia para ganhar a vida. Ou melhor, que me permitiu sobreviver, mal e porcamente, graças ao famoso cartão postal carioca, onde batia ponto das 8 da manhã às 10 da noite. Incluindo sábados, domingos e, principalmente, feriados. 

Os turistas tiravam fotos minhas de perfil, em posição análoga à do Corcovado, e depois pagavam pelo monóculo. Parecia algo sádico, com requintes de humor negro, e a intenção talvez fosse essa mesmo. Era uma humilhação assumida e consentida, por ser meu ganha-pão. Quantos bocós eu vi e ouvi exclamando, cheios de incabível orgulho, após tirar minha foto junto ao meu gêmeo de pedra:  " Ha, ha, ha, ha, ha, ha! Deixa o pessoal lá do escritório ver isso!"; ou então: "A Maria das Graças não vai acreditar... ha, ha, ha, ha, ha, vai se matar de rir com essa!".

Somos os dois parecidos, e ao mesmo tempo opostos. O Corcovado lindo por natureza, e eu horrível por um descuido dela. Lamentações à parte, assim se passaram alguns anos de temporada no célebre morro. Até que uma crise econômica brava se abateu literalmente em minhas costas, e ninguém mais queria torrar seu contado dinheirinho com retratos de corcunda. Havia possibilidades esteticamente mais interessantes para gastá-lo, ainda mais em se tratando da Cidade Maravilhosa.

Estava eu nesse estado de pré-miséria quando o Totonho das Mercês, colega de turma de Crisma e morador do Realengo, veio com a redentora solução: ir para Paris e encarnar o famoso Corcunda de Notre Dame na porta da Catedral de mesmo nome. Pesquisando, descobri que Notre Dame é a segunda atração mais visitada da capital francesa, só perdendo para a Torre Eiffel. Em número de turistas/dia, deixava o Corcovado no chinelo. 

Assim resolvido, comprei minha passagem de ida e segui a caracterização do personagem, conforme o livro de Victor Hugo. Depois montei uma tabela de preços e a afixei, obviamente, sobre o meu defeitinho congênito. O faturamento tem dado para o gasto, não posso me queixar do apartamento de 3 quartos no melhor ponto de Saint German, do Citroen 0km e da casa de praia em Cannes. Seguem abaixo meus honorários, sem desconto para grupos.

Foto do corcunda sério: 1 euro.
Foto do corcunda sorrindo: 1 euro e meio.
Foto junto com o corcunda sério: 3 euros.
Foto junto com o corcunda sorrindo: 4 euros.
Foto ou vídeo de criança na carcova do corcunda: 7 euros.
Foto ou vídeo de criança maiorzinha ou de marmanjo anão na carcova do corcunda: 8 euros.
Voltinha em torno da Catedral montado no corcunda: 14 euros.
Subida ao campanário de Notre Dame, em visita guiada pelo corcunda: 20 euros.
Corcunda Strip Tease, toda quinta às 23h no Moulin Rouge: 35 euros por pessoa (adesões com pagamento antecipado na barraquinha de crepe ao lado da igreja).
Algo mais com o corcunda, em moita discreta no Bois de Bologne: 110 euros.


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