.

sábado, 28 de setembro de 2013

TESTAMENTO DE HYPÓLITO RUFINO PEIXOTO




Eu, Hypólito Rufino Peixoto, no gozo de meus direitos e de minhas plenas faculdades mentais, com o intuito de coibir litígios e desavenças acerca do meu espólio, venho de livre e espontânea vontade, por meio deste instrumento, deixar disposta a partilha a meu gosto, conforme abaixo descrito.

À Justina, companheira abnegada e fiel em minha longa enfermidade, deixo uma imensa gratidão, todo o meu afeto, o São Francisco de gesso que fica no corredor, o monóculo com a Nossa Senhora Aparecida, a certidão de casamento e o retrato da lua-de-mel em Poços de Caldas.

Ao meu cunhado Leléu, tido e havido nesta terra como um burro pronto e acabado, deixo minha sela e respectivo arreio, que lhe cairão bem sobre o lombo. À minha irmã Cinira, que gastou a vida a serviço desse viciado em truco, lego rédea e um par de esporas, já que um burro com livre arbítrio é a pior das ameaças à sociedade organizada.

À minha sogra, junto a quem tenho tantas dívidas morais e espirituais, transmito também as dívidas materiais – as já vencidas, as presentes e as que doravante venham a surgir em meu nome, seja como compromissário ou como avalista.

Não abandonarei à própria sorte aqueles que as más línguas chamam de “frutos de união carnal espúria”, ou seja, os bastardinhos que espalhei por essas plagas. Saibam todos que o seu genitor não lhes negará o amparo e o devido quinhão, ainda que hipotecado, na forma de um alqueire e meio de capim-napiê (Pennisetum purpureum), cultivados no sítio.

O celular pré-pago, juntamente com os R$ 4,36 de crédito remanescente, fica para meu capataz Onofre. Uma liberalidade de minha parte para recompensá-lo pelos valorosos préstimos ao longo de 38 anos. Ele que ouviu de mim tantos desaforos, xingamentos intempestivos e acusações levianas, agora merece falar um pouco.

Quanto ao aquário da sala, alvo certo de acirrada disputa, proponho aos herdeiros que amigavelmente se dêem mútua quitação da seguinte forma: Justina fica com os peixes ornamentais, Cinira com a bombinha de ar, Onofre com o filtro, Leléu com o recipiente de vidro e os bastardos com os pedriscos que ficam no fundo.


OUTROS BENS E HAVERES

Suínos e bovinos
Três gomos de linguiça (de procedência insuspeita e com carimbo do SIF), dois quilos e meio de carne de segunda e mais meia panela de coxão duro duplamente moído, que estão no gavetão de baixo do freezer. Façam disso o melhor e mais rápido proveito que puderem.

Aplicações
Inseticidas, fungicidas e fertilizantes devem continuar sendo aplicados na minha hortinha de almeirão e couve, à proporção de 1:1000. O pulverizador encontra-se na tulha, e não compõe este testamento por estar com a tampa do tanque girando em falso.

Ações
Tanto a ação de despejo, da qual minha família será vítima devido aos aluguéis atrasados, quanto as ações trabalhistas, provavelmente a serem movidas pelo Onofre e seus subordinados, deverão ser administradas pelo meu advogado – que para tanto será regiamente remunerado pela providência divina, em encarnação vindoura.

Grãos estocados em minha propriedade
Uma embalagem de milho para pipoca da marca Yoki, com prazo de validade a esgotar-se em 25 do corrente.
Um tupperware rachado transversalmente, acondicionado em geladeira, contendo feijão preparado na véspera da elaboração deste documento.
Ambos os bens serão partilhados igualmente entre meus herdeiros, legítimos e ilegítimos, em frações ideais de 1/35 (um trinta e cinco avos) para cada um, com escritura definitiva lavrada e registrada em cartório.

Coleções
Todos os meus gibis, do Carlos Zéfiro e do Cebolinha, as Seleções do Reader’s Digest de 1945 a 1961 e os Almanaques do Biotônico Fontoura deverão ser catalogados por bibliotecário habilitado e experiente. Em seguida, esse rico acervo deverá compor a “Fundação Hypólito Rufino Peixoto”, entidade que terá como missão o fomento cultural em nossa região.

Por fim, meu último porém não menos valioso bem: Edileuza, enteada do Zózimo da botica. Teúda e manteúda desde as quartas-de-final da Copa de 70, com casa montada e conta no armazém, não pode ficar à míngua de uma hora para outra. Todos os meus demais pertences, aqui não arrolados, passam com o meu falecimento às suas mãos.

Perdão, Justina, pela fabulosa e imerecida galharia que fiz brotar em sua cabeça, mas não soube refrear os meus instintos frente a tão roliça criatura. Agora está tudo às claras, não há mais nada a esconder. Mas assim como não se chuta cachorro morto, também não se estapeia defunto, Justina. Releve e viva em paz o resto dos seus dias.

