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sábado, 31 de março de 2012

DOIS DENTES



Foi na sala de espera do dentista, enquanto matava o tempo lendo uma história em quadrinhos, que caiu a ficha. Me dei conta que os personagens, quando humanos, apresentavam no lugar dos dentes duas fileiras brancas sem separação, uma em cima e outra embaixo. De onde formulei minha teoria, inútil mas não completamente estúpida: os dentes deveriam ser 2, e não 32. Duas peças ósseas e inteiriças, lisas como fórmica, enraizadas nos respectivos maxilares.







Tudo bem que, ao dividir a engenhoca mastigadora em frações, a natureza foi sábia: havendo problema o reparo é localizado, só se mexe na porção avariada. Mas cismei de imaginar se mother nature, no caso, tivesse sido tão pouco inteligente quanto o meu devaneio.






Seria a ruína dos ortodontistas, que não teriam o que fazer com seus aparelhos corretivos por não haver mais dentes tortos nem encavalados para alinhar. Os fios dentais sumiriam das prateleiras e as escovas durariam décadas. Resíduos de alimentos não encontrariam onde se alojar, e consequentemente as cáries estariam em maus lençóis. Fábricas de palitos fechariam as portas da noite para o dia. Por outro lado, um tombo qualquer, em efeito análogo a uma pedrada no para-brisa, poderia trincar de fora a fora o reluzente semicírculo bucal, que ganharia um racho vitalício e indisfarçável. Os exames de arcada, comuns nas perícias criminais, deixariam de existir, já que todas elas seriam idênticas. Grafiteiros veriam na alva e extensa chapa um muro biológico para expressar sua arte. A cultura underground conceberia a Odontatoo, a tatuagem dental, personalizando o standardizado sorriso do freguês.






É, melhor parar por aqui. Antes que me arrebentem os dentes.






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Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.



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sábado, 24 de março de 2012

UM CONTROL Z DE PRESENTE




Dedicado ao meu amigo e ilustrador deste texto, Thiago Cayres, que faz aniversário no mesmo dia que eu. E também para o meu pai.







Como de costume, estava eu à noite na varanda, curtindo o fastio da janta e dando comida pro cachorro, quando o Homem lá de cima chegou de surpresa e aboletou-se na cadeira do papai. Que aliás, era mesmo do meu pai. Sem maiores cerimônias, ajeitou-se na poltrona, coçou por instantes a longa barba e desembuchou:


- Diga lá, criatura. Como é que está essa força?


- Oi, Criador. O Senhor por aqui!


- Trouxe pra você um presente. Não repara, é só uma lembrancinha.


- Um presente do Onipresente. Não precisava se incomodar...


- Imagina, temos que comemorar seu aniversário.




Abri o pacote, embrulhado em um papel cheio de anjos, e no fundo dele vi um pequeno cartão escrito com a inconfundível letra do Todo-Poderoso: "Vale um Control Z".


- Meu Deus! Um Control Z! O comando mágico que conserta as besteiras que a gente faz no computador.


- Pois é, pra você apagar alguma burrada que tenha feito. Um erro que tenha cometido na vida, não no computador. Escolha o momento em que quiser voltar atrás e faça bom proveito. Seus hábitos de fazer o sinal da cruz quando passa em frente à igreja e de desviar das formigas que andam pela calçada o fazem merecedor deste mimo, meu caro.


- Ah, então já sei o que quero fazer. Aproveitando que o Senhor está na cadeira que foi do meu pai, traga ele de volta pra mim. Um Control Z faz isso, não faz?


- Meu querido, o que eu te dei de presente não é lâmpada de Aladim. Um Control Z só pode reverter uma ação que você tenha praticado e se arrependido depois. Ele funcionaria, no caso, se você tivesse colaborado para que seu pai se fosse. Mas felizmente não foi isso o que aconteceu. Do contrário você estaria bem arrumado Comigo...


- Bom, nesse caso, peço que o Senhor use o Control Z que me deu e conserte a Sua ação de ter levado meu pai. Com todo respeito que Lhe devo, o que me diz da ideia?


- Não diga nunca mais isso, sob pena de cair em pecado mortal! Como Onipotente, sou infalível. Se seu pai se foi, era a hora dele e não cabe a você questionar os Meus desígnios. Estou muito chateado com o que disse, e sua ficha razoavelmente limpa acaba de ser maculada.


- Mas Senhor, veja bem...


- Porém, Minha infinita bondade permitirá uma remissão do acontecido. Use o Control Z que acabou de ganhar para voltar atrás no que disse. Aí então estaremos quites. Sua impertinência o forçará a desperdiçar o presente que com tanto carinho escolhi para você.


- Tá certo... mas sem chance de me arrumar um outro Control Z depois deste?


