.

sábado, 24 de setembro de 2011

RELATOS LITERAIS: VIAJAR NA MAIONESE



Duvido que você conheça alguém que tenha ido até lá e não tenha voltado cheio de histórias fantásticas para contar. Coqueluche do mercado turístico brasileiro e internacional, a chamada Costa da Maionese vem atraindo, com seus deslumbrantes encantos, um número cada vez maior de veranistas mineiros, gaúchos, amazonenses e polinésios.



Nossa equipe de jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas decidiu conferir de perto, quilômetro a quilômetro, toda a adrenalina desta espetacular aventura.


Como seria de se prever, durante o percurso o veículo apresentou dirigibilidade comprometida e comportou-se como se estivesse num rinque de patinação. Além da falta de agarre dos pneus e da instabilidade na suspensão, o atrito constante com o creme interferiu na aerodinâmica, efeito que tornou-se mais intenso à medida em que aumentávamos a velocidade. Mas não se impressione: em pouco tempo você se habitua às condições da pista e ganha confiança suficiente para transportar as crianças, a sogra e até um boitatá de porte médio no banco de trás.


O ideal é encarar inteiramente nu o trajeto, dispensando inclusive a sunga, sob pena de engordurar suas peças de roupa a ponto de torná-las imprestáveis. Recomendamos unir o útil ao agradável, permitindo que a oleosidade da maionese tenha efeito de protetor solar na pele.


Sentir-se untado dos pés à cabeça é sem dúvida uma sensação indescritível, talvez só superada pelas cócegas na região axilar. A empreitada é realmente divertida, mas nem tudo é um mar de Hellmann's. Um vidro um pouquinho aberto em uma das janelas pode ser o bastante para a entrada de salmonelas, o que significa parada obrigatória antes do próximo pedágio. E às pressas, à beira do acostamento mesmo - como de fato veio a acontecer com o nosso repórter, que encontra-se até hoje em observação na UTI do Hospital Sacré Couer, sem previsão de alta.


À parte estes poucos e eventuais dissabores, viajar na maionese costuma ser uma deliciosa experiência. Entregue-se ao deleite de observar de perto e fotografar o suco de limão misturando-se às gemas de ovos e aos óleos vegetais, em lustrosa e inesquecível homegeneidade, até dar ponto turístico. O fenômeno lembra, de certa forma e guardadas as devidas proporções, a pororoca amazônica. Passeie despreocupadamente a bordo de facas, garfos, colheres e outros utensílios autopropulsores, em companhia da família, provando de todas as variantes possíveis dessa iguaria culinária: a maionese de casamento, a de Natal e ano novo, a de atum com a manjadíssima rosa feita de pele de tomate e até a vegan, que tem de tudo menos maionese de verdade.


Quanto a opções de hospedagem, fique tranqüilo: ao longo de todo o trajeto espalha-se uma extensa rede hoteleira, com guias e roteiros customizados para os mais diversos gostos e paladares. Aproveite até o último bocado. E lembre-se: uma vez de volta ao ponto de origem, feche bem o pote e conserve-o sob refrigeração, observando o prazo de validade do produto.




© Direitos Reservados


Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.


Blogs:

http://www.consoantesreticentes.blogspot.com/  (contos e crônicas)

http://www.letraeme.blogspot.com/  (portfólio)

Email: msguassabia@yahoo.com.br

sábado, 17 de setembro de 2011

ESTA É A SUA VIDA


Ilustração: Thiago Cayres











- É daí que publicaram o anúncio "Sua vida inteira com preço pela metade"?


- Isso. Eu escrevo biografias por encomenda. Tenho quatro na fila, só pra esse mês.


- Mas essa oferta é pra todo mundo ou é só pra quem tem uma vidinha do tipo mais ou menos, sem muitas peripécias?


- Olha, tanto faz se a vida é da Dilma Rousseff ou da tia-avó dela, que ficou lá na Ucrânia.


- Bulgária.


- Isso, Bulgária. É indiferente, meu camarada.


- Então, mas pra aproveitar a promoção existe um limite de páginas?


- O meu sistema de cobrança é por vida, não por página. Caso o livro fique fininho, não tenho nada a ver com isso. Se a vida do sujeito é inexpressiva a culpa é do biografado, não do biógrafo. Agora, uma vida cheia de sobressaltos é mais trabalhoso, enquanto que uma vida sem muitos altos e baixos é mais tranquilo de fazer. De qualquer forma, não tem diferença de custo.


- Mas você concorda que, se eu tenho uma vida comum, eu não vou querer uma biografia, certo? Vou falar o quê? Que eu acordo, escovo os dentes, tomo café da manhã, vou trabalhar, volto pra casa, janto e vou dormir? Quem é que vai querer ler isso?


- Bom, se você pensa assim, então porque tá ligando?


- Isso é problema meu. O senhor faça o favor de ter mais educação com os seus clientes potenciais.


- Tá bem, me desculpe, é que você me ligou num momento meio conturbado. O velhinho que eu estou biografando está morre-não morre e a história toda ainda está patinando no capítulo 3. Mais exatamente na parte do bolo estragado da festa da crisma. E o pior é que o velho está com insuficiência respiratória severa. Eu tenho que ficar com o ouvido colado na boca seca do desgraçado pra ir ouvindo aos poucos o que ele fala. Daí então eu corro pro computador, escrevo aquilo que ele disse e volto pra ver se arranco mais alguma coisa antes que ele bata com as dez.


- Sei. Só que pra contratar os seus serviços eu preciso ver algum livro que o senhor tenha escrito, pra avaliar o estilo, sabe como é. Tenho que ver o que eu estou comprando.


- Sim, sim. Podemos dar um jeito, embora o meu nome não apareça como escritor por questões de contrato com o biografado. Pra todos os efeitos, é o sujeito que escreveu, entende? Escritor fantasma não tem portfólio.


- Certo, mas agora voltando ao orçamento. Como eu ainda estou muito bem disposto e não pretendo morrer tão cedo, mereço um desconto extra. Não dá pra comparar o trabalho que o senhor vai ter comigo com aquele que está tendo com o velhinho vai-não vai. Posso inclusive ir aí na sua casa, pra facilitar as coisas na hora de contar as histórias. Além disso o senhor deve estar meio a perigo, já que publicou seu anúncio num site de compras coletivas. A coisa anda feia pro lado do seu cheque especial, não anda não? Me vê aí o melhor preço à vista que o senhor pode fazer.


- Não estou matando cachorro a grito, não! Como disse, meu amigo, tem quatro na sua frente e a fila tem que andar. Portanto, se for continuar me esnobando, eu tenho mais o que fazer.


- Quanto, eu quero saber quanto sai a brincadeira...


- Então, tá. Vou dar o meu preço sim. Sabe quanto? Dois reais. Dois reais está bem pago, porque pelo jeito a sua vida é tão nula que não vai me dar trabalho nenhum. Não deve encher nem um gibi. Quando muito, um folhetinho desses que distribuem no semáforo.


- O quê????


- Se bobear, cabe tudo na frente. Não precisa nem do verso.










© Direitos Reservados

sábado, 10 de setembro de 2011

12 YEARS OLD



Ilustração: Thiago Cayres


I







Chamemos de “platô” aquele efeito áureo, a sensação boa do pileque propriamente dito. Pena ser efêmero demais, raramente vai além de dez minutos esse golden moment. E não adianta querer prolongá-lo. Está quase sempre entre o fim da primeira e o começo da segunda dose. Interessante a percepção da lindeza extrema que emana das coisas desimportantes, nesta fase do processo. Mesmo você, quem diria, acaba ficando lindo. Veja até onde pode chegar a alucinação da bebida...






II






Três ou quatro generosas bicadas e se instala o fator solidário, a ânsia de dar e receber calor humano, a qualquer preço. Sem que você tenha a menor possibilidade de controle, esse espírito natalino fora de época se esparrama por tudo e todos. Sobra até para o rato no ralo do quintal - a quem você não negaria um trago nem um abraço caloroso, fosse ele do seu tamanho e chegado numa birita. Vai um queijinho pra acompanhar, ratão velho de guerra?