© Direitos Reservados


Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
Blog:

sábado, 21 de setembro de 2013

PLANO DA OPERADORA

Telefone celular quebrado


Obra de ficção*



- Vamos surrupiar dois centavos, além dos seis de cada ligação.

- Mas e se perceberem?

- A gente devolve só para quem der pela falta e reclamar. E pra reclamar vai ter que esperar a musiquinha enlouquecedora até cair a ligação.

- E se o lesado ligar de novo?

- Mais uma hora, uma hora e dez da mesma musiquinha. Tortura de solitária mesmo. Aí a gente programa para a ligação cair outra vez. Na terceira tentativa, é sinal que o sujeito está mesmo determinado. Então atendemos, assumimos a cobrança indevida como falha de sistema e fazemos o estorno em créditos. Mas essa medida extrema, pelas nossas projeções, corresponderá a 0,3% das tentativas. O resto desistirá no meio do caminho, por exaustão. É importante lembrar que o plano (o nosso, não o plano promocional do cliente idiota) entra em ação um mês após o início da promoção. Isso porque nos primeiros dias o cliente fica conferindo mesmo, pra ver se é debitada a quantia certa para cada ligação. Depois ele relaxa e não confere mais. Aí sim, podemos bater a carteira mais à vontade.

- Você diz aqui na descrição que esta é a fase 1 do estratagema. Como seria a fase 2?

- É quando começamos a deitar e rolar pra valer. Multiplicamos a tungada de 2 centavos para o equivalente a uns 3 dólares. Logicamente, quanto maior a perspectiva de ganho, maior o risco. Podemos dizer que, nessa etapa, aqueles 0,3% de reclamantes que seguem na luta passam para 4,2%, num cálculo conservador. Mais uma vez, atribuiremos o erro ao sistema e efetuaremos o reembolso após a terceira tentativa do otário. No decorrer do processo, a fúria do assaltado tende a aumentar, e orientaremos a atendente a passar a ligação para uma suposta superiora que dará uma atenção maior ao sujeito, de acordo com o script aprovado na nossa reunião anterior.

- Sei. É hora daquela lenga-lenga toda, de que "é através de pessoas como o senhor que podemos sanar nossos erros e aprimorar nossos serviços"...

- Perfeitamente. Se ainda assim o mané quiser mais briga - teimando em reaver o dinheiro referente a afanadas retroativas, o máximo que pode acontecer é ele chorar as pitangas nas redes sociais ou trocar de operadora. Entrar na justiça ele não vai, não compensa o custo com advogado.

- Bom, vamos em frente. Fase 3.

- A fase 3 é a nossa salvaguarda, mas ela tem seu preço.

- Bom, já vi que daqui pra frente o teor é sério. Alguém fez uma varredura antes da gente começar essa conversa?

- Fica tranquilo. Esqueceu que nós somos a operadora? Estamos conversando num private circuit de última geração.

- Então vai. Prossegue.

- O esquema vai dar dinheiro demais. Mais do que seria seguro para ratear unicamente entre nós.

- Vai daí que...

- Vai daí que uns 35% do total arrecadado no golpe vai pra instâncias superiores, caso estoure escândalo ou se algo muito fora do previsto acontecer. Digamos que essa parte seja um fundo de reserva anual. Findo o exercício, se nada sacarmos para eventual "operação abafa", a sobra de caixa continua intocável. Nunca se sabe o dia de amanhã.

- Por mim, pode tocar. Só uma dúvida: qual o nome do plano?

- O nosso ou o dos otários?

*Qualquer semelhança com pessoas ou fatos reais é mera coincidência.
© Direitos Reservados


Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
Blog:


sábado, 14 de setembro de 2013

A ORDEM SECRETA DOS CONSTRUTORES DE MOINHOS






Fazendo jus ao nome, quase nada se sabe sobre a OSCM, exceto que seus membros encontram-se trimestralmente em algum lugar da peninsula ibérica para deliberações misteriosas.

Sobre o não sabido, no entanto, nunca se conjecturou tanto como agora. Simpósios são realizados, livros sobre teorias hipotéticas são escritos, documentários de duvidoso rigor científico são produzidos. Mas nada que se compare, como fonte documental, a um trecho de diário pertencente a uma amante de um dos membros, que transcrevo a seguir. Trata-se de uma única página, encontrada no porão de uma casa em Alcobaça, Portugal.

05-11-1975 - quarta-feira
Pássaro da Manhã chegou hoje. Tudo dentro do previsto. Quando me avistou na rodoviária, fez o gesto secreto e em seguida disse a senha sem titubear. Como se precisasse, depois de tantos anos e sendo ele o mentor da coisa.  Xis Ípsilon juntou-se a nós quinze minutos depois, trazendo debaixo do braço pelo menos quinze dos canudos vazios adquiridos para a operação. Disfarçamos por ali até que Calopsita se aproximasse conduzindo o basculante - o sinal para que Jota Dáblio, com seu walk-talk, instruísse os demais homens para a conclusão da Missão Beta ainda antes das onze e meia.

