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sábado, 23 de julho de 2016

QUEREMOS UM PURGATÓRIO MAIS JUSTO E RACIONAL



O conhecido purgatório, esse limbo que acomoda quem ainda não tem direito ao céu, porém não é merecedor do inferno, é cenário de situações esdrúxulas e até cômicas - se não fossem trágicas em sua estranheza.

Manda a lei divina que o que se fez ou se desejou a outrem seja pago na mesma moeda pelo pecador. Assim, ações e maledicências veniais, quando não infantis, acabam sendo impostas àquele que praguejou. Um corriqueiro "vá lamber sabão", dito impensadamente ao coleguinha em uma partida de futebol mirim de 1972, condenou um recém-defunto a onze anos e oito meses de infindáveis lambidas em uma barra sebosa de 500g, com cheiro enjoativo e sabor intragável. O pobre coitado já devorou cinco sabões em pedra, e tudo leva a crer que mais umas cinco mil o aguardam, até que o tempo da pena se complete. Consta, porém, que outros três amiguinhos do condenado teriam sido por ele "mandados à merda" em outra partida do campeonato. Vai daí que algo bem pior o espera, tão logo os sabões sejam devidamente lambidos. 

Há um consenso em todas as esferas espirituais de que esses pequenos delitos precisam ser anistiados, e que os critérios na relação pecado-castigo devem ser reavaliados com a máxima urgência, para que o espaço disponível consiga abrigar os que possuem culpas mais significativas no cartório. Já os responsáveis pelos círculos purgantes argumentam que só as almas absolutamente puras fazem jus ao paraíso, e que mesmo contravenções tolinhas não escapam do pente fino dos guardiões celestes. É necessária, segundo eles, a convocação de uma assembleia extraordinária com representantes do céu, do inferno e do purgatório, para que as milenares regras de purificação e admissibilidade sejam alteradas.

Algumas facções do paraíso defendem a descriminalização do xingamento "Vá plantar batatas", por entenderem que soa anacrônico, nos dias que correm, condenar tantas almas a meses de sol a sol no cultivo do tubérculo, para ficarem em dia com a justiça divina. Isso sem falar nas centenas de milhares de hectares necessários para assentar em lavoura todos os que, na Terra, foram simpatizantes do insulto. 


Imagem:brasilescola.uol.com.br
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sábado, 16 de julho de 2016

CONTA COMIGO!



Foto: papelex.com.br

Contar os milhares de maços de dinheiro guardados em casa era ao mesmo tempo seu trabalho, sua diversão e sua paranoia. Cada maço perfazendo dez mil, em cédulas de valores variados. Quando a contagem chegava ao fim, cismava que alguém - não se sabe quem, já que nem faxineira entrava em seus domínios - poderia ter mexido nos primeiros montes conferidos, e a contagem recomeçava do primeiro bolo ao último, num ciclo doentiamente interminável. 

Banheiro rima com dinheiro. E não por acaso, dizia ele. Pisos e azulejos eram apenas revestimentos de fachada, que escondiam cofres e mais cofres milimetricamente alinhados e abarrotados de bufunfa. Os quartos e a ampla sala em L jamais viram cor de tinta. Sobre o reboco dos cômodos, ele mesmo foi aplicando um peculiar papel de parede, feito de lindas e sortidas cédulas, capazes de levar o Tio Patinhas a orgasmos múltiplos. 

O bloco de notas próximo ao telefone era literalmente um bloco de notas, com recados e lembretes escritos sobre o dinheiro. As anotações se referiam, invariavelmente, a questões financeiras: o total amontoado em junho, julho, agosto, setembro e assim por diante - mês a mês, ano a ano, ao longo das décadas de acumulação. 

Tinha, é claro, dinheiro rendendo no banco em diversificados fundos. Tão logo creditados os juros do mês ao saldo, ia até a agência, sacava a quantia relativa aos rendimentos, contava para ver se conferia com os índices divulgados nos jornais e corria em seguida para devolver a dinheirama ao caixa, a fim de  juntar o juro devidamente aferido ao total acumulado. Desconfiava que o banco pudesse um dia lhe passar a perna. E dá-lhe esponjinha molha-dedo, dia e noite, noite e dia.

