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domingo, 31 de março de 2019

ACEITA VINHO, SENHOR?




Sabia que não escaparia ninguém, pelo ruído incomum e pela fissura logo abaixo de uma das turbinas. Nem por isso sua mão tremeu mais ao servir vinho para o grisalho panamenho que dela não tirava os olhos desde o check-in em Los Angeles. A echarpe com centenas de loguinhos da companhia aérea disfarçava o suor frio. Seu olhar ia da taça de vinho à turbina condenada, da consciência do dever à certeza da tragédia, não havia clima nem vontade de corresponder à insinuação daquele homem.
Se tivesse idéia das cinzas a que nos reduziremos, não perderia os últimos momentos nesse joguinho infrutífero. Pense em sua mulher, senhor. Nos filhos, no cachorro, nos negócios, não em mim. Faça um ato de contrição, um nome do Pai, por favor, desmonte esse ar patético de cobiça carnal. Torça para que haja algo acima desses 14 mil pés.

Nenhuma movimentação estranha na cabine, ninguém além dela tinha percebido. Muitos dormiam e passariam do calor das mantas de bordo para o sono eterno sem darem pelo ocorrido. Para o não-ser sem escala e sem stress. Envolveu a taça de vinho do panamenho com o guardanapo.

- Thank you so much (com uma piscadela desavergonhada).

Adeus aos procedimentos protocolares e gestos contidos. Pegou a garrafa de vinho do carrinho de bebidas e começou a sorvê-la no gargalo, olhando de soslaio a turbina com defeito. Afrouxou o nó da echarpe e sorriu cúmplice para os próprios pensamentos. Viu-se a si mesma entre as nuvens, lendo “O apanhador no campo de centeio”.

O panamenho foi buscá-la com mais uma investida.
- Um milhão pelos seus pensamentos.
- Não valem isso. E tenho pra mim que poderiam assustá-lo.
- Isso são modos de uma aeromoça que se preze, beber no gargalo na frente dos passageiros?
Há de ser o primeiro a espatifar-se, pensou. Bem na janelinha da falha mecânica e se fazendo de gostoso. Que seja agora, no pileque, a inconsciência. Explodamos de uma vez.

(Mais um gole, bem sorvido. Trança as pernas)

Caiu sobre uma poltrona vazia e espiou pela janela. Sobre o Saara, agora.
Não cesse essa anestesia boa, quero inexistir feliz. Serão semanas de busca.

Riu.



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domingo, 24 de março de 2019

PARAÍSO DA TRAPAÇA



Tradicional loja da cidade, em local nobre e bem movimentado, passa o ponto com amplo sortimento de artigos para magia, ilusionismo, pegadinhas  e gozações para festas em geral, fantasias para carnaval e eventos temáticos, revólveres de brinquedo, réplicas de uniformes militares, camisas regata de salva-vidas e uma infinidade de outros produtos assemelhados. 

Fazem parte do estoque diversos modelos de dados viciados para casas de jogatina e roletas clandestinas, baralhos com cartas marcadas, mulheres cortadas ao meio, coelhos de cartola, varinhas de mágico, maiôs de partner e  moedas para sorteio que só caem no lado da coroa. 

Há ainda centenas de embalagens a vácuo contendo cobrinhas de borracha, cocôs de mentira, copos modelo babão, livros com mulher pelada na capa que dão choque quando abertos, cigarros explosivos, notas fajutas de dinheiro, baratas e escorpiões de plástico, gelos com mosca, almofadas do pum e chicletes que soltam tinta na boca. 

Acompanham também, no estado em que se encontram nos mostruários e manequins, variados chapéus de marinheiro/bruxa/mexicano/boia fria/policial rodoviário, narizes de palhaço, dentaduras do Drácula, perucas masculinas e femininas de diferentes comprimentos e materiais.

Assim se anunciava o “Paraíso da Trapaça” a possíveis interessados na aquisição do negócio, até meados da semana retrasada. A transação de transferência de propriedade foi efetivada anteontem, sendo o comprador um forasteiro com suposta experiência no ramo, e que se apresentou como um dos grandes players brasileiros no ramo do entretenimento. 

Poucas horas após concluída a venda do estabelecimento e respectivo estoque, o antigo proprietário do “Paraíso da Trapaça”, visivelmente transtornado, lavrou boletim de ocorrência no sétimo distrito policial. Argumentou a vítima que recebeu do comprador um cheque com fundo falso, sendo o contrato de compra e venda assinado com tinta à base de sangue do diabo – o que fez com que a assinatura fosse desaparecendo gradativamente até sumir de vez. Tanto a polícia quanto o advogado de defesa do vendedor apontam indiscutível má fé do adquirente, que com toda certeza irá responder criminalmente por tentativa de estelionato. 



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Imagem: reidasmagicas.com.br


sábado, 16 de março de 2019

É O FIM!



Não tem mais o "The End" no fim dos filmes, e isso vem causando um debate acalorado em segmentos diversos da sociedade. 

Quase 90% das produções mais recentes de Hollywood acabam de repente, sem mais nem menos. De uma cena como outra qualquer passa-se para os créditos, sem nenhum gran finale, um beijo, um adeus, um carro ou uma pessoa sumindo pela estrada. E, logicamente, com a clássica subida da trilha sonora sinalizando que aquela é a sequência derradeira. Tudo nessa vida tem começo, meio e fim, e isso inclui os filmes a que assistimos", afirma um cinéfilo na fila de bilheteria do Cineclube Fellini. 