III






Vamos de cowboy porque está frio. Você desliga do que interessa – as coisas enfadonhas sujeitas às leis de ação e reação, causa e efeito – como, por exemplo, deixar de pagar a parcela de financiamento do carro e ter suas garrafinhas de Buchanan’s confiscadas. A partir daí, você começa a entrar numas até com o rejunte do azulejo, filosofando longamente sobre o papel fundamental de suas vias lisas e pavimentadas para a locomoção segura das formigas caseiras. Você olha para o hominho de saiote do rótulo e se pergunta se é aquele cara desenhado a bico de pena quem engarrafou o bálsamo, ou quem seria o escocês dono da destilaria, ou porque os paraguaios são tão grosseiros em suas falsificações, ou o que faz o Natu Nobilis provocar furúnculos no rosto de seus apreciadores.






IV






A questão é que a sua autocrítica muda bastante depois do primeiro copo esvaziado, e aquela promessa de fazer da primeira a única dose fica na promessa. E do fugaz platô você escorrega pra fase xarope e decididamente torpe, onde tenta o resgate do estado de graça bebendo mais, e mais, e mais. É justamente essa a hora do seu pai chegar, com o mesmo bigode fino e o mesmo terno de linho da foto no criado-mudo, trazendo debaixo do braço uma penca de lembranças bem mais envelhecidas que os 12 anos do uísque. Ao lado vem seu avô, arrastando os chinelos e deixando um rastro de polvilho Granado pelo corredor onde você neste momento passa trançando as pernas, a caminho da geladeira e em busca de mais gelo. Sim, o gelo faz render mais o líquido precioso.






V






Você baixa os olhos. O livro sobre a mesa. A página misteriosa, a mais intrincada e hermética passagem da Clarice Lispector, uma que você marcou para tentar decifrá-la daqui a alguns anos, ganha entendimento tão elementar quanto um gibi do Chico Bento. Um sentido que só se anuncia com os neurônios assim, meditando em seus divãs. Isso é o que se passa enquanto o entorno flutua e parece sussurrar vozes de outros planos, a estranha certeza de estar a um fio da próxima dimensão. Você volta ao kilt do hominho da garrafa, a curiosidade aumenta e, já que o computador está à sua frente, você acessa o site do fabricante. O patrocinador da sua trip falando dele mesmo. A história, o portfólio de produtos, fale conosco. A realidade é movediça, o dedo de Deus mexe o drink onde você turbilhona como se estivesse dentro de uma máquina de lavar.


















© Direitos Reservados



Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.



Blogs:


www.consoantesreticentes.blogspot.com (contos e crônicas)


www.letraeme.blogspot.com (portfólio)


Email: msguassabia@yahoo.com.br

sábado, 3 de setembro de 2011

EQUINO EQUÍVOCO




Imagem: Thiago Cayres

Eu não poderia estar aqui. O homem do abate deve estar bêbado. Cavalos não vão para o matadouro, morrem de velhos. E não me venham, por favor, com a propalada mortadela equina, que isso é lenda infundada. O que se poderia aproveitar da minha carne adocicada e gordurosa para fazer embutido não justificaria o custo, o trabalho e a duvidosa aceitação do paladar humano.



Entrei na fila errada, e ela está andando rápido. Digo que é doído o sentimento do boi, a agonia adrenando as tripas, a certeza ancestral de saber ser este o caminho da morte. O boi conhece a sua hora e aceita sua fatalidade assim como se conforma com o afastamento prematuro da mãe, com o leite surrupiado dele para fartar os meninos de bigodinhos brancos e poupar os seios de pera das mamães novas. O boi é triste e conformado, tem a noção instintiva de que nasce para abandonar a vida no auge do viço.


Com cavalo é diferente. O máximo que fazem é usar nossa crina em arco de violino. Até o esterco é subaproveitado. Com um pouco de sorte ou influência leva-se um vidão puxando charretinha em estância hidromineral. Pangaré manso, só no trotinho pra criança não assustar. Que galopem eles, que se dizem racionais, em suas metrópoles. Que se ferrem, que se esfolem e se matem para amealhar a porra do dinheiro que no fim das contas será gasto lá, na calmaria das montanhas, em infindáveis voltinhas de seus pimpolhos carregados pelos meus primos, enquanto eles fornicam em suas suítes.


Agora só tem mais um na minha frente. Basta um relincho pra que me tirem daqui ou terei que meter um coice no peito desse imbecil?






© Direitos Reservados