- De jeito nenhum. Assim, sugiro que o use pra limpar sua barra com a minha Pessoa. Além do mais, se bem o conheço, você não ficará com a consciência tranquila sabendo que Eu voltaria lá para cima sentido com o que fez.


- Ah, isso não ia mesmo.


- Então vamos logo com essa história, porque Eu tenho a eternidade toda mas não tenho muito tempo a perder por aqui. Dê um Control Z no que disse, entenda que é para o seu bem e saiba que o seu pai está ótimo lá em cima, cuidando de importantes afazeres.


Fiz a vontade de Deus. Acionado o Control Z, olhei para a cadeira do papai e dei com ela vazia, como se nada tivesse acontecido. Só os latidos do Poopin, pedindo mais ração. E as batidas no meu peito, pedindo de volta o meu pai.






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sábado, 17 de março de 2012

APARTAMENTO 607




Naquele cubículo eu a amei mais do que seria o bastante a dois mamíferos normais. Ou mais do que seria conveniente aos olhos e ouvidos dos vizinhos.



- Essa penugenzinha mais espessa caminhando pro seu umbigo, olha só.


- Ah, seu bobo. Cada uma...


Viro pro outro lado e dou com o peixe em zigue-zague ali no aquário, assustadinho. A falta de gravidade, zumbe a bomba de ar, há um verde musgo nos cascalhos e o reflexo da gente distorcido no vidro.


Quero que a tarde plane sobre a pólis desse jeito, com a tv ligada e nos ligando por um zonzo abandono de afazeres. Além do mais, há quase um tudo nesse nada, e é um estrondo a brisa leve nas avencas. Que mais a gente pode desejar, a não ser o dilatamento do tempo governando o espaço nosso?


- Alguém acendeu um aqui perto, sente o cheiro.


- Cheiro é o seu, meu bem.


Cheiro é o dela. Estrógeno concentrado nos cabelos fininhos da nuca. A falta que você fez enquanto hoje não chegava, se soubesse. Se soubesse se arrancava de onde estava e se atirava sem vergonha sobre mim, antes do prazo combinado e dos procedimentos cumpridos.


Os dentes todos, brancos e seus, rompendo a carne da maçã. Que bom é assim, vendo você sem que se saiba sendo vista. O lençol se espraia em ondas pela cama. Florzinhas, detalhes, coisas de mulher que põe sentimento no cio. Há uma batalha em andamento nesses três metros por quatro, sem vencedor nem vencido, só a disputa e a conquista do território do outro. Estar dentro do outro lado, ser os dois lados e um só. Depois é água e bandeira branca, amor.


- Duas coisas, meu anjo: pede uma pizza e traz a manta.


- Sim senhora. E eu, também estou no pedido?


É de perder a cabeça quando ela aciona esse riso, como se abrisse um preview do mistério de que é feita. Vinte minutos de cócegas e guerra de travesseiros. Nada muito mais sério pode rolar daí pra frente, eu sei mas finjo que não e tento falar de nós dois enquanto conto suas estrias.


- Espera aí que eu já volto, o motoqueiro tá buzinando.


Uma sirene de polícia e um alarme disparado Sua pulseira sobre a antologia de Drummond. O relógio e as chaves de casa, do carro e de nós. Trago os talheres e os pratos.


Gosto tanto do atrevimento, tão raro e tão bem-vindo. Das poucas vezes em que você se presta a me domar. É claro que a porta pode se abrir para uma procissão de camelos, mandalas de pedra podem passar razantes sobre nossas cabeças que tudo bem, nada que assuste ou afaste os olhos cravados nos olhos.


- Me ajuda aqui com o fecho do vestido.


Se ela tem mesmo que ir, que vá cheirando a mim. A saciedade é uma ilusão que dura quase 10 minutos. Tudo o que vier a acontecer será só ínterim entre sua partida e seu retorno incerto.


O que consola é você deixar pequenos vocês nos arredores. Batom no copo, cabelo no ralo. Uns rastros poucos que duram, quando muito, até amanhã. E amanhã é muito longe da outra vinda, quando aqui será o nirvana novamente.






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sábado, 10 de março de 2012

ÁGUA NO SHAMPOO


ILUSTRAÇÃO: THIAGO CAYRES



Não é novidade para ninguém que nosso salão está com os fios, ou melhor, com os dias contados. Ou tomamos providências emergenciais ou seremos forçados a fechar as portas.



As orientações abaixo são estritamente confidenciais. Se cairem nas mãos de alguém que não pertença ao quadro funcional, estaremos irremediavelmente perdidos. Assim, sugiro a todos que destruam este documento assim que finalizarem sua leitura.


De forma geral ficam valendo como padrões, até segunda ordem, os procedimentos a seguir.


Sem que o cliente perceba, procurem deixar o cabelo pelo menos meio centímetro mais comprido que o solicitado. Exemplo: nos cortes masculinos, se pedirem para cortar com a máquina 2, cortamos com a 3, se pedirem com a 1, cortamos com a 2, e assim sucessivamente.


Para as mulheres, sugerimos indicar como nova tendência mundial a franja quase caindo nos olhos, o que as obrigará a fazer manutenção do corte a cada 5 dias no máximo.


Vamos tentar, tanto quanto possível, canalizar os atendimentos para datas com lua crescente. Como todos sabemos, cabelos crescem mais rápido nesses dias e consequentemente o cliente volta antes.


Shampoo e condicionador: diluir na proporção de 3:1, no mínimo. E nada de repetir a operação, sob pena de demissão por justa causa.


As assinaturas de revistas, que já estavam suspensas desde 2006, prosseguem cortadas. Uma vez que ninguém mais lê revistas tão velhas, venderemos as que estão em uso para empresas de reciclagem, destacando em uma faixa ou cartaz que estamos fazendo nossa parte por um planeta sustentável, eliminando papel e colaborando para a sobrevivência das florestas.


Convênio com médicos ginecologistas.
O tempo que as mulheres perdem cortando os cabelos ou fazendo as unhas é, a bem da verdade, perdido. Assim, enquanto tratam da beleza poderiam também cuidar da saúde. Passaremos a oferecer um diferencial único no mercado: exames de Papanicolau simultâneo ao corte de cabelo, por meio de um aparato ginecológico volante, operado por médico da especialidade conveniado ao salão.


Banco de cabelos de notáveis.
Comportamento ético é muito bonito no discurso, mas não é este o caso em nossas atuais circunstâncias financeiras. Desta forma, partiremos para a fraude sem maiores dilemas de consciência. O engodo na cara dura. Simples assim: não jogaremos no lixo as mechas recolhidas no salão. Inventaremos donos célebres para elas, avalizadas por certificados de autenticidade igualmente falsos, com o cuidado de escolher tons de mecha que correspondam à cor natural do cabelo da celebridade. Como a descoberta do golpe seria caso de polícia e de uma pauta especial no Globo Repórter, ofereceremos as relíquias só em circuito interno e para os clientes mais bobos, que caiam facilmente na esparrela. Além de faturarmos bem com a brincadeira, ficaremos com a fama de sermos o salão de beleza de gente famosa.


Outras sugestões são bem-vindas. Lembrando a todos os colaboradores o lema da nossa campanha de redução de custos: “Quanto mais cortes de cabelo, menos de cabeça”.



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sábado, 3 de março de 2012

A SECO


ILUSTRAÇÃO: THIAGO CAYRES


Colecionava canetas. Não as que considerava belas, diferentes ou raras, mas todas as que usava até as cargas chegarem ao berro. E só se permitia guardá-las após secarem irremediavelmente: enquanto não se tornassem inúteis, não poderiam pertencer à coleção.







A tal ponto chegou a compulsão em juntá-las que, estivesse fazendo o que fosse, com a mão direita ou a esquerda rabiscava qualquer coisa com a intenção única de gastar tinta e incluir mais um exemplar à extensa renca. Falando ao telefone, assistindo TV, trabalhando e até mesmo dirigindo, lá estava ele com um risque-rabisque ao lado ou no colo, alternando entre movimentos retos e circulares para prevenir LER e tendinite.






Com o tempo foi percebendo que as canetas mais vagabundas gastavam mais rápido, o que o levava com frequência quase diária ao camelódromo. De lá voltava com dúzias delas, e nem bem se despedia do dono da banca já começava a rabiscar pelo caminho. Muros, postes, panfletos de comida por quilo, toda superfície onde a ponta da caneta deslizasse servia para dar vazão à neura. Rabiscava com o alívio de quem esvazia a bexiga, toma fôlego, mata a fome. Já nem dormia direito, julgando desperdiçadas as horas em que ficava sem caneta à mão. Daí passou para o vandalismo sem controle. Era detido riscando carros pelas ruas, assentos no metrô, fórmicas de balcões de lanchonete, cabines de elevadores. Nos acessos mais violentos, metia-se em banheiros públicos e pintava em tinta esferográfica todas as portas que via pela frente.






Preso em flagrante tentando rabiscar os quadros do museu da cidade, não houve fiança que o tirasse dessa vez da delegacia. Na cela, ao invés de um risquinho na parede para contar os dias de cativeiro, fazia um a cada segundo transcorrido. Prisioneiro de sua paranoia, forrava tudo ao redor com centenas de milhares de pequenos traços. Até se contorcer em cãibras, até sangrarem as mãos, até que a carga de vida enfim secasse.






© Direitos Reservados




Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.



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