07-11-1975 – sexta-feira, por volta das nove da noite
Deus sabe o quanto tentei, mas não consegui conter as lágrimas ao abrir a mala com as onze diferentes perucas e as costeletas postiças. De imediato me veio à lembrança a imagem de Codorna com seu barulhento tamanco roxo, ainda um noviço na Organização. Não merecia sofrer tanto nas mãos daquele desgraçado. Lembrei da época em que ele queria sair do esquema e jurava não entregar ninguém, mas ele próprio não tinha ideia do quanto já estava envolvido. Se negava a aceitar que se metera num caminho sem volta, onde nem Papaléguas, nem Maritaca  poderiam evitar a sua (...)

O trecho encontrado termina neste ponto,  junto a uma mancha de baunilha e traços de sangue O positivo. Há quem sustente a hipótese de que a página do diário não passa de tola invencionice, forjada para despistar possíveis investigações que levassem ao desmanche da Sociedade e o acesso aos seus misteriosos rituais e objetivos. De onde se deduz que a Ordem Secreta pode muito bem não ser de construtores. Muito menos de moinhos.


© Direitos Reservados
 Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
Blog:


sábado, 7 de setembro de 2013

A HEROICA TRAJETÓRIA DE UM JORNAL






A um bom jornal compete informar, denunciar, ser voz e guardião dos justos anseios da comunidade. Até aí todo mundo concorda. Mas um jornal pode ter outros papéis. Bem menos nobres, é verdade, mas bastante oportunos dependendo da ocasião.

O fato é que um exemplar de jornal nem sempre tem comportamento exemplar. Não que ele se comporte mal – as pessoas é que geralmente se comportam mal com ele. E aí me refiro ao jornal como objeto de estranhas e incontáveis serventias, ou seja, ao que ele é capaz de se prestar depois de lido.

Marcador de livro, por exemplo. Prendedor de porta, tapa-goteira, embalador de copo em caminhão de mudança, aparador de vazamento de óleo no carro, tampa de panela, forro de casinha de cachorro e de gaiola de passarinho. Até pra cobrir defunto ele serve.

E que dizer daquela sua tia-avó, que faz o coitadinho de leque durante aquela visita rápida de 7 horas e meia em pleno sábado?

Acender fogo de churrasqueira é outro emprego comum. O primeiro caderno você encharca de álcool, o segundo você usa para abanar o braseiro.

Alguém leva o jornal para a mesa do escritório, ao lado do telefone. Pronto. É o que basta para que o abnegado matutino ganhe indecifráveis rabiscos. Anotações de telefones, endereços de sites e e-mails, rubricas, declarações de amor e até receitas de bolo anotadas em suas margens. Há os que prefiram preencher com caneta ou lápis as letras “O” das manchetes e subtítulos, enquanto em intermináveis conversas com a namorada.

Atire a primeira pedra quem nunca usou um jornal dobrado em oito pra servir de calço de mesa. Lembro do tempo de faculdade em que morava sozinho, numa quitinete. Meu calço era um José Sarney com bigodes ainda negros, então no auge da popularidade com o redentor “Plano Cruzado”. Nunca tive alguém tão poderoso aos meus pés, servindo-me gratuitamente durante anos.

E quando tem serviço de pintura em casa? O pintor chega de manhãzinha e, com ele, o aguardado jornal. Ele pede jornal velho pra forrar o chão. Velho não tem. Só o do dia, que você ainda não leu. Por eliminação, você fica com as partes das notícias, artigos, crônicas e classificados. E entrega a ele os balanços de empresas, editais de convocação, avisos de licitação e os obituários. Pronto, já dá pra ele se divertir enquanto você devora o que mais interessa. Na varanda ou no quintal, evidentemente, porque não dá pra suportar nem o cheiro da tinta nem o pagode que ele assobia.

Há de convir o leitor que é de praxe o jornal do fim de semana – ou o que restou dele – pernoitar de domingo para segunda no sofá da sala. E segunda é dia que a faxineira vem. Espana pó aqui, limpa azulejo ali e eis que o ás da piaçava vê um ser rastejante entre a copa e a cozinha. Corre pra sala, passa a mão no jornal e Paf !. Errou. Outro Paf. Quase. Mais um, uhhhh por pouco. Até que acerta na mosca, quer dizer, na barata. As vísceras da bichinha se estendem por todo o terceiro parágrafo das notas policiais. Lá vai o jornal amigo para a lixeira da lavanderia. A escala ali é de umas poucas horas para então cair no sacão preto do lixo do quintal, em meio a toda sorte de resíduos, orgânicos ou não.

No dia seguinte o jornal é recolhido, vai para reciclagem e volta para a porta da sua casa em forma de outras notícias, todas extremamente desagradáveis: os boletos de conta de água, de luz, de telefone. É quando você amaldiçoa o mandatário supremo que aparece todo dia no jornal. E sente até saudade do Sarney, estimado calço do pé da mesa.


© Direitos Reservados


Marcelo Pirajá Sguassábia é redator publicitário e colunista em diversas publicações impressas e eletrônicas.
Blog: