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sábado, 27 de setembro de 2008

NÃO SE PERCA DE MIM, NÃO DESAPAREÇA


Naqueles idos, diziam que a cerveja subia mais rápido se tomada no gargalo. Coisa estranha, de que jeito se a cerveja era a mesma, no copo ou na garrafa? Gargalo não era vara de condão. Via o baile lá de cima, no último lance da arquibancada do ginásio. Preferia assistir, só ia pro meio da bagunça quando Momo fazia o cerco, brandia o cetro e exigia rendição.

Te quero às pressas, mas com luz forte e quente iluminando o espetáculo. Ver é bom, a dança a dois e às claras é bem melhor que o baile e suas máscaras, suas mesas reservadas, seus pais zelosos com as filhas em flor. Nada de joguinhos de sedução mal resolvidos, a vida é curta pra ficar dando a entender. Insinuação tem hora, e a hora é de saciedade. Reparar e curtir os defeitinhos do corpo revelados de manso, isso sim pode ser, mulher gosta dessas coisas. Mas só se for depois do crescei e multiplicai-vos. Saiamos do clube assim, jogando a roupa fora, afoitos para a luta corporal. Não temos retoque, somos tais e quais e isso é benção, a única maquiagem é um discreto contorno de lápis deixando seus olhos mais lindos pro mundo. Como se precisasse.

E tudo seria se você houvesse, mas você não havia. Não havia você nem baile a dois, só aquela horda de suados se acotovelando lá embaixo. Tão longe do ilusório onde você mandava e desmandava, tomada de empréstimo dos seres imaginários. Eu não só te dava forma mas compunha teu futuro. Acontecia de te fazer mãe de um monte de crianças minhas, como se a vida conjugal fosse o destino inescapável, sepultando a carne na rotina dos carnês. Casal de meia idade na matinê da província, levando os meninos de pirata e colombina, você trocando receita com a comadre Rose. Que tacanho.

O bloco dos monges sacanas, cordão berrando as marchinhas, em punho os lenços de lança. Você entra no banheiro das damas com uma amiga, quem sabe a futura comadre Rose. Então me enxerguei compadre do marido dela, que nem tenho idéia de quem poderá ser. Esgano com a serpentina essa possibilidade. Mais um trago de cerveja no gargalo.
Pode ser que você volte do banheiro, a maquiagem retocada e resolvida a me sufocar com um beijo e me oxigenar de vida, dando corda a esse improvável filme B de nós dois na minha cabeça. Como também pode ser que no caminho aqui pra arquibancada já tenha flertado com outro, e nesse outro projetado seus melhores e próximos anos, me deixando aqui até que surja uma odalisca que ninguém quis, implorando o calor que era pra você.
Há de sentar-se ao meu lado, o tule da fantasia roçando meu braço esquerdo. E perguntará por que eu tomo cerveja no gargalo, se existe copo pra isso.

Um frevo emendou na marchinha e me trouxe de volta, um pouco mais convicto de que tem mesmo alguém na supervisão lá em cima, ainda que manipulando a esmo as cordas dos marionetes, encontrando e desencontrando gente do jeito que der na telha.
Não digo que seja um deus, mas alguém acima da raça dos suados que se acotovelam. E que a uma hora dessas pode muito bem estar tomando cerveja no gargalo e dando nós nos fios que nos governam.
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sábado, 20 de setembro de 2008

AA - ANÔNIMOS ANÔNIMOS


- Central de atendimento do AA – Anônimos Anônimos, boa tarde. Com quem eu falo?
- Pergunta besta. É lógico que não vou dizer.
- Ah, é um dos nossos. Qual o problema, alguma recaída?
- Claro. Por que acha que estou ligando? Pra ficar falando de mim, que eu sou o máximo, que eu faço e aconteço? Se telefonasse pra isso seria um indício de cura, e conseqüentemente não precisaria ligar para o plantão. Na verdade, não é bem uma recaída. É uma reclamação.
- Ok, senhor. Pode falar.
- Vou falar, mas o mínimo necessário. O suficiente pra que você me entenda e aconselhe. Na última reunião do AA vocês vieram com uma conversa que eu tinha de passar por uma prova de fogo: tirar minha carteira de identidade. Bom, num esforço sobre-humano, saí pra providenciar. Aí o sujeito lá do Poupatempo apareceu com um formulário que era um verdadeiro inquérito pra cima de mim. Queria saber meu nome, endereço, local de nascimento, disse que precisava tirar foto... imagina o absurdo, tirar fotografia! Depois de 54 anos incógnito.
- Mas o senhor tem 54 anos e até hoje não tem identidade?
- Meu anonimatismo é severo, grau 5 – quase 6, minha filha.
- Sim... prossiga, estou anotando.
- Anotando? Anotando o quê? Exijo que rasgue imediatamente seus apontamentos. Se alguém lê pode identificar o problema relatado com a minha pessoa, e aí eu me torno conhecido. Respeite meu direito ao anonimato. Não se esqueça que essa regra consta no código de ética dos Anônimos Anônimos.
- De fato, senhor. Desculpe a indiscrição.
- É bom que me respeite mesmo. Meu avô foi um Sicrano inveterado, meu pai foi um Beltrano de marca maior e eu sou um Fulano com F maiúsculo. Três gerações de gente que graças a Deus passou despercebida por este mundo de pessoas que só querem aparecer. Uma célebre dinastia de desconhecidos, da qual nunca ninguém há de ouvir falar.
- Tudo bem, Sr. Fulano. Pode continuar contando o seu problema.
- Alto lá. Um anônimo que se preza não conta coisa nenhuma a quem quer que seja, ainda que a senhorita seja também uma anônima para mim. Sabe como é, as paredes têm ouvidos, os telefones têm grampos e há poucos lugares no planeta não esquadrinhados por uma câmera de segurança. Talvez estejamos ambos, no momento, sendo vigiados por um terceiro. Quem sabe um quarto, quiçá um quinto... só de falar já me apavoro.
- Mas senhor, é preciso convir que anonimato tem limite.
- Limite? Só se for pra você. O anonimato é a liberdade extrema, é justamente a ausência de limite. Ninguém me cobra nada – nem deveres, nem favores, nem prazos, nem satisfação de coisa nenhuma.
- Mas o senhor não tem amigos, não trabalha?
- Trabalho numa Sociedade Anônima. Não tenho a menor idéia de quais são os meus sócios e tudo vai muito bem assim, do jeito que está. Até pouco tempo atrás só aparecia lá na empresa pra assinar o pró-labore. Ia disfarçado de mulher, mas desconfiei que estavam me reconhecendo. Agora arrumei um testa-de-ferro que cuida de tudo, se passando por mim para que eu continue passando em brancas nuvens. Igualzinho o cara que assina este texto. Pra quem não sabe, ele não existe. É pseudônimo.


