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sexta-feira, 30 de setembro de 2016

DUBLÊ DE CHAPLIN




O cara nunca teve graça nenhuma. No começo era até meio gordo, desajeitado, nem sabia segurar a bengala direito. A criação do personagem foi dele, sim. Mas entre a concepção do vagabundo e a tentativa de dar vida a ele, vai uma desastrosa diferença. Charles bem que tentou, mas Carlitos na pele dele foi, essa sim, uma ridícula piada. 

Não é que eu substituía eventualmente o Carlitos, em uma ou outra cena, como os dublês geralmente fazem. O Carlitos era eu, cem por cento do tempo. Vinte e quatro quadros por segundo. O acordo estabelecido com Chaplin me rendeu extraordinária independência financeira, que perdura até este entendiante 1936. Mas chega uma hora na vida em que dinheiro já não significa tudo. Melhor dizendo, chega uma hora em que ele passa a significar nada, onde o relevante mesmo é tão imaterial e provisório quanto uma comédia muda projetada numa tela rasgada de um pulgueiro de Varsóvia. 

Não me interessa qualquer outro pacto lucrativo com ele hoje, nem com seus herdeiros daqui há alguns anos. Quero a verdade e a glória que me cabe, e preciso disso em vida. O contrato que fizemos, ainda em 1914, prevê pena pesada pela quebra de sigilo, mas nunca estive tão disposto a pagar por ela. O vagabundo que incorporei é a figura mais imitada do entertainment mundial, e eu fico tentando imaginar Charles Spencer Chaplin, esse embusteiro glorificado injustamente com um Oscar honorário, na fila dos indigentes para pegar sua sopa em algum gelado natal novaiorquino. Sim, porque assim seria se não fosse eu. 

Sendo eu o vagabundo nas telas, o vagabundo na prática acabou sendo ele. Um vagabundo milionário, parasita do talento alheio, um sujeito que não sabe como criar meios de tornar ainda mais extravagante e perdulária a sua vida. Que tenta mas não consegue dar vazão às montanhas e mais montanhas de dinheiro que chegam de Hollywood para abastecer sua conta. E dá-lhe flashes, entrevistas, biografias autorizadas e não-autorizadas, paparazzi, verbetes de enciclopédia que dão a coroa de gênio a quem de genial não tem nada.

Isso é o que ele é: um usurpador desengonçado, que mal equilibra um chapéu coco na cabeça enquanto anda, e que na frustrada tentativa de encarnar Carlitos não lograva arrancar risos nem da própria mãe.

Para ele, só existe uma coisa mais ameaçadora do que o medo da verdade vir à tona: é o receio de que algo me aconteça. Por isso me mantém em uma bela mansão no Kentucky, bem longe das luzes da ribalta e dos tapetes vermelhos, que é como um casulo asséptico a me resguardar do mundo real. E dessa redoma só estou autorizado a sair para o set de filmagem, ao qual chego de madrugada e anonimamente, como reles figurante. 

Agora são 20h35 de uma noite estrelada de agosto, e enquanto coloco no papel esse desabafo não posso ainda afirmar se terei coragem de torná-lo público amanhã. Talvez as doze novas cenas programadas, as centenas de autógrafos que darei entre uma tomada e outra e a garantia do dinheiro fácil me façam pensar melhor, mudar de ideia e tocar fogo nesse papel. Estão batendo na porta do camarim. Deve ser o gin-tônica que pedi.