Quando achava que a inflação estava corroendo demais o poder de compra do seu feudo de dinheiro, pegava uma boa parte e operava como agiota, emprestando em espécie e recebendo também em espécie, com acréscimo de juros imorais. Sua montanha monetária ganhava então valores a mais, a serem contabilizados assim que recebidos.

Em quase meio século de desmedida poupança, havia testemunhado várias trocas de moeda. Cada ocasião dessas era para ele motivo de imensa satisfação íntima. Juntava tudo o que tinha em comboios de caminhões-baú, alugados exclusivamente para o transporte dos valores, e procedia à troca pelas cédulas novas, mesmo que as antigas continuassem valendo ainda por um bom tempo. Tinha com isso o pretexto para contar tudo outra vez, agora em papel novinho e cheirando a tinta fresca. Em questão de poucos dias seus cofres ganhavam novo suprimento, o papel de parede do lar-rico-lar era atualizado e o bloco de notas, gasto e todo rabiscado, modernizava-se em cédulas virgens. 

Tudo ia muito bem, até o dia em que, após meticulosa contagem, deu pela falta de R$1. Descartada a possibilidade de que houvesse entrado alguém em casa, ele começou a desconfiar de sua própria capacidade de contar com exatidão e eficiência. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, essa hora iria chegar. E junto com ela o impasse insolúvel de não poder confiar em ninguém para levar adiante a compulsão. Além de uma certa confusão aritmética, que subjetivamente atribuía à idade avançada, notava também um tremor anormal nas mãos, já sem impressões digitais de tanto contar dinheiro. Mas não procurou ajuda médica: teria que se desfazer de algumas notas para isso.


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sábado, 9 de julho de 2016

TEMOS QUE FAZER ALGUMA COISA!



- Esse tá lascado. Pegou justo a gente... dois caras sem nada de espetacular pra dizer um ao outro. Isso não dá texto que preste.
- Hummm, vai ter que tirar leite de pedra. Tô até com pena do cara, meu... reparou como está digitando devagar? O sujeito não acha o que escrever, tá até trêmulo, coça a cabeça, rói unha, sente o drama. 
- Então, estou vendo sim. Mal começa a digitar e já vem com o backspace apagando tudo. Ô dó, nada que se aproveite. 
- Tristeza, tá dependendo dessa nossa jogação de conversa fora. É ruim.
- Está vacilando mesmo. Misericórdia. Sei lá, vamos dar um jeito de achar um assunto, vai. Pega mal pra gente também, né. Parece que a culpa é nossa.
- Pois sabe que eu também fico sem graça. Além do mais, se não rolar nada, nem nós saímos hoje daqui e nem ele vai dormir. O disposto aí precisa entregar isso pronto daqui umas três horas, no máximo. 
- Como é que você sabe?
- Antes de você entrar no diálogo eu já estava por aqui, apareci na primeira linha. Que, por sinal, foi apagada. Foi quando tocou o telefone e era o editor do jornal, cobrando o texto.
- Bom, hoje pelo jeito vai cumprir tabela. Ah, vai.
- Não me ocorre nada pra falar, Deus meu.
- Tempo maluco esse, não? Será que chove?
- Também não precisa apelar, né? 
- E o Corinthians, heim? Agora com o Tite de técnico da Seleção, quero só ver como é que o timão vai se virar...
- Melhor parar, daqui a pouco ele desanda a cobrir o notebook de porrada, escuta o que eu tô te falando. Conheço a figura. 
- Se a gente não fizer alguma coisa, ou seja, se a gente não começar um diálogo minimamente interessante, ele parte pra enrolação. Uma encheção de linguiça com um clichê atrás do outro. Talvez pegue alguma ideia começada, que não foi pra frente, e tente ressuscitar a natimorta. 
- A nova lei do farol aceso, inflação descontrolada, a onda dos reality-shows de culinária, alguma pérola da Rousseff... pensa rápido, não podemos ser responsáveis por uma demissão com justa causa. 
- Ou um suicídio. Tá mais pra suicídio, pelo andar da carruagem. Acho que ele se mata de desespero antes de ganhar um pontapé nos fundilhos.
- Chega, o nosso amigo aí vai ter que pegar no tranco. Essa belezinha no porta-retrato ao lado do modem não pode passar fome. 
- Ele podia falar sobre a falta de assunto.
- Ih, olha só, começou a "pescar".
- Já vi esse filme, misturou de novo bromazepam com uísque.
- Dá com o travessão na cabeça dele!
- Tarde demais... A cabeça tá despencan&&39jdsjkj88h3vbf7djkldljdlgjlhfgjjljlkgjjdkljgjsjdjgksgkljskjgljlsjkdjkljskljdkj&&&bsh3ruadnv.sdfjkjdkljkjc   ....jjkkj02lpãskljaiidífkdpozzzwçdhfvutpwefhdhcaoeoitugperytiwwejfvgdifeiepfjwhpivyoweeifhkhoueefipwhgiwtufpwejfihyfowerlvhyufweufheuhvuofwejvuhutwetfhpuhyfutpwjlfvhhrrr923irldhveeripdjdvhgiouwepdfkjlkjwmefpocvçljçalkkgçlksçlkçlgjsfçlkçlsdkçdgkksdlgkçllgjlhffedfmclvkdfçkdçghjçkfçvjfkldgjçlkfklkjgvkleçlçtkfvjedjvm,q.çdçf11111111jvdhiweprpipgeuofupteotuwutpueriotgyoutoiuoerutourutrotwp72ekl3rupdjvldj~e-08rf-0aeljçklvhkj9ruakdjf9er9aidlkjjfljacvladf090erjjdlfkjllsda------1m9e8r9erwe9 9ueuewruvsdjfçe0r80dfpivkjddljfklujçljkaçakçklgkjlkloiuytrrtyuiokdl?kdl?kdl?

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sexta-feira, 1 de julho de 2016

AÍ VOCÊ DESCOBRE



Aí você descobre, fuçando naquela velha caixa de boletos religiosamente recolhidos desde 1995, que é usuário de TV por assinatura já há mais de 20 anos. Aí você descobre, assistindo a uma matéria em um dos seus 341 canais pagos, que os campeões de audiência na TV por assinatura são três emissoras abertas: Globo, Record e SBT, sendo que 60% do total de telespectadores só assistem a esses canais, que chegariam sem problemas até você com um chumaço de bom-bril. Aí você descobre que faz parte desses 60%. Ou quase, já que de vez em quando a empregada pede para assistir a missa no Santuário da Aparecida do Norte, transmitida em canal fechado. Aí você descobre, para compensar minimamente tanto dinheiro jogado fora, que o controle remoto lhe dá a espetacular opção de compor uma playlist favorite channels, o que significa economia de dedão, paciência e pilha do controle - por não ter que ficar pulando o tempo todo os canais que não quer assistir (por que você só se deu conta desse macete agora?). Aí você descobre que esses favoritos são, com muito boa vontade, uns oito. E isso incluindo o canal de meteorologia e aquele outro de leilão de gado. Aí você descobre que jamais poderá assinar só esses, pois a operadora não oferece opções de pacotes customizados. Aí você descobre que esses raríssimos canais a que de fato assiste estão disponíveis de graça e ao vivo, na internet. Aí você descobre, ligando para o Serviço de Atendimento ao Consumidor, que o lixo satelital disponibilizado 24 horas por dia não pode ser cancelado, sob pena de interromper também o sinal de telefone e a banda larga. Aí você descobre, fuçando um pouco mais na velha caixa de boletos, que tinha assinado um "combo" e que os três produtos não são desmembráveis, conforme consta no rodapé da página 12 do seu contrato. Aí você descobre que essa despesa mensal de que é refém há 20 anos é tão inútil quanto as cabines de telefone público de Londres. Aí você descobre que fica eleito o foro da comarca da sua cidade para dirimir quaisquer dúvidas relativas ao tal contrato. Aí você descobre que, se fosse 20 anos mais jovem, talvez ainda tivesse saco para comprar essa briga e tentar se livrar do que decidiu adquirir por livre e espontânea vontade.


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