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domingo, 14 de setembro de 2008

Da série "Reencontros"


Adolescente come tudo o que vê pela frente. E entenda-se no caso o verbo “comer” em acepções variadas, como se pode supor em sendo o adolescente macho e naquele cafundó onde nada faltava, menos o que fazer. Não tendo o que degustar em carne e osso de imediato, ele ligou o aparelho com o bico do bamba branco. Aliás, bamba só tinha branco, pelo menos nas melhores casas do ramo por ali, num ano perdido que é preferível nem mencionar por estar perdido mesmo.

“Vamos passar a noite juntos”, convida Mr. Michael Philip Jagger a quem interessar possa na fita cassete Basf 60 minutos. Aquilo era o rock no cio. Entre uma faixa e outra, o ruído gravado da agulha sulcando o long-play high fidelity parecia um campo de batalha, Vietnam fonográfico a detonar a paz doméstica que ainda restasse. Pra contrabalançar o ”Let’s spend the night together” ia muitíssimo bem o “As tears go by” que vinha na seqüência - presença obrigatória nos bate-coxas à média luz, que os cinco rebeldes gravaram em resposta a “Yesterday” no interminável toma-lá-dá-cá Beatles/Stones. Havia ali um quê angelical que traía a simpatia pelo demônio, coisa que os autores não faziam questão nenhuma de esconder. O arranjo de cordas era quase um anti-Stones, a negação da língua de fora, a versão “música de casamento” dos ícones da irreverência mais contraventora que o mundo já conheceu.

Numa pilha de discos ao lado do Sharp com sistema belt-drive, o “Cores, Nomes” do Caetano fala da franja da encosta cor de laranja, do capim rosa-chá, do mel de olhos luz e de átomos que dançam. Linda, mais que demais, porém a taxa hormonal no pico pedia pedras rolando, de preferência com a presa da vez na cama de solteiro e já nuinha pra não se perder tempo desembrulhando. Ela diz que ouviu falar que cinza de cigarro na cerveja dá barato. Fiapo de casca de banana torrado no forno também. O melhor pra se fazer na vida acontecia no quarto quando não havia ninguém em casa, com incenso aceso pra disfarçar outros cheiros, ou no maverick emprestado, sempre com gasolina na reserva e o tape com o ajuste de graves defeituoso. Não se cogitava o boato de que o Keith havia trocado todo o sangue do corpo, na tentativa de se purificar das drogas. Charlie Watts, o mais velho, devia andar por volta dos quarenta, se tanto, e sem sinal de câncer na garganta. As aulas eram matadas impiedosamente porque não havia mesmo recuperação que evitasse a repetência, nem nada que fizesse o Zé Vicente tomar jeito.

Na sala ampla de pé direito alto, José Vicente Lagoa Altenfelder, CEO de poderosa multinacional coreana do ramo químico, lê que o desenho original da lendária língua vermelha e branca foi vendido por 51 mil libras para o Victoria and Albert Museum, de Londres. Dobra o jornal, se espreguiça na long chaise e aciona o home theater para o “Shine a light”, do Scorsese. Aqueles senhores sexagenários mandando ver “As tears go by”, mais de 40 anos depois do raro surto de inspiração, canalizaram nele as lágrimas do título. Talvez mais que todas as vertidas desde os tempos da rainha Lady Jane.

domingo, 7 de setembro de 2008

MÍNIMO MENINO COMUM


No desajeito próprio dos pequenos, sem que tivesse a exata noção de si – coisa que nem os adultos do lugar pareciam possuir, o menino era um espanto em andamento, e em sua mente muito intacta o que fosse dito ou visto se incrustava.

Baixem-se a guarda, as armas, o tom de voz. Minimize-se o menino, seja dos mínimos o menor, um prodígio fabricante de sorrisos nos crescidos. Deixe-se envolver no bem-estar de vê-lo, já que não se pode sê-lo. Note que entre ele e o cachorrinho de pelúcia deu-se a química, um afeto de centelha.

Não que careça ver nexo nesse afeto que reporto, apenas digo que as notas da quarta balada, em suspensão há décadas nas auroras de tais sítios, pousaram lisas agora nas felpas da sua manta. Caiba o menino nas meninas de outros olhos, para que vocês também, libertos de suas túnicas de arame, possam vê-lo nos pompons de sua inteireza.

Mínimo, como convém, seja o sultão dos tapetes fofos e o campeão olímpico das piscinas de bolinhas. Fucem à vontade em seus dispositivos de armazenamento de zil gigas, dêem no Google todas as buscas possíveis, mas de antemão não contem com a ventura de encontrá-lo, pois é inconcluso e rarefeito como os mínimos meninos.


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