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sábado, 24 de setembro de 2016

ESTRANHA MÁQUINA DE DEVANEIOS




Habituais ou esporádicos, todos somos lavadores de louça. Lúdico passatempo, esse. Sim, porque ninguém vai para a pia e fica pensando: agora estou lavando um garfo, agora estou enxaguando um copo, agora estou esfregando uma panela. Não. Enquanto a água escorre e o bom-bril come solto, o pensamento passeia por dobrinhas insuspeitas do cérebro. Numa aula de história, em 1979. O professor Fausto e a dinastia dos Habsburgos, a Europa da Idade Média e seus feudos como se fosse uma colcha de retalhos. O Ypê no rótulo do detergente leva ao jatobazeiro e seu fruto amarelo de cheiro forte, pegando na boca. Cisterna sem serventia. Antiga estância de assoalhos soltos. Rende mais, novo perfume, fórmula concentrada com ação profunda. A cidade era o fim da linha, literalmente. O trem chegava perto, não lá. Trilhos luzindo ao meio-dia. Inertes e inoperantes. As duas tábuas de cruzamento/linha férrea dando de comer aos cupins. Crosta de queijo na frigideira, ninguém merece. Custava deixar de molho? Arranco o pâncreas pela goela desse um. O mingau de maizena vinha fumegando, polvilhado de canela. Nas mãos de Parkinson da velha Dita, que perigo. Agasalho doce antes de dormir, prêmio de quem fez lição direito. Diga às suas pernas que fico. E assim foi, ao me pedir para ficar só mais um pouco. Para mais uma. E outra. Torneira aberta e celular com toque baixo é jogo duro. Deixa fechar essa disgrama um pouco... Não, acho que é no vizinho. É, não tocou aqui, não. Fosse coisa séria ligavam no fixo também, notícia ruim chega logo. Tanta briga por causa de um escroto de um patinho de borracha. Pensar que aquilo era o conflito, quando havia. Professor Fausto lá, traçando na lousa seu tabuleiro feudal, falando da colcha de retalhos e da monarquia de Habsburgo. Tá demorando muito pra escoar essa água, cadê o diabo verde? Só queria o segredo de lidar contigo, juro mesmo. Esse inquérito todo, pra quê... não ganharia nada te escondendo a verdade, procura compreender meu lado. Ah, dessa vez acho que é o meu celular.

A louça, agora seca. A alma, agora lavada. 


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sábado, 17 de setembro de 2016

REFÉNS



Poderia apertar aquele parafusinho minúsculo e a coisa voltaria a funcionar perfeitamente. Bastaria um quarto de volta em sentido horário, com uma chave philips e pronto. Problema de mau contato. Mas olhei pra cara da freguesa e vi que ela devia usar Lancôme da testa à unha do pé, e que só aquele solitário na mão direita valia mais que a minha oficina inteira. Então pintei a coisa bem preta para valorizar o serviço. Pelo menos três dias na bancada, para testes no voltímetro. Provavelmente era o diodo do transistor com o relê de amperagem em corrente descontínua, e pra trocar a pecinha só substituindo a placa toda – importada do Japão. Seria uma das hipóteses, mas para ter certeza, só abrindo tudo e aferindo cada um dos componentes na oficina.

- Olha, dona, por enquanto a senhora acerta comigo a visita técnica. Pode ficar tranquila que só toco o serviço com a aprovação do orçamento. Mas se for isso mesmo que estou pensando, melhor vender como sucata e comprar outro. Também não vale a pena levar à Autorizada, eles vão querer cobrar umas três vezes mais da senhora. Mas olha, pode ficar à vontade, pelo amor de Deus, não estou querendo forçar nada, faça como quiser...

Daí a três dias ela liga perguntando se o orçamento está pronto. Valorizo um pouco mais, digo que tenho que baixar o manual de especificações atualizadas do produto no site do fabricante e peço que ligue de novo depois de amanhã, mas que provavelmente é aquilo que lhe disse. Ela torna a ligar no sábado às nove, eu prometo para segunda. Na segunda eu confirmo a morte prematura de todo o circuito impresso. Ela vende para mim mesmo o aparelho ainda na caixa por R$14,50 e já pede que eu encomende um novo. Falo com aquele meu brother da Santa Ifigênia, e combinamos 350% em cima do preço de custo. A título de honorários. Aperto o parafuso da belezinha que me caiu no colo por R$14,50 e passo pra frente pelo preço do novo, para outro cliente.