Mas esse raciocínio encontra ferrenhos opositores, que colocam tal argumento como um insulto à inteligência. 
"Se você chega à última unidade do seu Hall's Mentho Liptus, não é preciso nenhum aviso impresso na embalagem ou naquele papelzinho que envolve a bala para saber que a guloseima acabou. O mesmo se aplica aos sacos de cimento, às solas de sapato, às velas de sete dias, aos perfumes Giorgio Armani e até aos carecas - já que é só olhar no espelho ou passar a mão na cabeça para ter a triste certeza de que o cabelo está acabando". 

Um outro partidário do anti-fim argumenta: "Quem sustenta esse tipo de bobagem e leva adiante uma discussão desse nível mostra que o que está no fim, na verdade, é o próprio QI. Se é que um dia o QI dessa pessoa teve algum começo. Só falta o sujeito inventar um adesivo "Fim" para grudar na testa dos defuntos ou no rolo de papelão do papel higiênico". 

Aos berros, uma mulher rebate: "É um direito de quem compra ingresso usufruir do seu "The End", isso faz parte da tradição cinematográfica. O fato de entrarem os créditos sobre fundo negro não sinaliza necessariamente o fim da obra. Não há artigo na Constituição que determine obrigatoriedade alguma nesse sentido. Temos, inclusive, casos de filmes que continuam após os créditos, pegando de surpresa os que têm o hábito de cair fora do cinema tão logo a ficha técnica comece". 

A Associação dos exibidores de salas multiplex contra-argumenta, afirmando que “se é para legendar, então sugiro que coloquem a palavra “começo” antes da primeira cena do filme. Quem sabe assim as coisas fiquem suficientemente claras na cabeça desses retrógrados”. 

Até as 23 horas de ontem a discussão prosseguia, sem perspectiva de acordo. 


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Imagem: https://onesmileonelife.blogs.sapo.pt


domingo, 10 de março de 2019

MESTRE DUÑA PROFETIZA UMA REVOLUÇÃO NA PROPAGANDA



“O universo publicitário jamais será o mesmo”. Assim se manifestou o Venerável Duña, em coletiva de imprensa realizada em sua gruta, na semana passada, para revelar ao mundo as visões que teve sobre o futuro da propaganda e suas implicações para a humanidade. 


ÓCULOS - DUAS VERSÕES
Óculos de leitura: na parte superior ou inferior da lente, seria gravado em silk-screen algo do tipo "Leia Veja, leia Istoé, leia Folha, leia Estadão ou leia lá o que for que ainda sobreviva de venda em banca ou assinatura.
Óculos de sol: mesma forma de inserção publicitária da versão anterior, porém com marcas que tenham relação com as lentes escuras e o momento do seu uso, como protetor solar, cerveja, sorvete e recintos de velório.


MACARRÃO DE LETRINHAS
Nesse caso, o custo da propaganda comportará uma enorme variação, a depender do número de letras da marca e do público à qual se destina. Vamos a um exemplo, bastante esclarecedor. Suponha a marca "Tim". Conforme a verba disponível do anunciante, um lote maior ou menor do macarrão sairá de fábrica apenas com as letras "T", "I" e "M". Uma vez cozido o macarrão na sopa do consumidor, as possibilidades das letras formarem o nome da empresa de telefonia no prato são enormes, pois há somente três letrinhas a serem combinadas. Além disso, trata-se de um produto destinado a uma gama imensa de consumidores, pois todos possuem pelo menos um telefone celular. 
Agora, analisemos o caso da marca "Massey Ferguson". É altamente improvável que as letrinhas se juntem e formem o nome do anunciante no prato do freguês. E, na eventualidade de se juntarem e darem o recado publicitário, o número de pessoas interessadas na compra de um trator é infinitamente menor que no caso dos potenciais usuários de uma operadora de telefonia. Assim, o valor a ser pago pela Tim seria bem maior que o da Massey Ferguson.


SABONETE
O produto possui uma característica original que é invariável: a impressão do nome ou logo em relevo sobre ele. No caso, a proposta é que em um dos lados do sabão permaneça do mesmo jeito. Do outro lado, porém, também gravados em relevo, teríamos marcas como Cotonetes, Artex, Prestobarba e congêneres, diretamente ligadas ao pós-banho. Vale lembrar que o relevo em sabonete comporta profundidade maior, o que significa aumento no ganho de exposição da marca conforme o produto é diluído em água. 


IMPRESSORA
Uma joint-venture da fabricante de impressoras com outras empresas pode desencadear uma das maiores estratégias publicitárias de que se tem notícia. O buffer (memória de armazenamento) da impressora seria pré-programado para imprimir uma discreta mensagem da marca patrocinadora, antes que o documento comece a ser impresso. Apareceria uma mensagem do gênero: “Esta impressão é um patrocínio de...”. Em contrapartida, a marca patrocinadora contribuiria com uma parcela do custo de produção de cada impressora, diminuindo o preço do produto ao consumidor. 


Após anunciadas as profecias, Mestre Duña se recolheu ao interior de seu oráculo, sem maiores comentários, deixando a imprensa nacional e internacional ávidas por mais detalhes sobre as revelações. 





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