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Está tudo esquematizado, Lontra. A gente começa falando em possibilidade de apendicite - pela alta ingestão de milho verde na véspera associada à estafa física causada por 16 voltas ininterruptas no pedalinho do lago municipal, conforme relatado pelo próprio paciente.

Mas vamos devagar para não assustar a família, até porque a gente sabe que o cara não tem nada. Se começar a meter muito medo, eles vão atrás de uma segunda opinião e aí a gente se encrenca.

Ratazana libera os trâmites necessários para os exames preliminares, os raios X e os laboratoriais de rotina. Esquema quinze/quinze/quinze pra cada um dos três, como acertado. Golfinho, homem de confiança do Pantera, coordena todo o processo de diagnóstico por imagem (lembrando que aí o esquema é sessenta/dez/dez/dez/dez e que é indispensável a rubrica do Potranca, para a perícia não pegar).

Daí pra frente a gente coloca o infeliz num tomógrafo e diz que o milho verde do quiosque reagiu quimicamente no duodeno e seus grãos transmutaram-se em quistos, um caso incomum mas não propriamente raro nos anais da medicina. Aí a gente diz que é necessária uma ressonância para sacramentar o diagnóstico. Como todos sabem, este exame tem de ser no cash. Mas tudo bem, sondei a ficha e vi que o infeliz é fazendeiro em Palmas. Quanto aos honorários fica 50% para mim e a outra metade para dividir com o zoológico, conforme organograma. Peço que o Avestruz envie cópia deste aos demais envolvidos, que deverão deletar esta mensagem assim que lida. Bom trabalho a todos.

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sábado, 10 de setembro de 2016

DINHEIRO, SEU SUMIDO!




Acabou o dinheiro. Talvez uma das frases mais ouvidas no mundo, provavelmente a mais falada por aqui. Só que o assunto agora não é o caraminguá minguado, a escassez do saldo, o orçamento no vermelho. É o fim do papel-moeda mesmo. Não tem mais coisa que você entrega em troca de outra coisa. Aqueles papéis retangulares que o agiota emprestava para quem estava com a corda no pescoço, em maços amarrados com elástico e outrora feitos de átomos, hoje não passam de bytes. 

O dinheiro que você tem, se tiver a sorte de ter, é um atestado eletrônico de veracidade validado pelo banco em que você tem conta. As notas mesmo, inexistem. Se você cismar de querer levar o que tem, e se o que você tiver ultrapassar os dois ou três mil reais, precisará avisar com 48 horas de antecedência para que o montante possa ser provisionado. 

Vamos rastrear, a esmo, uma sequência qualquer de operações. Dutra & Póvoa Associados Serviços Administrativos S/C Ltda. deposita no dia 30 o salário de Benedito Orestes da Paixão. Benedito Orestes da Paixão deixa em conta o que em poucos dias irá desaparecer a título de débito automático. Da miséria que sobrou ele passa no crédito um maço de almeirão e outro de chicória, solicitados pela patroa no caminho de volta do trabalho. O dono da quitanda repassa o caixa do dia ao fornecedor de pescada, que lhe fiou um caminhão e meio na última Semana Santa. Sete Barbas ME transfere o que nem bem acabou de entrar para BestWall Pedras Decorativas, saldando serviço feito na casa do filho do dono da empresa. E assim se multiplicam as transferências de titularidade. Onde aparece de tudo, menos dinheiro de fato.

O sepultamento definitivo das notas e moedas é previsto por especialistas para 2030, em nível mundial. E não é preciso muita imaginação para adivinhar futuros comportamentos, necessariamente exemplares. Usuários de motel estarão em maus lençóis, pois serão imediatamente identificados, deixando registro do montante gasto, data e hora do bem-bom. O crime organizado estará também com os dias contados, assim como o tráfico de drogas. O "por fora" será necessariamente por dentro, o "sem nota" e o "sem recibo" definitivamente banidos. A Igreja Católica - com todo respeito - terá que substituir a cestinha pela maquininha na hora do Ofertório. As declarações de imposto de renda não farão o menor sentido, pois tudo será necessariamente declarado ao fisco no momento em que ocorrer, e a cobrança dos impostos será instantânea, assim que concluída a transação. 

Cientes do que essa revolução pode representar para suas contabilidades oficiais e paralelas, os políticos se movimentam em dois sentidos opostos. De um lado, pela aprovação da lei de extinção do dinheiro, que garantirá um aporte de recursos nunca antes sonhado pela União, pelos Estados e pelos Municípios. De outro, para que o dinheiro em espécie permaneça circulando exclusivamente em Brasília. E, mais especificamente, nas dependências do Congresso, até que os parlamentares cheguem à conclusão de que a medida realmente será benéfica à sociedade. 



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sexta-feira, 2 de setembro de 2016

SEM MEIAS VERDADES




Lá se vão mais de quatrocentos e oitenta invernos desde que McElysteen e Richards travaram duro embate pelo reconhecimento da invenção das meias. Embora muitos questionem a legitimidade de direitos autorais tanto de um quanto de outro, afirmando que os primeiros exemplares remontam ao ano 600 a.C. e teriam sido usados por mulheres gregas, o fato é que esses dois ingleses parecem ser os mais sérios candidatos à patente.

É bem verdade que McElysteen jamais contestou a invenção dessa indispensável peça de vestuário como sendo atribuída a Richards; mas sustentava que Richards havia inventado a MEIA, no singular, sendo ele, McElysteen, o inventor das MEIAS, no plural - concebidas para cobrir e proteger ambos os pés. Dessa forma, a Richards caberia MEIA patente, por ser o pai de meia invenção. Já o PAR, conforme atestam os croquis e o primeiro protótipo apresentado a alguns empresários ingleses do ramo têxtil, seria de fato ideia de McElysteen. E foi essa, incontestavelmente, a forma de uso consagrada em todo o mundo - exceção aos sacis e pernetas, que muito bem poderiam se virar a contento com uma meia só. 

Centenas de anos mais tarde, já em meados da década de 80, um cabo-verdiano de nome Imeldo Angelyn entrou na disputa com uma ação judicial de reparação à memória de seu finado tio-avô, argumentando ser dele a concepção da chamada meia-luva. A exemplo da luva comumente utilizada nas mãos, a revolucionária meia envolvia separadamente cada um dos dedos dos pés. Argumentava o defunto inventor que o agasalhamento dedo a dedo favorecia um maior conforto térmico nos dias frios, além de prevenir que micoses presentes no dedão contaminassem também os dedinhos, e vice-versa. Ainda segundo ele, esse aprimoramento trazia à meia a sua forma evolutiva final, cabendo ao avô de Imeldo, portanto, o crédito da invenção em todos os almanaques e enciclopédias a serem impressos doravante. Pelo menos, era isso o que pleiteava. Não se conhece, até o momento, em qual instância de julgamento se encontra o seu pedido. 

Na falta de elementos comprobatórios que encerrem de vez essa discussão, os processos, sentenças e recursos judiciais seguem tramitando por tribunais mundo afora. Ora favorecendo a família de Richards, outras vezes dando ganho de causa aos herdeiros de McAlysteen, e eventualmente admitindo a possibilidade de autoria a nenhum deles. Enquanto assistimos a essa secular queda de braço, a meia vai se transformando em objeto de fetiche. Virou moda, nos últimos anos, a realiação de leilões disputadíssimos para arremate de meias usadas por celebridades do futebol, da Fórmula 1, da política internacional e do mundo artístico. Comenta-se que o par de meias utilizado por Usain Bolt na prova olímpica dos 100 metros rasos será leiloado em breve, no salão de festas do Jockey Club do Rio de Janeiro.



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